Numa época em que as travessias atlânticas eram feitas de barco a vapor era prática normal trazer móveis e utensílios de todos os géneros, inclusive certas inutilidades que ficavam apenas como memórias dum tipo de vida completamente diferente. Não posso esquecer-me, como testemunho de um clima completamente diverso, dum certo artefacto dotado de pontas de ferro que se afivelava com uma correia à volta dos sapatos para evitar as quedas no chão gélido e escorregadio do Inverno Americano.
Desses objectos de mobiliário que conservo em minha casa subsiste uma cama de casal cuja estrutura de ferro resistiu a todos estes anos e ainda se encontra em uso. Era uma bonita peça feita em ferro moldado e com elementos em latão que o meu avô entretanto pintou e repintou com tintas de esmalte e que foi a sua cama até ao fim da vida, depois de encurtada a altura de pernas e de cabeceira que ostentava quando vinda da América.
Eu próprio a raspei e repintei de branco há alguns anos. Depois de retirada a pesada estrutura original de ferro do colchão de arame e com um colchão actualizado, é a cama onde eu próprio nasci em 1942 e é a cama de casal onde ainda durmo nos dias de hoje com minha mulher.
A chamada “secretária” do meu avô existe ainda e está em uso em casa de um primo meu, depois de preciosamente restaurada. É esse meu primo que possui em seu poder a velha colecção de discos antigos da grafonola que todo o emigrante americano que se prezasse trazia dos Estados Unidos.
O meu avô Sebastião trouxe uma daquelas de dar à corda com uma manivela lateral, que era evidentemente a única “força motriz” disponível ao tempo para este tipo de objectos, acompanhada com a respectiva colecção de grandes e pesados discos negros de 78 rotações. Eram objectos manipulados pelo meu avô quase exclusivamente, com sulcos que reflectiam a luz em fileiras curvilíneas de um brilho estranho num rigor tecnológico naquele tempo perfeitamente invulgar. As agulhas eram de ferro grosso e, contando com a usura do tempo que Sebastião sabia iria ser longo, muniu-se de duas ou três caixas porque era homem previdente e não queria que se perdesse a utilidade daquela mágica lembrança de convívios animados entre família e amigos.
Era encantadora a série de músicas que ouvi inúmeras vezes e que animaram bailes e convívios em sua casa. Marchas típicas da América, os seus hinos e canções mais em voga, valsas, polkas e mazurkas, mas também árias de óperas, canções portuguesas e, imagine-se, gravações brejeiras de cenas da revista à portuguesa que na altura gozavam de especial popularidade junto dos portugueses distantes da terra natal, tudo disponível surpreendentemente na América desses tempos ao alcance dos portugueses ali residentes.
Era sobretudo interessante a audição colectiva de tais entremezes, não existindo os falsos pudores que poderiam ter caracterizado certa pequena burguesia da época, a que nós não pertencíamos, de resto.
Só para amostra lembro-me dos seguintes versos: “Ai tira o bicho, tira, tira, tira,tira, mas que cabeça tamanha”, e narrava as façanhas de certo namorado de voz grossa em contraponto com a namorada esganiçada ao que parece muito aflita nos termos em que o próprio poema documenta…
Esta Valsa “Três da Manhã” era das melodias preferidas do meu querido avô que, com a ajuda eloquente do grande contador de histórias que era o seu irmão Guilherme, também narrava episódios e proezas técnicas e científicas do insigne fotografado nesta capa: Guglielmo Marconi.