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O meu avô rodeado da sua família essencial, mulher e três filhas, no momento porventura mais alto da sua maturidade. Foi retrato tirado algum tempo depois do dia 25 de Maio de 1926, no qual, “às 10 horas em ponto da manhã”, conforme escreve Sebastião no seu Day Book dos acontecimentos principais da família, nasceu a sua filha Ermelinda.
Lugar: Providence, cidade enorme e distante dum país praticamente infinito em tudo, até no sonho que lhe inspirou por toda a vida. Ficou colocado à esquerda, a atestar o gosto compositivo do mestre fotógrafo que certamente organizou a pose de todos os retratados. Sebastião ostentava um gracioso chapéu de palhinha com o qual ainda brinquei em Cernache do Bonjardim. O formalismo do fato completo com colete e a camisa branca com gravata confirmam uma dignidade a que os óculos redondos e o bigode acrescentam uma nota subtil de afirmado urbanismo. Mas não nos iludamos: o homem que ali está é bem modesto, embora tivesse tido a sorte e a determinação necessárias para transformar de forma radical o curso da sua vida anterior.
A volumetria do chapéu ajuda a compor a estatura do chefe da família e o bigode deve-se à circunstância de que, no seu tempo de militar, todos os homens que entravam para o serviço das forças armadas eram obrigados (tácita ou expressamente) como ele próprio me disse, a ostentar qualquer apêndice capilar ao gosto do próprio. Bigode, barba, barbicha mais farta ou rala, patilhas, mosca, qualquer coisa enfim que fosse prova expressiva de virilidade.
Coisas da monarquia agonizante? Regra ancestral de militares empedernidos incansáveis de guerra? Ignoro.
Ao centro da foto está a sua segunda esposa, Maria da Silva, segurando ao colo Ermelinda. Ao lado esquerdo Lídia e ao lado direito Maria de Lurdes, minha mãe.
Como fotografia de minha avó é aquela que mais justiça faz à sua beleza, ostentando aqui um olhar serenamente convicto de mulher realizada pela graça da maternidade.
Se lhe chamo avó, pelo que digo adiante sabereis que não o era de facto, e que a minha outra avó (ambas entendidas como únicas e verdadeiras) era sua irmã e falecera três meses depois do parto de sua filha, Maria de Lurdes.
Sebastião foi, na minha opinião, o elemento da minha família que mais capacidade demonstrou de transformar a sua própria existência e daqueles que dele dependeram. Fez a transição heróica de um campesinato oprimido pela pobreza e de horizontes fechados para uma abertura ao mundo e para todas as suas promessas possíveis.
Esse prodígio deve-se ao enorme desejo de mudar de vida e passa pela decisão de ter emigrado para os Estados Unidos da América.
A minha avó Maria, apesar do começo dramático do seu casamento quase forçado com Sebastião, pelo dramatismo da morte de sua irmã Leopoldina, adaptara-se muito bem à sua vida nos Estados Unidos, a novos vizinhos de várias nacionalidades, amigos e familiares. Carregava consigo lembranças de muito trabalho, de enorme coragem perante a adversidade, sobretudo após a mais tenra infância. Raras foram as ocasiões e raras foram as pessoas a quem confiou o detalhe pormenorizado desse longo caminho de sofrimentos.
A confiança carinhosa com que se relacionava com minha mulher, Maria da Conceição, proporcionou longos momentos de narrativas da vida que foi obrigada a viver em menina e dos padecimentos que patrões sem sensibilidade nem sentimentos lhe infligiram.
Usava blusinhas muito pobres sobre cujas ombreiras era possível ver sempre a mancha escura do sangue de puxões nas orelhas. E para começar as regas bem de madrugada, para evitar punições físicas por qualquer atraso, não raras vezes teve de dormir ao relento, com a cabeça sobre os braços apoiados no muro de um poço.
A Mamã e eu, em Leiria, Julho de 1968
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