Por artimanhas da contemporaneidade digital fiquei sem página pessoal, o que – numa certa ordem menor das ideias – é uma condenação à insignificância e ao silêncio, isto é, à morte.
No seio da minha cultura antiga (quer dizer, presente e actual) a morte não é o fim. Antes pelo contrário. Primeiro porque todo o saber frutificará, toda a semente germinará, todos os gestos serão reencontrados.
A primeira transcrição verídica deste facto está no seguinte: ao realizar uma viagem de regresso a imensos sinais do meu labor, encontro tudo. Passagens, saltos, atrevimentos, desejos e nem é preciso avançar para esse outro território que os poetas atravancaram de gente confusa e perdida: o sonho.
Nunca me encontrei a gosto ali. Não tive tempo nem paciência. Muito talento ocioso e sem destino.
O sonho para mim é um lugar que sempre se menciona, mas um chão que se pisa sempre de passagem.
Amar, o que se diz amar, não se pode realizar em sonhos. Fazer filhos é um sonho, isso sim que é um sonho. Contudo os filhos não são “chão nosso”. O chão assim sonhado, é deles. Essa é a única modalidade valiosa de sonhar: Construir, dar vida, passar adiante.
Este lugar digital é, pois, uma tentativa de ser. Um reencontro com coisas que, se não forem ditas a tempo, não terão existido. Para os outros, claro. Para mim, não só tornarão a ser, como sempre se renovarão e transformarão infinitamente.
Ao reencontrar os gestos, os passos dados; ao revisitar as visões elas são sempre uma metamorfose de outra coisa mais simples e imediata. Uma visão revisitada oferece mais e melhor. Mais completo, mais significativo e sempre diferente.
Isso confirma plenamente aquilo que disse no começo: toda a semente germinará, todo o saber frutificará. E os gestos reencontrados terão um desenho mais aberto. O riso ecoará pelas paredes do tempo em harmónicos mais complexos; As palavras terão descoberto novos significados.
E mesmo que ninguém venha de visita, o que aqui fica não é do sonho. São factos vividos, passagens para diante.
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Um artista pode ser muitos
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Há artistas cuja obra é como um grande continente, com suas estendidas paisagens, suas colinas, vales e todo o género de variados horizontes. Se desfrutam dessa “condição continental” é porque apresentam consigo um nexo entendível de continuidades, podendo passar-se daqui para ali tendo a impressão de que se estar a pisar “terreno vizinho” em coerência de entidades legíveis. Haverá outros artistas cuja produção é como um arquipélago de ilhas bem diferentes, cada uma com o seu clima, a sua atmosfera particular, tendo entre si a vastidão de intervalos diferenciadores de atitudes correspondentes não apenas ao teor do instante ou da circunstância. Cada ilha decorre de uma continuidade diferente, como se não fosse apenas o corpo, mas a cabeça, o coração e a vontade que as diferencia entre si. É deste género de pluralismo que se alimentam certas vontades e, se me for permitido assumir uma destas configurações, é a segunda que melhor diz respeito ao tipo de viagens que tenho empreendido através do “largo mar do silêncio”.
A cada uma dessas independências corresponderá o que se poderá chamar um heterónimo, porque se trata de uma entidade própria, específica, com gestos, argumentos e toda uma autonomia significativa e expressiva. São como autorias diferentes, ficando à argúcia de quem contempla confiada a tarefa de adivinhar ou decifrar laboriosamente qual é o profundo leito de convergências que liga entre si tal espécie de diversidades. Este endereço vai procurar apresentar de forma tanto quanto possível organizada essa variedade, talvez só aparentemente descontinua, de formas de ver coisas através do olhar da imaginação. O meu arquipélago de continuidades distintas que entre si partilham segredos comuns, cuja travessia pode efectuar-se com uma animada agitação da brisa e das vagas, sem o risco de naufrágios, na companhia de monstros amáveis e de aves de plumagem variada cujas garras não ferem ninguém, e cujo grito apenas clama por quem queira atravessar também a frescura espaçosa do mar da curiosa confidência.
Costa Brites
Saudade de sua presença meu amigo, por onde andas? Quais as boas novas?