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O que aqui se diz é o relato de factos respeitantes à atividade de Rogério Silva, açoriano da ilha do Faial, notável cidadão e homem de cultura, alem de ser um testemunho sincero de amizade e admiração. O seu desejo intenso de “conquistar arquipélagos” nada teve a ver com intuitos de poder ou de prestígio pessoal, antes com trabalho generoso movido por entusiasmo de civilização e sentido criador.
Costa Brites
Para o Rogério Silva comecei por ser um nome distante de um rapaz há pouco chegado do continente a outra ilha, figura tornada simpática pelas palavras que o poeta Carlos Faria lhe dizia, ajudadas por desenhos que nem de pasta precisavam para que os segurasse.
Vi o Rogério Silva pela primeira vez, nos começos de 1969, numa altura em que veio a Ponta Delgada e se encontrou com o Carlos. Este já me havia falado nele com pormenores entusiásticos a respeito das coisas que se passavam em Angra e não sei se essa ida a Ponta Delgada não teria já a ver com a ideia da “conquista de São Miguel”. Mesmo que a causa próxima fosse de uma outra ordem a questão não deixaria de vir à baila. Fui convidado para ir jantar com os dois. Eu tinha 26 anos, era um rapaz, embora trabalhasse desde cedo e tivesse cumprido já 36 infindáveis meses de tropa. Recordo que os dois amigos falaram das idades respectivas, que eram muito aproximadas porque nasceram no mesmo ano (1929), mas à data do nosso encontro um contabilizava 40 e o outro 41 anos de idade. Para mim eram portanto dois “senhores”, um cheio de vitalidade e muitas graças, o outro com voz mais receosa e flutuante, embora por vezes procurasse, com ar grave e os olhos muito abertos por detrás das lentes grossas, alcançar uma vibração sobre-humana. Já noutro lugar dos episódios das minhas amizades nos Açores contei como é que da convivência com o Carlos Faria acabei por ser envolvido no entusiasmo que o Rogério Silva começou a imprimir ao lugar e às gentes através das linguagens das artes, animado pelo querer desordenado dos idealistas sem remédio.
Qual a receita da poção mágica para Rogério ter feito o que fez?
A pergunta feita assim não pode ignorar o microcosmos da ilha e a paixão de espaços libertos de quem a habita. Vejamos, porém: Um mínimo muito mínimo de apoios pessoais, um meio social com efectiva receptividade cultural, uma dose apreciável de juventude disponível, algumas pequenas casualidades e o empenho ilimitado do apaixonado principal, chamado Rogério.
Este levantou aos ombros muito mais peso do que podiam as suas forças. O seu empenho na missão que entendia como dever, foi radical. Não olhou a meios, isto é, jogou tudo o que tinha para jogar. Se dispusesse de uma liga formal ou informal de amigos ou qualquer outra forma de apoio sólido, o pintor não teria que acabar como acabou, frustrado certamente pela fraca sequência do seu esforço, pobre e exausto. Rogério Silva, o facto foi-me narrado por ele mesmo e não o tenho visto referido frequentemente nos relatos curriculares feitos por terceiros, a certa altura da sua vida, fez a coisa mais difícil que há; Aquilo que disse a Pérsio o Fauno da Écloga 1 de Bernardim Ribeiro:
Por isto, quero de ti que te não deixes morrer. Crê-me tu, Pérsio, a mi, que não há maior vencer que vencer-se homem a si.

“composição”, desenho / Rogério Silva
Qual é o motivo de não estar este facto relatado na apresentação das suas andanças pela vida? Será apenas pelo facto de quase ninguém se ter debruçado perante a sua personalidade complexamente recolhida, o seu drama e o seu sonho? Corro algum risco de verdade íntima por pensar que o Rogério – que tantas vezes me tem segredado as suas dores – talvez fique contente, pelo orgulho com que referiu essa razão motora nas conversas muito francas que tivemos. Foi dessa plataforma de bravura e coragem que tinha partido para a sua nova fronteira: tornar-se conquistador de arquipélagos pela convocatória da juventude e pela aliança das artes. Todas as artes, sobretudo as que tonificam a vontade e fazem do homem uma criatura vertical.
As minhas ideias sobre Rogério Isauro da Silva
Para começar pelas coisas principais da apresentação do artista, julgo imperioso referir que era um homem essencialmente dirigido por enraizadas preocupações morais. Escrevo em subtítulo o nome inteiro por não ser aqui o “nome de guerra” ou o “nome artístico” aquilo que define o privilégio de proximidade com que falávamos.
A energia que o impulsionava provinha essencialmente, não do gosto diletante ou do desejo de deixar herança curricular que a história registasse, mas sim do seu sentido de missão ou da ideia de que se não fizesse tudo que estava ao seu alcance para melhorar o seu mundo, ficava-o a dever a si próprio.
A outra coisa principal que a observação cuidada da imagem dos seus trabalhos da última fase me confirmam amplamente (a fase de Nova Bedford) é de que o Rogério não era por natureza um homem da ilha, a sua mente e o seu entusiasmo criativo eram universais. O teor das nossas primeiras conversas em 1970 em Ponta Delgada sobre variedade de temas e também sobre questões de expressão artística e dinâmicas culturais já indicavam isso, mas a ponderada e tranquila visita que nos fez em Coimbra em 1978 confirmou plenamente essa ideia.
À margem deste texto e já que utilizo a expressão “homem da Ilha” desejo esclarecer que não acredito em fatalismos ou determinismos que caracterizem as pessoas, por terem nascido aqui ou acolá. Uma pessoa pode nascer numa ilha e ser muito aberto e cosmopolita ou ser de uma enorme cidade muito desenvolvida e ter um carácter estreito e insulado.
“Futuro”, acrílico / Rogério Silva
O sonho Gávea
O combustível essencial que fazia movimentar o fenómeno da sua acção artística e cultural, portanto, era uma desprendida generosidade, um quase sentido redentor – com tudo o que a palavra tem e com tudo o mais com que a vontade criativa possa acrescentá-la. Por várias razões que vão resumidas mais adiante eu e a minha mulher tivemos o privilégio de aceder à parte mais recôndita e intuitiva do seu coração de homem e às motivações da sua sensibilidade criativa. Estávamos ambos na casa dos vinte, não éramos gente grada e estávamos portanto perfeitamente ao alcance do seu perfil de modéstia. A disponibilidade de carinho que lhe demos foi a mesma que usávamos entre nós, com espontânea fraternidade. E isso oferecido sem condições, a ele, que não era hábil no pedir.
Quando uma pessoa sai ilesa debaixo dos escombros de si mesmo, se levanta e caminha, pode arrastar consigo outros, sobretudo aqueles que com ele se irmanem. Sonha evidentemente que esses sejam muitos e que, conjuntamente, atraiam as atenções do mundo. Por detrás dessa poderosa fantasia estão subentendidos fios condutores de uma justiça automática que venha a ser suporte do homem e da sua luta.
Ouvidas as palavras do artista, pressentida a visão otimista da sua quase inexplicável intenção, é impossível conceber um programa muito bem acabado. Lá no fundo, é tudo possível e impossível, simultaneamente.
Havia no trabalho de Rogério Silva um “pretexto especial” dirigido ao futuro, que era a espinha dorsal das suas expectativas de “transformação do mundo”. Eram as persistentes tarefas de envolvência juvenil, as visitas às escolas, as conversas com as professoras dos mais pequenitos, as recolhas dos desenhos, a viagem interminável que poderia fazer milagres: apanhar a sensibilidade na altura em que dá os primeiros passos e poder encontrar, uma ou duas gerações mais tarde, um novo elenco de cidadãos com o impulso interior de renovação pela arte.

Cadernetas destas deixou Rogério semeadas durante a sua estadia em Ponta Delgada, junto de professoras de meninos…
Esta era a ferramenta que Rogério Silva utilizava com profusão e que me ofereceu na sua visita a Coimbra em 1978, ano em que fez a sua grande exposição na Brown University, em Providence. É uma caderneta com verbetes muito ingénuos de referenciação de trabalhos infantis de meninos das escolas, que incansavelmente distribuiu a professores do ensino básico, crente que era por aí que era imperioso prosseguir. No decurso da minha exposição em Ponta Delgada, houve visitas de professoras primárias com suas crianças (nada faltou a esse empolgante momento inaugural das minhas emoções artísticas…) e o Rogério Silva lá estava a distribuir cadernetas e a explicar às professoras como tudo iria fazer-se. Elas, muito atentas, muito fixas no olhar e nos gestos do artista, pareciam registar uma ansiedade de véspera, receosas talvez por aquela inesperada responsabilidade que lhes caía no colo, ameaça de futuro artístico e cultural.
O Rogério Silva, o escultor Ernesto do Canto Faria e Maia, um Senhor de Ponta Delgada e eu, na abertura da exposição organizada pelo primeiro em Ponta Delgada
Muitos anos depois, perdidos os rastos vivos do fenómeno e liberto o palco da presença, em muitos aspectos incómoda, do seu autor principal (o único que decidiu levar até ao sacrifício os seus intuitos, isto é, que ousou redimir-se) a sociedade faz esforços aparentes para celebrar o que possa ser celebrado. É o que julgo por sintomas vagamente aparentes de que nem sequer certeza tenho…
Por aquilo que certas vozes têm repetido ao longo dos anos acerca de Rogério e da sua Gávea, julgo ter passado já tempo suficiente para poder monumentalizar-se algo desse sucedido. Morra o homem, fique fama e é bem certo. Neste caso, porém, é desnecessário tentar ilustrar o fenómeno com notabilidades ou palmarés de nomes sonantes. A única coisa que poderíamos celebrar, sendo muito rara, continua disponível, totalmente grátis e resulta sempre: é a generosidade, essa poalha de oiro e de luz que, manobrada com sorte e com talento, pode revelar as grandes alvoradas e os poentes fulgurantes de esperança.
O Rogério Silva e o bater dos corações dos que o acompanharam com liberdade e alegria, estavam maduros de esperança. E mais nada. Os fios de prata invisível dessa tal justiça automática poderão existir de facto e não é das minhas palavras que vai soltar-se a sombra escura do pessimismo. Ao fim e ao resto, ao usar as minhas camisas, ao comer comigo e com a minha noivazita à mesa, quando lhe fazia a barba (porque ele dizia que não era capaz e que se cortava todo) os fios de prata estavam lá e produziam um efeito que o Rogério sentia e que lhe davam todo o conforto possível.
Mais tarde, nos caminhos da América, para onde o relegou a descontinuidade obrigatória do sonho, atravessou o mar e veio de propósito, muito longe, a nossa casa, para sentir de novo o efeito mágico dos fios de prata. Para mim, certamente, outro fruto pessoal e intransmissível da epopeia confidencial e mágica da Galeria de Arte Gávea, galeria açoriana de arte não comercial, função didática e cultural. Não tenho aqui letras de oiro para escrever isto, mas façamos de conta.
Notas a respeito da “conquista” de Ponta Delgada
Em certas conversas mais especiosas do Carlos e do Rogério a respeito dos labores da Gávea, eram mencionadas claramente as movimentações, os gestos reservados, as raras aberturas “do inimigo”, que tinha rosto. Como eu não era habitante para ficar ali, nem conhecia as caras todas, muito menos as de Angra, deixava passar e não retinha identidades nem outras referências específicas. Nos sucessos mais satisfatórios, quando havia muita gente nos acontecimentos promovidos pela Gávea, quando algum notável vinha marcar presença, quando uma voz se abria no silêncio o Rogério confidenciava de modo convicto, numa frase que fez escola entre nós:
− Eles estão-se a chegar, oh Carlos; eles estão-se a chegar!!!…
Isto era dito com eco de grande convicção, prova que qualquer coisa de contornos difíceis estava em marcha a caminho de grandes vitórias. O que Rogério queria dizer é que havia um plano ambicioso que estava a ser cumprido; que havia um “inimigo”, mas que não era isso que iria impedir o progresso já não para “a vitória”, mas para muitas vitórias. E que o inimigo não era para abater, era para conquistar, para convencer paciente e laboriosamente. A única solução possível era manter a energia disponível, continuar a fazer andar as rodas pesadas de mecanismos subtis mas eficazes, alimentar a esperança com actos, demonstrar que tudo era – não obstante – possível. E era preciso alargar frentes, conquistar posições, agregando novos aliados. Um dia o “inimigo”, ou parte importante dele, estaria do “nosso” lado. Tudo se tornaria, já não digo fácil, mas possível.
Depois da minha iniciação nos ciclos expositivos da Gávea, houve portanto tratativas entre mim, o Carlos e o Rogério, para estender a actividade da Galeria Gávea a Ponta Delgada. O Rogério estava necessitado de alargar a dinâmica artística e a “conquista” de mais um cenário de actividades era importante para consolidar os seus projectos junto das forças vivas do arquipélago. O programa do Rogério abarcava esse espaço na obtenção de reconhecimento das instituições e dos apoios respectivos. A vitória final a longo prazo seria a ressurreição pelas artes de toda a sociedade com passagens a outros “arquipélagos”: o do continente e do horizonte ideal e altíssimo das américas!… Sonhar só vale a pena assim, sem freio.
A “conquista” da ilha de maiores dimensões era de importância decisiva. O Rogério vinha para nossa casa e era ali apoiado para lhe permitir colocar em marcha a organização da iniciativa. A história está cheia de tontos assim que pensam que basta apontar uma fisga ao sol para que ele pestaneje, e todos esses estão convencidos de que a vitória é só desejá-la com vontade sem limites.

“composição”, acrílico / Rogério Silva
A cedência da sala para efectuar a exposição em Ponta Delgada foi alcançada com cumplicidades várias de que já não me lembro em detalhe. Ficava a faltar um conjunto de expositores de dimensões e articulação adequada para fazer nascer nas salas amplas do Ateneu Comercial de Ponta Delgada um condicionamento de espaços adequado para a circulação dos visitantes e a apresentação das obras. Como eu residia em Ponta Delgada e possuía uma temática um tanto explosiva (coisas da militância pela paz e visão universalista) fui o artista escolhido. Produzir uma quantidade adequada de obras era a minha parte na tarefa, que comecei a concretizar certo tempo antes. Meti férias, reuni materiais e trabalhei intensamente de dia e de noite para produzir o mais e o melhor possível. Sobre o trabalho produzido falarei noutra altura. O Rogério Silva estava habituado a enfrentar situações e necessidades do tipo mencionado. Hoje há certamente galeristas profissionais e técnicos habilitados em variadíssimas instituições por todas as ilhas dos Açores. Mas naquele tempo, se o Rogério Silva queria expositores… tinha que os construir!… E era isso que ele vinha fazer a Ponta Delgada, algum tempo antes da exposição. Veio portanto para a nossa casa da Rua do Foral da Misericórdia onde comia à nossa mesa; as camisas e outras mudas de roupa eram da minha gaveta e, só mais um pequeno detalhe: o Rogério Silva não sabia fazer a barba!… Nem mais nem ontem, não sabia fazer a sua própria barba! Lá em Angra ia aguentando e, de xis em xis dias, ia ao barbeiro. Em Ponta Delgada, os muitos afazeres não davam tempo nem ele tinha à mão o barbeiro do costume. Solução: passei eu a ser o barbeiro. A mesma “gilettte” que me fazia a barba a mim, fazia a barba dele, para evitar que ele se cortasse todo, pois. Ainda não havia estas coisas modernas de usar e deitar fora, pois a cultura do “deita fora a compra novo” era nesse tempo mais do que desconhecida, reprovável.
A solidão do esforço de Rogério Silva
Ao longo do convívio estabelecido nesse período entre nós várias conversas íntimas com Rogério revelaram a solidão do esforço que empreendeu. Disse-me as coisas que não diria certamente a muitos outros conhecidos e fizemos apreciações, até a respeito de amigos que – não deixando de o ser – guardavam aquele distanciamento pragmático que tantas vezes fazem dos homens ilhas separadas entre si, já não pelo mar, mas pelas frias águas da pouca generosidade. Tivemos, eu e minha mulher, a ideia que era o momento de fazer algo que tornasse clara a nossa solidariedade concreta com Rogério Silva. Não lhe demos do que não tínhamos, porque era impossível, mas das economias domésticas surgiu o que era necessário para custear as despesas de Rogério Silva em Ponta Delgada, ou seja para custear a aquisição ali de todos os materiais expositivos que, construídos em trabalho de sol a sol feito pelo artista Rogério Silva (que também era carpinteiro/marceneiro), nas próprias instalações do Ateneu Comercial, ali ficaram depois à disposição da instituição, inteiramente grátis, para outras exposições.
Quinze contos, que eu bem me lembro. Se eu disser aos portugueses das gerações do euro que, ao câmbio de flutuações monetárias inexplicáveis e tenebrosas, se trata de uns míseros 75 euros, toda a gente se larga a rir. Mas nesse tempo um professor do ensino secundário com horário completo ganhava por mês uns magníficos quatro contos (quatro mil escudos – 200 euros) sendo esse exatamente o meu vencimento inicial no Banco de Portugal (3 contos e seiscentos mais 400 escudos de subsídio de custo de vida para quem fosse deslocado para os Açores). Quinze contos eram portanto quase quatro meses do meu trabalho, que os recém-casados tinham ao canto da gaveta para fazer funcionar a magia das artes do lírico e idealista pintor Rogério Silva.
Foi dos mais preciosos e rentáveis investimentos da minha vida. Dirá o leitor que é pouco elegante, pretensioso, narrar detalhes como este. Setenta e cinco euros, caro leitor!… Não, não foram entregues para pagar esforço físico ou canseira mental; não foi uma gratificação pela gentileza grátis, pelo sentimento sem peias ou pela vontade construtiva do espírito que recompensámos, se essa palavra tão receosa como inadequada aqui pode traduzir o que é impossível de explicar. Foi um gesto, um pequeno gesto que, se fosse possível multiplicá-lo por número indeterminado de vezes, transformaria o mundo. Transformar o mundo, a mais solene e louca das utopias, de efeitos sempre somente idealizados e impossíveis. Algures, de maneira imperceptível, no que nos toca… creio que conseguimos plenamente!…
O produto do meu trabalho artístico tinha características completamente distintas daquelas que faziam parte do imaginário muito conservador e até aristocrático da sociedade Micaelense. Foi um teste terrível para as condições vigentes e, quanto à minha exposição, as conversas entre conhecedores ligados até às escolas nacionais de arte da época, licenciados residentes em Ponta Delgada e seus amigos que viajavam de avião para muito mundo, apesar de confidenciais, tornaram-se bem conhecidas. O caso foi discutido entre mim, o Carlos e o Rogério e a exposição que inicialmente era para ser de “pintura” ou de “pintura e desenhos”, acabou por se designar mediante um neologismo que eu inventei para designar os trabalhos que produzia: “formotemas”. Tinham uma forma plástica de vocação predominantemente desenhística e desenvolviam temas de caracterização surreal, fortemente problemáticos. A sua carga de simbolismos e a acentuação literária dos títulos levaram o Rogério, para dar sinal de sentido de responsabilidade perante os sectores mais académicos, a levar por diante o neologismo: “exposição de Formotemas”.

Portugal encontrava-se em guerra, a temática da exposição estava estampada no teor de muitos trabalhos e no texto do próprio catálogo: Costa Brites ou o Pintor e a Paz. Assim foi promovida a exposição em vários artigos de jornal e profusamente distribuídos os catálogos pelos visitantes que acorreram à inauguração em número significativo, o que foi uma grata surpresa para o seu organizador e para mim, claro.

Estiveram aliás presentes “altas individualidades” como o governador, esposa e filha e outras autoridades. Uma dessas autoridades, o comandante naval, era toda uma figura e esteve a conversar comigo bastante animadamente, tendo enviado nos dias imediatos um ordenança ao Banco de Portugal pedindo para lhe indicar o preço de um quadro algo impressionante que estava exposto e que acho seria a peça mais bem conseguida técnica e simbolicamente: “Marte o submisso”. A obra ostentava o sub-título: “À memória de Gengis Kahn, percursor da guerra total”. Era todo um manifesto. Dada a minha fidelização a todos os princípios matriciais da Galeria Gávea, recusei-me sequer a fazer preço ao Comandante Naval o que, à luz dos dias de hoje e ao esforço relativo da organização do acontecimento, foi atitude de uma ingenuidade sem sentido. A autoridade deve ter pensado que eu era pateta, e teria tido toda a razão. Podendo ter vendido o quadro, entregaria o produto ao Rogério/Galeria Gávea e não seria nada má ideia. Mas os mentores da iniciativa acharam que eu tinha feito muito bem, por uma questão de “princípio ético e moral”. Isto dá uma imagem concreta das visões que me envolviam por aquela altura e do precipício espaço-temporal entre a ilusão pueril e a poderosa e burocrática contemporaneidade.
Em relação às controvérsias que acima descrevi tenho sempre que fazer larga menção da insigne figura do pintor/professor Tomaz Vieira, que regressara da sua posição na Escola Superior de Belas Artes da capital lisboeta e de digressões europeias, para a nobreza do exercício e magistério das artes na sua terra, desfrutando da dignidade da sua casa e da solidez da sua família. Eu tivera o privilégio de o conhecer pela incontornável apresentação feita por Carlos Faria, nos meus almoços na piscina do calhau, ao fundo da Avenida Marginal. Um certo dia, antes disso, tinha entrado numa loja de ferragens que também vendia coisas para a pintura, ali perto da Igreja Matriz, em pleno centro da cidade. Perguntei, com o desplante de um rapaz, por coisas que tivesse à venda para fazer pinturas e conversei abertamente com o lojista com perguntas elementares a respeito da tecnologia das artes, perante a atenção circunspecta de um senhor que ali estava, em silêncio. Muito mais tarde, o artista Tomaz Vieira contou a alguém que tinha sido ele que estava lá na loja daquele seu amigo e que me tinha visto com interesse pitoresco, na sua qualidade de artista e professor de Belas Artes, expandir o meu entusiasmo ingénuo de candidato ao exercício das artes. Julgo que terá sabido associar com simpatia e algum espanto esse momento com a minha intervenção no dealbar do fenómeno – surpreendente e inovador – da eclosão do “movimento Gávea”.

Dias de Melo, 1974, acrílico s/ tela 1000 x 810 mm / Tomaz Vieira
Julgo que a noção altamente evoluída que tinha dos fenómenos artísticos no seu natural contexto de humanidade e o espirito tolerante que o animava, contribuíram para olhar para a Gávea e o seu périplo açoriano com um olhar de naturalidade desejável, longe dos maximalismos esteticistas dos seus conhecidos e até colegas de universidade. A bagagem cultural de que dispunha Tomaz Vieira estava aberta a outras dimensões e não o impedia de ver que o acessório não pode estorvar o essencial que, neste caso, era todo o calor humano e o entusiasmo comunicativo. Entre outras coisas, cujo essencial terá sido o largo rio sereno das palavras ouvidas, ainda guardo do convívio com o pintor Tomaz Vieira a cópia passada à máquina, ainda em Ponta Delgada, de uns apontamentos que me ofereceu para “preparação de bases para pinturas de cavalete”…
Rogério Silva faleceu em 2006, trinta e dois anos depois de 1974 e da queda do regime expressamente desfavorável aos impulsos do tipo do movimento pelo qual foi responsável. Estou longe de Angra e dos Açores no espaço, como estive longe de Rogério durante esses trinta e dois anos. Como será visto o artista e a sua obra na memória de quem ali vive, passado todo este tempo?
um conjunto, naturalmente incompleto, de capas de catálogos de exposições organizadas pela Galeria de Arte Gávea
A Galeria de Arte Gávea e os seus amigos
Tenho muito medo de cometer graves erros de omissão ao nomear apenas alguns amigos que estiveram connosco na movimentação que conduziu a esta exposição. Acima reproduzida encontra-se o retrato de Dias de Melo, em pintura de Tomaz Vieira. Essas duas personalidades artísticas dos Açores estiveram presentes, cada um a seu modo, na movimentação pessoal e no interesse que rodeou a expansão da Gávea a São Miguel.
Sobre Dias de Melo, grande amigo açoriano de presença assídua e actuante, não são necessárias aqui referências que o abonem como homem e como artista. Foi das pessoas com quem mais estreitamente convivi quando em Ponta Delgada e guardo dele, em toda a dimensão da sua personalidade, a mais insígne recordação.

Na lista de nomes de apoiantes da Galeria Gávea em Ponta Delgada, faz parte um amigo nosso chamado João Carlos, já nessa altura autarca da Fajã de Baixo que se tornou, segundo o que julgo saber, o mais antigo em todo o nosso país a exercer as funções de presidente de Junta de Freguesia e que foi mais tarde relevante personalidade do elenco de deputados do Parlamento Regional dos Açores com o seu nome completo João Carlos do Couto Macedo autor, entre outras coisas de um livro de poemas que ainda possuo nas minhas estantes, intitulado “Em Comum com a Noite”, com a sua dedicatória escrita nesse tempo. Todas as pessoas participantes e chegadas a uma iniciativa cultural que foi da sua iniciativa e com a qual tive o prazer de manter um amistoso contacto (O GRAC da Fajã de Baixo) estiveram presentes na inauguração e numa visita especial de encerramento da exposição da Gávea em Ponta, Delgada.
Um dos aspetos em que a organização do evento não foi muito auspiciosa foi no seu documentário fotográfico. Nesse tempo também não havia ainda máquinas digitais…

Os fotógrafos do acontecimento foram pessoas amigas que depois me ofereceram as poucas fotografias que tiraram, sem a qualidade profissional que justificasse reprodução. Se aqui as apresento é apenas para dar provas do que digo, além de serem reveladoras, mais da paciência e da boa vontade do que do meu genuíno conhecimento das técnicas digitais. Nunca valorizei muito estes “recuerdos” que balizaram o enorme orgulho do meu amigo Rogério Silva que, deste modo, via formalizado o seu sonho ingénuo: a “conquista de Ponta Delgada”. Na fotografia da esquerda está o senhor Governador e na da direita o senhor Comandante Naval, com a sua expressiva barba de navegador. Ambos empunham o catálogo da mostra, onde é bem visível o logotipo da Galeria de Arte Gávea, profusamente disponíveis sobre as mesas da sala – testemunho do método próprio de Rogério Silva nas suas realizações. Peço desculpa aos historiadores do arquipélago e aos eventuais interessados Micaelenses, se os houver, mas não me lembro do nome de nenhuma das individualidades retratadas. Todas estas fotografias dormiam um sono descansado em velhos envelopes meio guardados, meio perdidos, nas minhas caixas de papéis antigos.

Na imagem da esquerda vê-se o momento da abertura da exposição em que o senhor Governador de então conversava comigo, na proximidade de Rogério. Na foto da direita o meu amigo João Carlos Couto Macedo fala com uma pessoa conhecida. O desenho que contemplam que não sei onde foi parar, resultou de uma conversa com Carlos Faria. Mostra uma cena inquietante: um ogre gigantesco come gente, nem mais nem menos. Se formos a pensar bem é um episódio muito mais frequente do que podemos imaginar, no presente como ao longo de toda a história da humanidade.
A atenção dispensada à realização de Rogério Silva
Como digo noutro lado das minhas recordações destes factos, nunca valorizei a minha intervenção ao ponto de me sentir o protagonista fosse do que fosse. Embora tenha feito o mais e o melhor possível para desempenhar o meu papel, o meu ego não inflou nem um grama porque o meu sentimento era de que tudo não passava de um episódio esquecido mesmo antes de suceder, ou algo que só começaria muito mais tarde e, mesmo assim, com grandes incertezas. Que não fiquem aliás as mínimas dúvidas a quem lê: este trabalho tem como razão fundamental a memória que guardo do meu caríssimo Rogério Silva, homem de sentimento e muito carácter.

O eco da exposição de Ponte Delgada foi invulgar e revelou uma inegável recetividade e grande respeito que os açorianos em geral e a comunicação social em particular tiveram por esta iniciativa. Não vou atrever-me a fazer generalizações dado que não tenho bases suficientes para tal. A minha passagem pelos Açores foi demasiado excitante e tão veloz, que, sendo bem verdade o que disse no parágrafo anterior, conservo a sensação de distanciamento perante os factos e de imunidade face à auto-contemplação.
Os testemunhos jornalísticos de tal atenção, as circunstanciadas entrevistas para a rádio (uma das quais foi até transcrita num jornal que acabo de recuperar com estupefacção dos meus arquivos antigos…), as referências críticas publicadas em primeira página (!…) a generosidade e abrangência dos comentários feitos e abundância de outras notícias de antes, depois e durante a exposição excederam todas as (aliás inexistentes!…) expectativas.
Não posso dizer que tenha sido mal tratado em Coimbra, onde realizei exposições nos locais mais desejáveis para o efeito e onde pessoas de muita qualidade me dispensaram uma atenção muito honrosa mas… o balanço utópico da raridade onírica ficou para sempre nos Açores e foi… a excepção que confirma a regra.

Carlos de Amaral Carreiro do Diário dos Açores
No Ateneu Comercial de Ponta Delgada abriu recentemente uma exposição de pintura de Costa Brites, organizada pela galeria «Gávea», de Angra do Heroísmo, que se reveste de grande interesse como afirmação de mais um artista entre nós. A exploração do mundo do fantástico e do imaginário foi sempre uma constante do homem permanentemente preocupado com os seus problemas íntimos e terrores obsessivos. O fantástico, na pintura de Costa Brites passa a ser uma nova realidade, tão certa como a que nos cerca todos os dias. São outros os ambientes, as estruturas, as forças, os habitantes mas, no fundo, o universo desta pintura é feito de elementos tirados ao mundo em que vivemos, recriados em novas dimensões do real. Até na própria escolha dos títulos para os quadros Costa Brites faz disso um ato criador, formando palavras novas a partir doutras muito usadas, o que torna ainda mais intrigante a sua pintura, acentuando-lhe o cunho poético de um artista pânico. Como exemplo, reproduzimos alguns títulos de quadros: «Burocratia», «Tecnosilenciomaquinocracia» e «Crocodilização da boca». A pintura de Costa Brites é essencialmente desagradável à vista a quem não está habituado a pousar os olhos naquilo que vai contra os conceitos convencionais do belo. Temos de nos convencer de que a arte dos nossos dias não é só descanso e deleite para os olhos, mas há outras procuras lúdicas, intrigantes, ilusórias, ambíguas que tornam a relação entre o espectador e a obra de arte mais activa e participante. Costa Brites peca um bocado na sua exposição pela falta de unidade estilística. Contudo, nota-se que são experiências diversas dum artista à procura de definição, atingindo alguns quadros um exagero barroco que não o favorece, pois tornam-se de difícil leitura, parecendo ter elementos a mais. Costa Brites necessita fazer uma depuração aos elementos do seu universo, estruturando-os em linhas de mais fácil leitura, sem, contudo, perder toda aquela força voluptuosa e infernal, mas evitando a insistência em certos elementos bélicos, por exemplo, que, pelo menos da maneira que estão sendo tratados actualmente, pecam pelo aspecto ainda panfletário.
Há três quadros de excelente qualidade e que são já o prenúncio de um caminho mais seguro que se abre a Costa Brites. É o nº 18 do catálogo “Decomposição do rosto”, o nº 20. “Crocodilização da boca”, e o n° 23, “Morte irónica – I”. Estas três pinturas, em especial a n° 18 destacam-se do conjunto. O rigor factual do desenho cheio de perspectivas inventadas, dando a tudo uma possibilidade de encaixe funcional, faz desses quadros os mais originais e melhor concebidos por um artista que se revela grande esperança das nossas artes.
É de louvar a atitude extraordinária do artista terceirense Rogério Silva, auxiliado por Carlos Faria e João Carlos, que vêm desenvolvendo uma campanha em prol das artes e das letras, verdadeiramente notável, atendendo aos poucos recursos de que se servem, lutando desinteressadamente e com sacrifício, aturando todo o género de recusas e críticas daqueles seres hermeticamente fechados à inovação e à cultura de massas que se agarram às imagens e mitos e de um passado que não foi deles para atacarem um presente que queremos seja de nós todos.
Carlos de Amaral Carreiro
O registo desta opinião teve um valor muito significativo para mim e para Rogério Silva por representar um dos diários de maior circulação em Ponta Delgada com o qual nem eu nem os outros amigos da Gávea tínhamos relações de confiança pessoal. A atitude de Carlos Amaral Carreiro foi um sinal do clima de receptividade e abertura que se observava no meio cultural de Ponta Delgada, em Angra do Heroísmo e nos Açores em geral. Sinto-me aliás uma testemunha apta a dar opinião bem documentada a esse respeito, pelo excelente clima pessoal e cultural a que tive acesso e de que fiquei com saudades. O meu regresso ao continente, em particular a Coimbra, revelaram-me um ambiente em nada comparável com o que tive a ocasião de viver nos Açores. Carlos do Amaral Carreiro, menos próximo dos amigos da Gávea que outros comentadores, produziu um texto muito interessante e motivador das visitas da exposição com o qual não apenas estou completamente de acordo no que toca ao meu trabalho de então, como me cabe registar as observações particularmente justas e interessantes relativamente à Galeria Gávea e a Rogério Silva.
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Dias de Melo, comentário publicado no “Correio dos Açores”
Do lado dos meus amigos e dos amigos da Galeria Gávea, avulta naturalmente o texto apreciativo de Dias de Melo, pela honra que constituiu o testemunho dessa notabilíssima figura das letras açorianas. Conhecê-lo e ter convivido com ele é das recordações mais gratificantes e honrosas que trouxe de Ponta Delgada.
Também se pode fazer poesia com o lápis de desenho e o pincel das tintas. Prova-o Costa Brites com os quadros que tem em exposição no Ateneu Comercial de Ponta Delgada. Quando a gente vê aquelas caras sem olhos e aquelas cabeças recheadas de rodas; quando a gente vê aquelas caveiras que devoram a terra e quanto existe na Terra; quando a gente vê a face daquele homem que assiste indiferente aos lutadores que se destroem; quando a gente vê aqueles peitos de que saem bocas de armas e aquelas criaturas de faces vazias, e aquelas criaturas de dedos acorrentados, no meio de canhões e de arame farpado; – quando a gente vê tudo isto, com aquela deformação (intencional) das formas e com aquela cor que as reveste carregada de significado — a gente sente-se (arrepiadamente) diante do homem atormentado do nosso tempo, que, ao fim e ao cabo, não faz mais do que carregar sobre os ombros a herança que nos foi legada, agravadamente legada, pelo pensar e pelo sentir, sob o signo da incompreensão e da violência, pelas gerações que nos precederam. Homens despidos de alma, pensando em termos de técnica restrita; homens desumanizados, procurando caminho na vida — ou construir uma vida nova sob o império exclusivo da máquina e sob a lei implacável da força, com todas as limitações que por todos os lados nos cercam; homens que, se buscam ainda as soluções do espírito e pelo espírito, se encontram isolados, se encontram sós, e esmagados, no meio dos homens. Isto (para mim) — o simbolismo dos “formotemas” de Costa Brites. Isto — o poema dramático que ele escreveu com o desenho e com a cor, como o poderia ter escrito com a caneta e utilizando as vinte e tantas letras do velho alfabeto latino. Por isso eu digo que se pode fazer poesia com o lápis de desenho e o pincel das tintas. E por isso eu sinto, dolorosamente, a exposição do Costa Brites e lhe admiro, no talento, a grande capacidade de comunicação humana.
A exposição de Costa Brites foi organizada pela Galeria Gávea, de Angra do Heroísmo. E a Galeria Gávea — é o pintor faialense Rogério Silva. Existe há pouco mais de um ano. Realizou já exposições na Terceira, no Faial, em S. Jorge, em Santa Maria. Nas cidades. Nas vilas. Nas freguesias rurais. Esta é a 32ª. Tem trazido até ao Arquipélago valores dos mais significativos do Continente Português, até do estrangeiro, numa exposição recente de crianças das escolas de Paris. Além disso, com a página literária de «A União», «Glacial*, dirigida por Carlos Faria, mantém a colecção «Gávea-Glacial», já com um bom número de obras publicadas. Ter-nos-emos nós, açorianos, apercebido do quanto vale e significa esta Obra de Rogério Silva? Saberemos nós testemunhar-lhe a admiração e gratidão que merece?

Fraga Brum, no mais antigo Jornal português – Açoriano Oriental
Escrever, pintar, representar ou falar para um público heterogéneo, nunca foi, nem nunca será tarefa fácil, dada a capacidade receptiva e perceptiva que mora e se agita no pequeno mundo de cada indivíduo. Diversas correntes, quer literárias, quer pictóricas têm agitado e impressionado o mundo dos nossos dias, na ânsia de levarem às Sete Partidas do Globo uma nova mensagem, mas que, dada a sua subjectividade, objectivamente não consegue universalizar-se, pois que, além da falta de mentalização adequada e absolutamente necessária, temos que contar com os estados idiossincráticos que se acobertam e presidem ao pequeno mundo de cada ser pensante. Assim Costa Brites, com os seus formotemas dispersos por trinta e três quadros, procurou trazer até nós «páginas» vivas da nova mensagem, em que mãos esquálidas e suplicantes se erguem, pedindo algo que as reconforte, retempere e alivie dum pesado fardo que esmagando o homem o toma número, peça ou engrenagem da grande e poderosa máquina universal. Ansiedade, tortura, súplica, revolta, esmagamento, destruição, ternura, evasão, desejos incontidos… de tudo nos falam os formotemas que Costa Brites ofereceu à nossa sensibilidade, restando-nos, apenas, desejar, ao jovem artista, um pleno êxito, com sinceros votos para que a mensagem de arte ora trazida até nós seja, na verdade, absolutamente compreendida..

João Carlos (Couto Macedo) – texto do catálogo da exposição com referência de capa no diário Açores de 8 de Dezembro de 1970
Entre o artista e o público, a imaginação é, aqui, o remetente e o destinatário. Não como forma de evasão da realidade, mas como processo de reformulação − ou recriação − dessa mesma realidade, através de metáforas fantásticas e, ao mesmo tempo, acessíveis, que conduzem facilmente ao diálogo sobre temas de extraordinária importância.
Costa Brites crê na capacidade do homem-indivíduo para se redimir a si mesmo, pelos seus próprios meios. Se o homem pensa, torna-se consciente. De onde a sua necessidade de agir, que o leva a, libertar-se dos monstros e a entregar-se à construção de um mundo novo.
Eis aqui, portanto, uma proposta, muito mais do que uma simples atitude. Porque esta Arte não se desenha no círculo fechado de uma personalidade. Um sentido estrutural de diálogo marca-a desde início, fazendo-a explodir em formas excitantes e magníficas, onde a denúncia da condição humana, com especial relevo para as situações de escravização, resulta num simultâneo apelo à liberdade e à paz.
Falta dizer que são estudos formalmente não definitivos. O que se nota logo pelos materiais utilizados: madeira prensada ou marcadores de ponta de feltro. Costa Brites é um artista mágico, de recomeço incessante.
João Carlos (Couto Macedo) – PONTA DELGADA, 0utubro1970
A generosidade do texto de João Carlos Couto Macedo extravasa do leito em que corria o seu carinho pela Galeria Gávea e até da simpatia e amizade pessoais. A última frase deve ser entendida neste sentido: Foi falada entre nós uma das minhas (já) tendências dominantes, a de não me conseguir ficar pela expressão de um certo modelo, embarcando sempre em novas atitudes de cada vez que começo. Mas tarde classifiquei isso como “tendência heteronímica” e está bem documentada num texto de apresentação do meu trabalho “Um artista pode ser muitos, ter vários nomes…” , e era isso a que aludia João Carlos.
A visita de encerramento por iniciativa do GrAC da Fajã de Baixo

Com uma visita coletiva promovida peio Grupo de Animação Cultural GrAC da Casa do Povo da Fajã de Baixo, encerrou-se anteontem a Exposição de Formotemas do Artista Costa Brites, que a Galeria de Arte Gávea levou a efeito, com- pleno êxito, no Ateneu Comercial de Ponta Delgada. Participaram na visita doze pessoas e, antes do início, o Pintor Costa Brites, que acompanhou pessoalmente os visitantes na observação dos trabalho expostos, teve palavras de muito apreço pela iniciativa tomada pelo GrAC da Fajã de Baixo, incentivando os participantes a cultivarem cada vez mais o espírito de, camaradagem e de amor pela Beleza e pela Cultura que não é. segundo ele próprio disse, uma simples acumulação de conhecimentos (por vezes suscetíveis de se perderem de memória), mas ante, um conteúdo espiritual que vai ficando no fundo da personalidade para alimento da Vida. Costa Brites, durante a visita, esclareceu ainda vários aspetos dos seus quadros que suscitaram diálogo entre 0s presentes. Pelo que nos foi dado observar e pela natureza dos comentários trocados, estes ficaram extraordinariamente entusiasmados com a Arte assim tratada em termos de atividade vital e social. No final, a Sr.a D. Maria José de Araújo Faria entregou aos Artistas Rogério Silva e Costa Brites, como oferta da Casa do Povo, dois exemplares da «Obra Poética» de Duarte de Viveiros, que nasceu na Fajã de Baixo, em 1898. Costa Brites exarou nos catálogos palavras de estímulo e amizade, sentimentos que fecharam com chave de ouro esta esplêndida realização da Galeria Gávea em Ponta Delgada.

Jota Álamo, “pausa para meditação” – Diário Insular de 18 Janeiro 1970
O mundo agita-se sacudido por um diabo de intenções canibais que nos faz abraçar a ideia de que todos caminhamos para o primitivismo vampírico, engrenado numa palavra viva e «actuante»: Guerra. O homem distorce-se nas invenções bélicas, na sua ânsia enorme de aniquilar para experimentar o gozo da obra destruída. Deve ser fantástico apreciar da Lua o nosso mundo distorcido, com meia dúzia de sobreviventes grotescos que ainda levantarão as mãos a clamarem uma vida decente e possível. Não vem longe o tempo em que alunar será sinónimo de pisar. (Isto não é profecia). Este mundo do delirio, da arma, da máquina, da droga, caminha com destinos «bonitos» e inverosímeis, atrás do ruído de uns caracteres descomunais nas páginas de um jornal. O poeta faz versos para esquecer ou para apontar onde está o fogo. O artista plástico transfere-se com as mesmas intenções. O músico, idem, idem, aspas, aspas. Pensei nisto ao ver a coletânea de desenhos de Costa Brites, onde ele traçou uma vista panorâmica deste nosso mundo sem patas; onde os braços, que afogam, saem da cabeça; onde os canhões, que assassinam, saiem do cérebro, dos olhos, da boca. Num vigorismo desconcertante, numa mão firme e sem hesitações, o mundo está lá − negro e bizarro − em amarelos que nos subjugam e esmagam e com poder de persuasão. A mensagem de Costa Brites é autêntica. Encontra-se essa mensagem no conteúdo total da obra embora «o pintor» tenha morrido já «o ano passado». (Ele não morreu, minha gente! Não morreu! Deixemos «o pintor» convencer-se disso. A obra nega a morte. O artista, como o bicho da seda, tem de morrer para criar). Costa Brites libertou. Pois, incondicionalmente, é legada uma liberdade que permite, aos artistas, vomitar tratados de paz, de humanismo e de verdade para a abolição dos antropófagos com a sua vontade de tragar. A exposição ide desenhos (desculpem não dizer «de pintura») de Costa Brites não é para a gente gostar. É para ver, pensar, assimilar e sair de lá com a promessa de dar as mãos, quebrando as correntes da incompreensão e do ódio. O Irmão-Costa-Brites-sem-Flores avisa-nos que nem só de flores vive o homem, mas de mãos, muitas mãos, entrelaçadas confiadamente!
Neste inverno de cada um, 17.JAN.70
O somatório de todos estes elementos, graficamente demonstrados pela reprodução dos periódicos em que foram publicados, não esgotam os ecos do alargamento da actividade da Galeria Gávea a Ponta Delgada, a que falta um capítulo: a extensa entrevista dada por mim ao Clube Asas do Atlântico e que foi publicada na íntegra pelo jornal “Açores”.
Dado que os meus trabalhos foram praticamente todos oferecidos à Galeria Gávea quando regressei ao continente, é-me impossível dar a ver um dos que estão mencionados no catálogo da exposição. Tenho pequenas fotografias de muito má qualidade e, ao fazer estes textos e a pesquisa respectiva, tenho tido vontade de refazer alguns deles. Para já tenho, entre outros, um grande desenho sobre cartolina que fiz em Coimbra, quando recomecei a desenhar logo depois de ter instalado a minha família. Este como outros trabalhos foram expostos na Galeria Diedro, em Leiria, que foi fundada pelo Dr. José Henriques Vareda, dinamizador associativo, político e cultural da mais distinta estirpe. Com características muito diferentes como é humanamente compreensível e num outro cenário, mas no mesmo período histórico, pode ser entendido com um outro Rogério Silva, como há tantos – felizmente – para dignificação da humanidade. Vários trabalhos meus ali expostos – como este – escaparam por um triz de ser destruídos na Rua, quando a Galeria Diedro foi vandalizada e queimado todo o seu recheio – no Verão quente de 1975, por activistas de extrema-direita. Alguns outros que tinham ficado no acervo da galeria não tiveram a mesma sorte…
Aqui fica o desenho em referência, já mais sofisticado tecnicamente que os que fazia nos Açores, mas que – executado em 1973 – em tudo se identificava com o “espírito Gávea”:

desenho s/ cartolina 70×50 cm, Costa Brites, 1973
De notar que este trabalho, feito sobre uma folha de cartolina de 70 x 50 cm, como os que fazia em Ponta Delgada, era executado com marcadores de várias cores, mas com o uso agora já alargado a uma caneta “flo-master” e a outros recursos gráficos. Nos trabalhos da Galeria Gávea era hábito não assinar (outra atitude compatível com o “espírito”…) mas neste desenho surge já uma assinatura algo rudimentar feita casuísticamente à época, a pedido da Galeria Diedro. O tema, nas suas motivações evidentes – esquadrinhável também nos textos dos catálogos da Gávea – ou eu me engano muito, não perdeu nem um grama da sua temível actualidade.
Detalhe importante da exposição em Ponta Delgada
Em qualquer trabalho que se faça, há certos detalhes que fazem a diferença. Ao encerrar este texto, no último par de fotografias a preto e branco, pode ver-se à direita uma espécie de vestíbulo da exposição que Rogério Silva montou à força de braço e boa vontade. Nesse vestíbulo apresentou um resumo ilustrado de toda a acção que a Galeria de Arte Gávea vinha desenvolvendo nos vários locais onde estava activa. Isto é, não era uma simples exposição de um artista, fosse ele quem fosse, era também um escaparate de um projecto, o seu projecto que – como pode ver-se – cativou a atenção de muito público:

À esquerda vê-se à entrada da sala o Senhor Martin Vincente Lezaola com quem Rogério Silva conversava (ao fundo vê-se o tal vestíbulo de apresentação do historial da Galeria Gávea). À direita. no sentido inverso, vê-se ao fundo um grupo de pessoas que conversava com o expositor e, a meia distância, o Rogério Silva. Julgo que este dia foi aquele em que um grupo da Fajã de Baixo fez uma visita organizada à exposição. Nesta imagem, em primeiro plano, pode ver-se um dos painéis onde está documentada a actividade da Gávea.
Evocar a tarefa dos desinteressados promotores de cultura
Se o que eu penso tiver alguma razão de ser, e por isso afirmo noutro texto também aqui publicado que “os Rogérios Silva fazem muita falta por todo o lado” todas as evocações e todas as referências irão ser inúteis e tardias, menos a da recordação emocionada e do sentimento de admiração. Muito a sós comigo acrescento o agudo sentido de perda que figuras como esta me suscitam, por se ter eventualmente perdido o melhor que tinham para nos dar. A terceira república deu origem a transformações excepcionais em muita coisa, e bem assim nos Açores mas há uma pergunta que me atormenta um pouco:
A galeria de arte Gávea conseguiu surgir no tal regime adverso. Soçobrou, é certo. Mas qual seria o destino de outra Gávea se surgisse um outro Rogério Silva, o que, a suceder, seria um acaso prodigioso? E porque é que eu não encontro sinais visíveis da ingénua epopeia de Rogério, e dos seus trabalhos de artista, nem sombras?
Na terra onde vivo as grandes modificações que se deram na sociedade portuguesa encontram-se também em evidência e são igualmente notórios os exemplos de pouca generosidade e de fraquíssimo ou nulo acolhimento do trabalho e do valor de certas figuras tão insígnes e tão generosas como Rogério Silva (Já para não falar de Henriques Vareda e dos autor-de-fé de Leiria em 1975…) Tenho a certeza que tais exemplos continuam a surgir e a manifestar-se em muitos lugares e nas mais variadas circunstâncias. Esses casos, embora pouca gente saiba, continuam a semear luminescências subtis por aqui e por ali, lavrando o chão da consciência dos povos e abrindo caminho por onde podemos – se assim desejarmos – orientar os nossos passos e contentarmo-nos de ser gente, mulheres e homens capazes da alegria e da esperança.
Uma colaboração entre mim e o Rogério Silva
Da observação desenhos de Rogério nasceu a certa altura em mim o desejo irreprimível de fazer inserções de cor, o que é possibilitado pelas ferramentas digitais de tratamento de imagens.
De forma a desafiar os visitantes a entrarem no menu, em: “colaboração entre mim e o Rogério Silva” junto abaixo as primeiras explorações cujo teor serve para demonstrar a versatilidade e a eloquência dessas obras de Rogério.
Ora vejamos:

desenho nanquim s/ papel, Rogério Silva
O trabalho original aqui presente (com um enquadramento – ou “passe-partout” que faz imensa falta às reproduções tipográficas) aparece, conforme o próprio original, a preto e branco, embora a brancura do fundo se apresente numa tonalidade cromática a que o meu amigo não teve acesso, por falta de recursos tecnológicos.
Sonho (ou pressinto?…) que ele acompanha de perto estas minhas explorações, exprimindo as suas dúvidas quando me engano ou sou mal sucedido, e encorajando-me a prosseguir quando as coisas me saem bem. A aventura está apenas a começar…
Muito eu gostava de ter ido um tempo viver com o Rogério em Nova Bedford!…
A fase seguinte representa um avanço espectacular desta colaboração activa entre gestos criativos de 1978 e habilidades recentes de um curioso que usa a camaradagem artística. mas que chama a atenção que o potencial criativo que aqui se encontra pertence de modo integral a Rogério Silva!…

composição cromática c/ desenhos de Rogério Silva (ver Rogério Silva visto pelos meus olhos)
Obrigado pela atenção dispensada, voltem sempre. Se são dos Açores – ou têm lá amigos – divulguem estes textos, por favor. Quer eu, quer o Rogério Silva, ficamos muito gratos. Mas o destinatário principal desse gesto mora na vossa consciência de boa vontade.
Até um dia destes.
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