Publicado no Diário de Coimbra no dia 17 de Abril de 2010
Recomendo a todos os interessados pela pintura uma visita à exposição “Permanências” que se encontra na Galeria Sete, ao fundo da Avenida Elísio de Moura, desde o dia 10 de Abril, com obras de Miguel Telles da Gama e Pedro Pascoinho. Os dois artistas evidenciam personalidades artísticas bem caracterizadas e as obras respectivas encontram-se devidamente apresentadas no espaço disponível de modo a não confluírem no mesmo horizonte contemplativo.
Os dois núcleos de obras são completamente diferentes, mas, a oportunidade de ver um conjunto primeiro e o outro logo depois, oferece um desafio mais ao visitante: o de poder viajar entre dois pólos de uma mesma fidelidade a princípios de observação e caracterização do universo das coisas sensíveis, podendo aproveitar a oportunidade para elaborar na mente um conjunto estimulante de relacionações não forçosamente comparativas, mas de valorização mútua de entidades contrastantes.
Entidades contrastantes, poderia ser esse porventura um outro título para a mesma realização conjunta, dado que é o que se nos depara ali: uma dualidade de confrontações, cada uma com a sua temperatura específica, o seu clima visual e a sua intensidade própria.
Miguel Telles da Gama apresenta-nos uma galeria de seres anónimos, fragmentários, oclusos, reduzidos a uma teoria de cores neutras, evidenciando a categoria de objectos escultóricos que oferecem pose em silêncio distanciado, página de modelos recortada pela tesoura criteriosa dum esvaziamento premeditado, sistemático, sem piedade.
Essas captações sintéticas afirmam o temperamento fotográfico de cada fragmento, materializado mediante o exercício cuidadoso de uma pintura meticulosa, obediente à focagem, à solidez, ao claro-escuro, ao capricho volumétrico dos tecidos, reminiscência da presença inapagável dos panejamentos da grande pintura.
A força do contraste, neste caso, é-nos revelada pela contraposição de tais elementos com planos de cores fortes, tornados objecto visível por intermédio de um expediente vocabular, título ou legenda de uma circunstância anexa ao sentido gráfico que envolve a totalidade das composições.
Pedro Pascoinho desenvolve perante o nosso olhar um teatro de confrontações de forte poder sugestivo, apoiado numa sistemática exploração de recursos gráficos do universo das revistas vindas do outro lado do Atlântico e de além Mancha, os “magazines” repassados pelo tipismo das gerações de entre guerras, dos seus trajes, adereços, apetrechos e ambientes de trabalho.
Essas figurações desenvolvem entre si uma dose de nonsense e de indeterminação que abrem para o mistério insolúvel amparadas muitas vezes por um manto de espesso negrume que marca a sua presença com uma plasticidade viscosa sem apelo.
O sistema de contrastes é acentuado (também) mediante as diferenças de escala de elementos contrapostos, expediente narrativo que por vezes assume o carácter de uma verdadeira abordagem psicanalítica, queira ou não queira a opção inicial que os colocou sobre a tela.
A execução plástica é fluente, intuitiva, as cores oscilam todas em torno de uma gama abatida na área de tons terrosos aquecidos pela maturidade das coisas antigas, alma residual de papéis deixados a amadurecer nas prateleiras de verão dum sótão de irrecuperável memória.
Os suportes de Pedro Pascoinho acusam, em coerência com o clima plástico que os anima, uma tendência para a originalidade, para o suavemente inacabado, para a margem difusa, para o uso sofisticado de processos simples mas cheios de requinte.