A herança dos afecto e do gosto, os bonecos que chegaram do Oriente, os jardins no tapete e os animais mitológicos das colchas de seda.

Avó Cristina

Avó Cristina

Um dia a minha avó Cristina, mãe do meu saudoso pai, chamou-me junto de si preparando com o jeito de falar que lhe era muito próprio uma daquelas encenações do sentimento que tanta perturbação lançavam no meu espírito de adolescente.
Tinha junto de si nada mais do que um conjunto de objectos de loiça antiga: pratos, travessas e uma graciosa terrina redonda. Do que se tratava era de me dar posse dessa tão frágil como preciosa herança sentimental.
Minha avó tinha passado parte da sua juventude na África do Sul e, durante algum tempo, associei essa loiça a uma remota noção de requintes britânicos. Mas não, olhando para a parte detrás de cada peça, reparei mais tarde que era loiça bem portuguesa, feita em Sacavém, agora seguramente com não sei quanto mais do que 100 anos, embora com temas decorativos oriundos de longes terras.
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Avó Cristina
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Raramente abro as portas dos móveis onde se guardam, embora não tenha receio algum de perder ou quebrar um ou outro daqueles objectos. Se os não perder eu a eles, perder-me-ão eles a mim, o que dá no mesmo, e nenhuma diferença faz tal coisa ao incessante e perturbado mundo que por cá fica.
Quando era rapaz novo acompanhei turistas estrangeiros e para as afinidades especiais que certos encontros propiciavam (e não foram poucos…) havia sempre na minha bagagem de viajante um pequeno agrado trazido do Portugal sentimental e mais profundo: uma garrafa de Porto, um Moscatel de Setúbal, barros de Estremoz ou de Barcelos, uma jarra ou uma travessa do Juncal, um prato de Alcobaça, um altarzinho da Nazaré ou um barquito em miniatura de Peniche.
Para os cavalheiros que cheiravam a Gitanes ou a charutos: mais bebidas. Para as jovens francesas que cheiravam a perfumes Galion (oh, que saudades!…) mais cerâmica, mais ovos-moles, mais paninhos com renda!…
Perdi por isso o tino das colecções. O que fui juntando ao sabor de acasos risonhos foi para dar, e não tenho pena nenhuma disso. As alegrias que eu tive, os sorrisos que recebi em troca, meu Deus!…
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02 M 01
O maior número de peças de loiça de Coimbra que comprei até hoje, foi para oferecer.
Era bom que esse hábito vingasse junto dos portugueses que viajam lá para fora, sobretudo, onde é prenda de valor.
Se não formos nós a ajudar os nossos solitários artesãos do povo e as antigas indústrias tão nobres, quem poderá fazê-lo?
Que netos ouvirão o sereno discurso do nobre sentimento, se se perder essa viva corrente de lembranças?
E toda aquela multidão de figuras exóticas desenhadas em loiça, em colchas e tapetes, herdada da gesta dos navegantes em busca de pó de canela e peças de seda, que será delas se a mão que as pinta ou tece se esquecer do seu formato, do seu mistério, da sua confusa abundância?
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Este texto foi publicado na Revista de Informação do SBC, de Julho/Agosto de 2008

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