Não estamos em Creta, mas talvez nos encontremos de certa forma no exílio. O Rei Minos veste-se de mil disfarces e o voo de Ícaro perde sustentação despenhando-se sobre um mar de sombras desconhecidas, fragmentando-se em inúteis penas desirmanadas aquilo que foram asas, derretidas pelo sol impiedoso que condena sem remédio a cobiçosa ânsia de altitude, de fortuna e de domínio ilimitado de horizontes. A visita à exposição de Jochen Maria Bustorff desenrola-se toda dentro da sala iluminada e encanta-nos Mozart, a finura da sua musicalidade, da mesma forma que nos confrangem os alucinantes desastres da guerra, a semi-oculta paixão de Cristo pela carnavalesca contradição da desconcertada violência e nos aquece o sangue a cálida presença de mulatas estendidas ao sol, algures perto dos trópicos. Mas Ícaro está lá, à entrada da exposição, como um aviso solene pelo qual passamos quase distraídos, como se nada fosse o espectáculo de um homem despenhando-se na vertical, complicado pelos remotos mistérios do mito e pela teatralidade do drama barroco. Homenagem a El Greco ali se diz mas pergunto eu se não se tratará com efeito de um outro retrato de todos aqueles que olham muito e confusamente procuram organizar na mente a acumulação de sinais, o coro de gritos, a chinfrineira das campanhas.
Olha, aquele tipo vai de cabeça a fundo, dirão alguns. Os mais tímidos poderão pensar, não sem algum temor, será aquilo o retrato de algum de nós? Jochen Maria Bustorff, cujos cruzamentos com a identidade cultural portuguesa conduziram o seu próprio nome à curiosa assimilação simplificante de José Maria Bustorff apresenta aqui uma pintura de tão genuína autenticidade que dispensa as habituais referenciações estilísticas e a enumeração das dignificantes influências matriciais.
Bustorff evidencia a vitalidade própria das grandes culturas e dos homens cujo destino parece conduzi-los a medir forças com o mundo em geral, numa recusa evidente desse relativismo fácil em que se deixa enlear a maioria. Vários continentes, uma apreciável pluralidade de horizontes e uma multidão de alusões complexas fazem parte do seu campo de pesquisas, vivências e questionamentos de natureza universalista, logo, tendentes a ultrapassar toda e qualquer contingência ou limitação atribuível ao “meio”.
A técnica que exibe em formações de vocação monumental é duma enérgica virilidade, rica de todos os equívocos da visão prospectiva da complexidade do mundo em desdobramento de alusões concretas possíveis de decifrar e de esclarecer (ao que o pintor não se escusa numa aberta franqueza de propósitos) não isentas contudo do confortável recheio de paradoxos que tanto estimulam a mente sequiosa do sagrado fascínio da pintura.
A tecnologia de que lança mão é toda fruto de pesquisa e de fabrico próprio (têmpera de ovo, pigmentos de origem remota, resinas autênticas e outros expedientes oficinais genuínos) e os suportes apresentam-se libertos de todos os complexos de loja de artigos de pintura. Aqui e ali eles próprios fazem parte da “pintura” que se deixa ver, denunciando a visão instantânea e o gesto rápido.
Da exposição fazem ainda parte uma notável galeria de retratos de pessoas anónimas, figuras de sociedades ainda distantes, de culturas recheadas de humanidade de que apenas temos a vaga ideia por noticiários geralmente assustadores de realidades traumáticas. São retratos de gente como nós e ajudam a saturar de humanidade este acontecimento artístico, que tem muito que se lhe diga e para o qual todos os meus leitores estão empenhadamente convocados, caso se deixem impressionar pelo que fica dito.