Texto de catálogo da Exposição que teve lugar em Coimbra no Museu Nacional de Machado de Castro em Novembro de 1986, organizada pelo então director Professor Pedro Dias, e de autoria do mesmo.
O mesmo texto, com algumas alterações de carácter curricular foi publicado pelo Departamento de Cultura do Concello de Vigo, por altura da exposição naquela cidade de trabalhos integrados no Encontro Vigo Coimbra, em Maio de 1989
Quase todas as cidades de características peculiares ou fecunda história tiveram os seus pintores, artistas que as compreenderam, que as amaram e souberam captar aquilo que as individualizava e tornava distintas das restantes. Poderá dizer-se que, até hoje, tal não aconteceu com Coimbra, pese embora que os seus recantos mais típicos ou a larga mancha do seu casario modesto em anfiteatro cubra centenas de telas, a maioria das quais executadas já neste século.
Parecerá isto uma contradição, mas não é a mesma coisa ser um pintor da cidade ou alguém que pinta a cidade. O primeiro é o que a ela se dedica de alma e coração, exclusivamente, permitindo-se, quando muito, uma escapadela a um tema marginal, para logo regressar. O segundo usa a cidade como motivo, de quando em vez, como mais um dos do seu reportório. Foi isto o que se passou com Cristino, ainda no final de Novecentos e sobretudo com Fausto Gonçalves e José Contente, mais recentemente, só para citar alguns dos que já nos deixaram, há várias décadas.
Coimbra não teve até hoje, como Lisboa teve Carlos Botelho e o Porto António Cruz, quem a elegesse como motivo primeiro e permanente da sua arte. Por isto, se outras razões não houvesse, a pintura de Costa Brites teria já de ser tomada em conta.
Mas a representação da cidade na pintura ocidental não foi sempre a mesma. Entrando pêlos séculos dentro, vamos encontrar a urbe como mero marco de referência de passos da História Sagrada ou da crónica dos feitos dos grandes deste Mundo, seja na iluminura ou nas tábuas e murais que, na Idade Média, decoravam as casas das instituições religiosas. Como entidade autónoma, merecedora do primeiro ou exclusivo plano, apenas temos Jerusalém, a terrestre ou a celeste, consoante os casos, mas, sempre, uma construção ideal.
Na Renascença e no Barroco a cidade é o cenário, é apenas o espaço onde o homem desenvolve a sua actividade ou o marco que evoca o lugar de martírio ou de milagre das hagiografias ou da Vida de Cristo.
Seria necessário esperar por Canaletto e Guardi, para que a cidade se tornasse digna de ocupar o trono das Musas, fundindo-se assim a fonte de inspiração com o próprio objecto. Mas foi breve a vida deste realismo urbano.
Estes dois pintores, e esquecemos necessariamente outros menores, dedicaram-se a Veneza com paixão, souberam vê-la e, mais que isso, transcrevê-la. A sua identificação com as águas da laguna, as fachadas das igrejas e palácios e com os corsos foi tal que, nas suas telas, Veneza não só se vê, como se ouve, se cheira e se sente.
O Romantismo e a viagem, esse primeiro turismo, provocou o incremento das pinturas de cidades, mas agora só interessavam as recordações, os trechos mais pitorescos, os apontamentos monumentais.
O caso de Costa Brites está, indiscutivelmente, mais próximo dos de Canaletto e Guardi que de qualquer outro pintor que antes referimos. Para ele Coimbra é o objecto exclusivo da sua arte, que estuda, descobre, entende, vive e representa. Porém, este artista não é o fotógrafo da cidade, o pintor-fotógrafo melhor dizendo, que hoje, aliás há já um século, não tem razão de existir. A Coimbra de Costa Brites não é a real, como à primeira vista parece. Nem todos aqueles telhados lá estão, nem todas as cores são aquelas, nem todas as ruas têm aquela inclinação. Mas é Coimbra, indiscutivelmente, que todos vemos nas suas telas, que todos reconhecemos e, mais que tudo, profundamente sentimos.
Como é então isto possível. Como explicar que tomemos, de novo, a nuvem por Juno, que aceitemos a ilusão por realidade, sem um protesto. É aqui que reside o grande mérito do artista. É por isto que é artista e não artífice.
Ele capta o que há de essencial, enfatizando-o, desprende o acessório ou relega-o para um plano secundário, de quase adorno. Não se limita a olhar e reproduzir, antes interpreta as formas, as cores, os espaços e recria-os, balançando entre a verdade e a miragem.
Este processo não é fácil, não é imediato, e Costa Brites tem vindo a aperfeiçoá-lo. Pouco a pouco as pessoas foram varridas das telas, saíram das ruas, os meios de transporte volatilizaram-se e apenas ficou a paisagem urbana — paredes, vias, árvores, etc. Mas a Coimbra de Costa Brites nem por isto é uma cidade fantasma. Não notamos a falta das gentes nas ruas. Pelo menos nós, os que aqui nascemos ou que aqui vivemos já há muito tempo. Porque, afinal, como o amante ciumento, todos queremos a cidade apenas e só para nós. Por isso aceitamos a ausência dos outros, mais, aplaudimo-la, para, no silêncio daquela luz fria e uniforme a possuirmos ou sermos por ela possuídos, numa cumplicidade em que o secretismo é parte fundamental.
Em toda esta pintura, há o mérito de a ela aderirmos de imediato, somente quando amamos o objecto há muito e não à primeira vista.
Percorrer a obra de Costa Brites não é apenas um passeio turístico por mais uma cidade, pitoresca aqui, monumental acolá. Percorrer a obra de Costa Brites é penetrar fundo na essência de um espaço vivido e construído por gerações, de onde o artista previamente arrancou tudo o que podia distrair a atenção, desviar o olhar e perturbar os sentimentos.
Trabalhos morosamente elaborados, eles estão longe de ser frios, calculistas e pretensamente rigorosos. Apenas que nem todos amam da mesma maneira. À fugaz paixão, violenta até, dos impressionistas, opõe-se aqui a constância de quem saboreia cada momento, longa, longamente.
Pedro Dias