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António Pedro Pita – Um lápis enquanto sonho / Setembro de 1993

Alta-Quebra Costas, acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites

Alta-Quebra Costas, acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites

1. Ao inaugurar mais uma exposição, Costa Brites apresenta o seu primeiro livro, Visualidades.

A ele pertencem estas palavras: “as minhas opções são assumidamente alheias à necessidade – que não quer dizer indiferença – da determinação “moderno/não moderno”. Gostaria de sugerir que tal alheamento tem sido responsável por uma leitura superficial deste universo pictórico ao incluí-lo imediatamente num desses polos (o não moderno) e demasiado rápida para aperceber-se das subtilezas de que se alimenta este filho longínquo, mas não tardio, da constelação surrealista, cuja peculiar figuração muito deve às lições da pop-art, à importância do enquadramento cinematográfico, à fotografia e à utilidade expressiva da colagem. Que a reconstituição deste trajecto – desde as primícias de 1968, no meio culturalmente vivo que o arquipélago dos Açores (já) era, até às soluções estéticas actuais – seja difícil, insólita ou paradoxal, consoante o observador, não me custa admitir. Mas não me é menos claro que uma tal reconstituição – possível, unicamente, através de uma retrospectiva que, além da pintura, exponha também o desenho e o trabalho gráfico – evidenciaria alguns possíveis modos de apropriação de tendências fundamentais das artes plásticas do nosso século. Pela frontalidade com que interpela o espectador esclarecido, pela radicalidade com que elabora a fascinação fotográfica e pelo território frágil em que obriga a estabelecer critérios e desenvolver argumentos, a pintura de Costa Brites exige uma pausa reflexiva quase pelas mesmas razões em que, à primeira vista, parece dispensá-la. E é no ligeiro movimento implicado neste quase que tudo se joga. Não é a pintura, todavia, que em primeiro lugar deveria referir. Mas este livro, o primeiro livro de Costa Brites, intitulado Visualidades.

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 2.“A obra dum artista é indesculpável, seja qual for a roupagem de que se cinja” (Costa Brites).

O que é este livro? Uma autobiografia oficinal? Uma reflexão teórica sobre o fazer-se da pintura e as suas condições, estéticas e históricas? Uma colectânea de poemas? Uma espécie de diário pessoal e de trabalho? Serão estas, contudo, as perguntas justas, quero dizer, ajustadas ao livro a que se reportam? Suponho, de facto, que só de um outro modo é possível adequarmo-nos a este dispositivo textual, ver e saber o que o livro nos propõe: porque não sendo em rigor uma autobiografia oficinal nem uma reflexão teórica nem um diário, nem um ciclo poético, e não sendo também nem paráfrase nem explicitação do que o pintor já exprimira em tela, Visualidades fala de um momento anterior à pintura mas sem o qual a pintura não existiria, sua condição razoavelmente obscura. Será possível, porventura, traçar o gráfico desta obscuridade pelo carácter “poético” ou “racional” da escrita de Costa Brites. Que as aspas nos ajudem a aludir a um problema que não pode agora ser desenvolvido. Notemos, de passagem, este aspecto curioso: a segunda parte, “poética”, intitula-se “Ecos da cidade e outras coisas“; como se o sujeito da escrita fosse o local de ressonância de um som e de uma voz que vêm de longe, de uma origem porventura inacessível ou indeterminável, e que por isso mesmo precisa dessa ressonância para determinar-se, precisa de uma escuta que, ao mesmo tempo, seja acolhimento, interpretação e significação. Na primeira parte, “teórica”, “Falas do pintor“, o artista desenha os limites da sua perspectiva, refere momentos de um processo de tomada de consciência teórica. Subiste o problema fundamental da articulação destes dois níveis: o facto de Costa Brites nos propor, como totalidade, um Livro Primeiro (“Falas do pintor“) e um Livro Segundo (“Ecos da cidade e outras coisas“) sugere a ligação, que deve ser meditada, entre 1) o Objecto que se dá em eco, 2) a subjectividade que interpreta o eco, 3) a mão que exprime pictoricamente.

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3. O Objecto que se dá em eco é a Cidade. Mas a Cidade é uma realidade contraditória: comunhão e isolamento, silêncio, ruído e morte, júbilo de existir, “experiência alucinante de viver”. Leia-se: “Eu sou uma dor que caminha ausente/ Estou aqui à espera e ninguém me encontra”. Mais do que um desencontro pessoal, de expectativa frustrada, é aquele descentramento de uma dor que, ao ser subjectivada, radicaliza um essencial mecanismo de alienação, que nos fornece um traço forte da Cidade que já não é “lugar de encontro e de diálogo”. Não sejamos iludidos pelas palavras: há em vários destes textos e em especial no sentido gerado pelo conjunto uma raiz que excede o humanismo balofo das boas intenções. Escrever: “Já não existe espaço na minha carne/ para o sentido da força/ para a coragem do prazer”, é reivindicar um espaço próprio de afirmação do desejo; mas fazê-lo é rasgar os próprios limites do humanismo, como mostra a difícil recuperação humanista de Espinosa e Nietzsche, que fizeram desta afirmação um eixo fulcral.

Espaço, pois: “espaço na minha carne” 1) traduz, na terminologia de Costa Brites, a condição primeira para superar a indeterminação, para ir além da facticidade. Como se fosse necessário, para o advento de um (do) sentido, uma espécie de dilaceração íntima, um rasgo na compacticidade do ser, uma descontinuidade – a inscrição, na própria imanência, de um ponto de fuga , mistério, mar (“Eco distante de encontrar meu mistério/ minha fuga/ meu mar interior”). Neste sentido, a alusão à “cidade sem espaço” é particularmente significativa. A Cidade não é só uma concretização do espaço: a Cidade é uma concretização convivial do espaço (“a civilização do espaço é um acto cultural”): deverá permitir falar de janela para janela e da janela para a rua, ser generosa para velhos e crianças, ser possibilidade de silêncio e paz. O espaço na cidade, para existir, necessita da “aragem de mistério, inspirador e fecundo, que invoca em cada objecto a presença transitória, mas eficaz, de cada ser e de cada ideia”. Isto é: para existir como tal, a Cidade não pode extinguir o mistério, a marca individual, a voz solitária.

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4. Submetida a um rápido processo de crescimento desregulado e especulador, a Cidade desenvolve até ao paroxismo uma contradição: é preciso reduzir o espaço para acolher mais gente que precisa de mais espaço para viver. Em rigor, o Objecto que se dá em eco neste livro de Costa Brites é a Cidade assim dilacerada, ou melhor, é a própria contradição que dilacera. Compreende-se, deste modo, que à Cidade-real, desfigurada e pobre, triste e sem alma, seja contraposta não propriamente uma Cidade-ideal, que seria o positivo da outra, mas uma Cidade-mito, fundamento íntimo da própria ideia de Cidade. Mais demorada reflexão sobre este ponto permitiria desfazer um duplo equívoco: o de considerar a pintura de Costa Brites subordinada ao fascínio da fotografia e o de a ligar imediatamente à representação de algumas cidades (Coimbra, Leiria, etc.). Pelo contrário: a verosimilhança, nesta pintura, é o campo (arriscado, subtil, irónico) de um jogo que o pintor iniciou há muito com os leitores da sua pintura. Porque, em verdade, nenhuma cidade real é o referente desta pintura. Na tarefa de representar a Cidade-mito, Costa Brites realiza, com a maior coerência, uma pintura, como se diz, “sem pessoas”, uma vez que o mito é uma estrutura pré e trans individual que, precisamente, ordena e dá inteligibilidade à vida das pessoas. Fica reservado ao rigor geométrico do traço, ao diálogo das cores, à harmonia das superfícies, à obsessão pelo detalhe o trabalho de nos representar possibilidades de um espaço aprazível, comum, feliz, misterioso, percorrido de “verdades assombrosas” e de “sonhos de aventuras”.
5. “O artista escolhe tal assunto porque ele lhe é consubstancial, porque este assunto desperta nele uma certa emoção, sustenta uma certa interrogação; não se trata de copiar mas de dar através dele um equivalente sensível tanto da significação afectiva como intelectual que este assunto tem para ele: Rouault não pintou um Cristo mas através do Cristo um equivalente pictórico do que o Cristo significa para ele. O objecto é representado na sua verdade, pelo menos na verdade que dele o artista conhece, e não na sua realidade lisa e insignificante”. 2)

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6. Ao reconhecimento, “Olha a Rua das Flores!”, deverá substituir-se uma interrogação: “Qual é a cor da felicidade?”

7. Recordemos o debate entre os desenhistas e os coloristas: “O desenho imita todas as coisas reais, enquanto a cor só representa o que é acidental” (Le Brun). Compreende-se pois que os racionalistas privilegiassem o desenho, em nome de uma “transcrição” fiel da realidade.

Mas o lápis de Costa Brites (“Pego num lápis enquanto sonho”), exacto, rigoroso como uma navalha, está no limiar de uma aventura. Imita. Mas não imita o que se vê, “coisas reais”. Desenha serpentes, estrelas. Primeiro, o lápis, como uma navalha. Todo o trabalho de reconstrução (que é também adivinhação 3) ) do mundo, que a pintura é, começa aí. Porém, o facto de Costa Brites relacionar o lápis e o sonho (o exercício da razão e o seu adormecimento) é muito significativo, e a própria estrutura da frase enigmaticamente sugestiva. Pegar no lápis enquanto sonha para pintar (quer dizer, reconstruir) a Cidade, mais do que subordinar o rigor da mão que desenha ao adormecimento da consciência, significa inscrever aquele rigor neste adormecimento. Ou ainda, para retomar considerações iniciais, significa que toda a consciencialização (“pego no lápis”) nasce da obscuridade (“enquanto sonho”). Mas há na formulação do pintor uma outra possibilidade: pegar no lápis enquanto sonho poderia ser um modo de designar a matéria de que o lápis é feito. Hipótese não desprezível, à luz da doutrina do referido debate e da importância do desenho na estruturação da Cidade-mito de Costa Brites. Como se, afinal, o lápis – este lápis: “o lápis enquanto sonho” – resolvesse a contradição entre a consciencialização e a obscuridade. Como se, a mais de saber os contornos exactos de serpentes e estrelas – este lápis, antes de reconstruí-las, adivinhasse a cor da solidão e da melancolia.

ANTÓNIO PEDRO PITA

Figueira da Foz, 1 de Setembro de 1993

1) – O que se escreve agora, quanto a este ponto, poderá ser lido como eco da conhecida tese de Maurice Merleau-Ponty: “Mon corps est de la même chair que le monde”.

2) – Mikel Dufrenne, Phénoménologie de l’expérience esthétique – I, PUF, Paris, 3ª ed, 1992, p. 393-394.

3) – Costa Brites: “Se pinto, adivinho e reconstruo o mundo”.

Pedro Dias – Exposição Museu Machado de Castro, 1989

Texto de catálogo da Exposição que teve lugar em Coimbra no Museu Nacional de Machado de Castro em Novembro de 1986, organizada pelo então director Professor Pedro Dias, e de autoria do mesmo.

O mesmo texto, com algumas alterações de carácter curricular foi publicado pelo Departamento de Cultura do Concello de Vigo, por altura da exposição naquela cidade de trabalhos integrados no Encontro Vigo Coimbra, em Maio de 1989

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Quase todas as cidades de características peculiares ou fecunda história tive­ram os seus pintores, artistas que as compreenderam, que as amaram e souberam captar aquilo que as individualizava e tornava distintas das restantes. Poderá dizer-se que, até hoje, tal não aconteceu com Coimbra, pese embora que os seus recantos mais típicos ou a larga mancha do seu casario modesto em anfiteatro cubra centenas de telas, a maioria das quais executadas já neste século.

Parecerá isto uma contradição, mas não é a mesma coisa ser um pintor da cidade ou alguém que pinta a cidade. O primeiro é o que a ela se dedica de alma e coração, exclusivamente, permitindo-se, quando muito, uma escapadela a um tema marginal, para logo regressar. O segundo usa a cidade como motivo, de quando em vez, como mais um dos do seu reportório. Foi isto o que se passou com Cristino, ainda no final de Novecentos e sobretudo com Fausto Gonçalves e José Contente, mais recentemente, só para citar alguns dos que já nos deixaram, há várias décadas.

Alta - Bota Abaixo; acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 1984-86

Alta – Bota Abaixo; acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 1984-86

Coimbra não teve até hoje, como Lisboa teve Carlos Botelho e o Porto António Cruz, quem a elegesse como motivo primeiro e permanente da sua arte. Por isto, se outras razões não houvesse, a pintura de Costa Brites teria já de ser tomada em conta.

Mas a representação da cidade na pintura ocidental não foi sempre a mesma. Entrando pêlos séculos dentro, vamos encontrar a urbe como mero marco de refe­rência de passos da História Sagrada ou da crónica dos feitos dos grandes deste Mundo, seja na iluminura ou nas tábuas e murais que, na Idade Média, decoravam as casas das instituições religiosas. Como entidade autónoma, merecedora do primeiro ou exclusivo plano, apenas temos Jerusalém, a terrestre ou a celeste, consoante os casos, mas, sempre, uma construção ideal.

Na Renascença e no Barroco a cidade é o cenário, é apenas o espaço onde o homem desenvolve a sua actividade ou o marco que evoca o lugar de martírio ou de milagre das hagiografias ou da Vida de Cristo.

Santa Clara-a-Nova, acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, Costa Brites, 1987

Santa Clara-a-Nova, acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, Costa Brites, 1987

Seria necessário esperar por Canaletto e Guardi, para que a cidade se tornasse digna de ocupar o trono das Musas, fundindo-se assim a fonte de inspiração com o próprio objecto. Mas foi breve a vida deste realismo urbano.

Estes dois pintores, e esquecemos necessariamente outros menores, dedica­ram-se a Veneza com paixão, souberam vê-la e, mais que isso, transcrevê-la. A sua identificação com as águas da laguna, as fachadas das igrejas e palácios e com os corsos foi tal que, nas suas telas, Veneza não só se vê, como se ouve, se cheira e se sente.

O Romantismo e a viagem, esse primeiro turismo, provocou o incremento das pinturas de cidades, mas agora só interessavam as recordações, os trechos mais pito­rescos, os apontamentos monumentais.

O caso de Costa Brites está, indiscutivelmente, mais próximo dos de Canaletto e Guardi que de qualquer outro pintor que antes referimos. Para ele Coimbra é o objecto exclusivo da sua arte, que estuda, descobre, entende, vive e representa. Porém, este artista não é o fotógrafo da cidade, o pintor-fotógrafo melhor dizendo, que hoje, aliás há já um século, não tem razão de existir. A Coimbra de Costa Brites não é a real, como à primeira vista parece. Nem todos aqueles telhados lá estão, nem todas as cores são aquelas, nem todas as ruas têm aquela inclinação. Mas é Coimbra, indiscutivelmente, que todos vemos nas suas telas, que todos reconhecemos e, mais que tudo, profundamente sentimos.

Chiado, Praça Velha / acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 1986

Chiado, Praça Velha / acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 1986

Como é então isto possível. Como explicar que tomemos, de novo, a nuvem por Juno, que aceitemos a ilusão por realidade, sem um protesto. É aqui que reside o grande mérito do artista. É por isto que é artista e não artífice.

Ele capta o que há de essencial, enfatizando-o, desprende o acessório ou relega-o para um plano secundário, de quase adorno. Não se limita a olhar e reprodu­zir, antes interpreta as formas, as cores, os espaços e recria-os, balançando entre a verdade e a miragem.

Este processo não é fácil, não é imediato, e Costa Brites tem vindo a aperfeiçoá-lo. Pouco a pouco as pessoas foram varridas das telas, saíram das ruas, os meios de transporte volatilizaram-se e apenas ficou a paisagem urbana — paredes, vias, árvores, etc. Mas a Coimbra de Costa Brites nem por isto é uma cidade fan­tasma. Não notamos a falta das gentes nas ruas. Pelo menos nós, os que aqui nasce­mos ou que aqui vivemos já há muito tempo. Porque, afinal, como o amante ciu­mento, todos queremos a cidade apenas e só para nós. Por isso aceitamos a ausência dos outros, mais, aplaudimo-la, para, no silêncio daquela luz fria e uniforme a pos­suirmos ou sermos por ela possuídos, numa cumplicidade em que o secretismo é parte fundamental.

Rua dos Bazares, acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 1992

Rua dos Bazares, acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 1992

Em toda esta pintura, há o mérito de a ela aderirmos de imediato, somente quando amamos o objecto há muito e não à primeira vista.

Percorrer a obra de Costa Brites não é apenas um passeio turístico por mais uma cidade, pitoresca aqui, monumental acolá. Percorrer a obra de Costa Brites é penetrar fundo na essência de um espaço vivido e construído por gerações, de onde o artista previamente arrancou tudo o que podia distrair a atenção, desviar o olhar e perturbar os sentimentos.

Trabalhos morosamente elaborados, eles estão longe de ser frios, calculistas e pretensamente rigorosos. Apenas que nem todos amam da mesma maneira. À fugaz paixão, violenta até, dos impressionistas, opõe-se aqui a constância de quem saboreia cada momento, longa, longamente.

 

Pedro Dias

António Pedro Pita – Uma poética do espaço – Abril de 1988

Texto de António Pedro Pita para uma exposição de Costa Brites que teve lugar numa galeria comercial em Abril de 1988

Largo do Romal / São Bartolomeu, Costa Brites

Largo do Romal / São Bartolomeu, Costa Brites

UMA POÉTICA DO ESPAÇO

A minha relação com a pintura de Costa Brites começou há mais de quinze anos. Era, se me permitem usar a palavra, uma obra engagé; mas, pelas suas referências e pelas suas soluções estéticas, diversa das concepções clássicas do engagement. As referências eram Bertrand Russel e Bob Dylan, Ray Bradbury e Hiroshima, Nagasaky e Huxley, entre outros, e a linguagem justa encontrava-se no cruzamento do cinema, da banda desenhada e da publicidade inventiva, a que a pop-arte deu uma primeira expressão. Costa Brites começou aí. Deixem-me dizer: foi aí que Costa Brites se me tornou visível. Com perplexidade, por isso, encontrei anos depois a linha estética que Costa Brites agora expõe. Desaparecera (o sentido de) a homenagem a Huxley? A denúncia da paranóia nuclear? A marca do seu encontro com o surrealismo? Sim. Sim, mas.

Mas.

À primeira vista, o olhar de Costa Brites enraizou-se. É uma cidade (Coimbra?) que obsessivamente aparece nas suas telas e nos seus desenhos. Mais do que uma representação, um retrato. Um retrato minucioso, colocado na iminência da fotografia. Mas.Vejamos melhor.

É uma cidade deserta. Um vulto no eléctrico, um rosto que espreita a uma janela, a corda da roupa, uma inscrição toponímica, uma placa publicitária tornam ainda mais visível o deserto. É uma cidade exuberante de cor. A cor esbate-se, porém: e os trabalhos mais recentes apresentam-nos já um preto-e-branco matizado. É uma cidade captada em todo o seu detalhe. Para que, na particularidade de uma chaminé, na abertura de uma janela, na cal corroída de uma parede (entre a antiguidade e a ruína), na globalidade de um conjunto arquitectónico, se torne visível a marca impressiva do tempo: a cidade tem data, tem história, leva-nos a um passado que nos transporta, mais do que nós saberemos pensá-lo. Ao alcance do seu rigorismo, contudo, no qual poderíamos encontrar afinidades com Carlos Botelho ou Magritte, não é alheia uma profunda influência cinematográfica (se influência é o termo adequado; talvez deva dizer-se que a visão de Costa Brites se constituiu cinematograficamente). Os seus enquadramentos complexos (enquadramento: escolha da porção de realidade que aparecerá na imagem): o espaço pictórico é minuciosamente preenchido e organizado com uma autêntica reorganização do espaço real – jamais o olhar do pintor é neutro. Creio, por isso, que todos os objectos pintados não fazem mais do que acentuar a riqueza e a imensa variedade do espaço que eles próprios definem. Encontramos a interrogação decisiva da poética de Costa Brites: o espaço pinta-se?

É, finalmente, uma cidade raramente limitada ao que está feito, ao que está completo. Nos acrílicos sobre tela ou nos desenhos, para lá da cidade histórica, existe uma outra cidade, uma cidade branca, simples silhueta, reduzida aos traços mais simples, uma espécie de hipótese, onde seja possível inventar outros modos de estar e viver. Portanto, contra todas as aparências do fotografismo ingénuo, a pintura de Costa Brites insinua-se como um eco das palavras de Gaston Bachelard, na obra a que roubei o título: «O número da rua, o andar, fixam a localização do nosso ‘buraco convencional’, mas a nossa morada não tem espaço à volta nem verticalidade dentro de si». Se é assim, Costa Brites prolonga, por outros meios, o combate inicial: a reivindicação do espaço humano, a exigência da habitabilidade do mundo. A respiração e o silêncio. A música do outro lado da cor.

António Pedro Pita

Vasco Pereira da Costa – Novembro de 1984

Texto de catálogo duma exposição individual que teve lugar em Coimbra na galeria “O Primeiro de Janeiro”, em Novembro de 1984, da autoria de Vasco Pereira da Costa

A larga Praça de Sansão

A larga Praça de Sansão

CIDADE   PODE   SER o perímetro de um rectângulo, as linhas que se cruzam nesse limite, as cores que animam casas, ruas e céus.

NÃO  É  INDIFERENTE ESTAR postado daquele ângulo ou daqueloutro para encarar a cidade. Ver a cidade é dizê-la por traços e matizes aos outros cidadãos — perpendicularmente solidário com as pedras que se afagam e se pisam.

A CIDADE DO ARTISTA É SEMPRE UMA CIDADE sublimada porque assenta os alicerces na utopia e rasga os céus  da ambiguidade.   Mesmo quando sugere o real, faz lembrar uma nova verdade: cidade nunca quimérica, nunca ingénua, nunca inofensiva. A cidade é uma Coimbra,   O artista é Costa Brites.

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DESTA   CIDADE   ESTÃO arredados os interesses abastardados do construtor civil barrigudo, Benz arrogante, charuto de impertinência, camisa riquísta de sulamericano bananeiro. Costa Brites expurga a cidade das incontinências presunçosas de arquitectos avilta­dos, alivia-a de cancros que lhe corroem as entranhas, alerta para a impunidade pornográfica que a vai, sem remissão, aleijando. E restitui-lhe uma dignidade ancestral, uma nobreza escorreita: a beleza de UMA NOTÍCIA URGENTE COMO UM GRITO — lançado do Alto de Santa Clara, varre a Baixa e faz retinir a Cabra num desespero de alerta. Não será por acaso que, nesta fase, Costa Brites não apresenta a figura humana e se detém apenas na feição das pedras. Pedras que não muram a visão do artista — mas que podem emparedar (já emparedam) o cidadão. Daí uma pin­tura de libertação:

DO HOMEM QUE VIVE A CIDADE, com o qual o artista se sente irmanado, porque quotidia­namente a sua visão tropeça com pedras que constroem a fealdade e destroem aquele direito fundamental de qualquer cidadão — o de sentir-se bem com as linhas e as cores que lhe percorrem a retina, com os pés assentes na terra e os olhos despertos no ar.

Surge, assim, uma arte comprometida, que brota da cons­ciência de que fazer arte é mostrar os escaninhos da alma e os esconsos do imo. Não com a egolatria de levianos corrupto­res do real; não com a brutal espectacularidade de descobrir o inventado; não com a tola exibição de uma cópia… única; não com o pincel onanista a desenhar o insensorial. Mas com a equilibrada noção de valores assimilados que até no dissonante se harmonizam; mas com a humildade dos que acreditam que a cidade, afinal, pode muito bem ser uma imi­tação do quadro do artista, E Costa Brites recusa a insulação e apura esse poder raro que é o de usar em reciprocidade os sentidos — amar, pois, por que não?

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A Cidade de Costa Brites escapará ao traço cartográ­fico do coimbrinha desatento e do coimbrão acomodado; ser­virá para barbudas querelas de cachimbadas opinientas de fotográfico e naturalista; será, porventura, rejeitada pelo geometrismo impositivo e pela linearidade teimosa; receberá narizes de desconfiança e esgares de dúvidas escolásticas.

MAS   SERÁ olhada e fruída na sua harmonia estável, no equilíbrio melodioso de um traço honesto, na procura incessante da cor ritmada. Na pintura de Costa Brites ler-se-á a corajosa denúncia dos atropelos à nossa civilidade. Com ela se empunhará uma arma terrível para defender o património cultural. Quem sabe se, com ela, o Homem reconquistará a cidade e a chamará de sua?

Coimbra, 1984 / Vasco Pereira da Costa

Carlos Lobo, um olhar aberto no meio da multidão

Publicado Diário de Coimbra 7 de Dezembro de 2001

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Esmalte de Carlos Lobo

Tenho à minha frente e manipulo alguns esmaltes coloridos da autoria de Carlos Lobo, nome que lanço à escrita sem os adjectivos brilhantes que os homens merecem apenas depois de mortos.

Carlos Lobo com seu rosto limpo e bem barbeado caminha pela rua com vários papéis debaixo do braço. Não vai depressa nem devagar, mas sentimos nos seus passos uma segurança e uma delicada determinação.
Irá visitar um amigo necessitado de apoio? Irá à abertura dum acontecimento artístico ou mandar uma carta urgente para um continente distante? Provável é que vá encontrar-se com outros militantes da cultura ou reunir-se com ex-colegas envolvidos em problemas de trabalho e desemprego, carentes da solidariedade quente daqueles que se encontram na mesma situação, os únicos que podem trazer alento e estímulo verdadeiros.

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Onde irá Carlos Lobo com seu olhar tranquilo e a voz serena que tanto invejo?

Não saberei nunca e todas essas hipóteses são possíveis. Certo é que vai seguro e não caminha em vão. Debaixo do braço alguns papéis preciosos, destino certo de ideias variadas, pensamentos coloridos preenchidos de intenção e sonho. Ou simplesmente o dom organizado e voluntário duma ilusão magnífica.

Acaricio outra vez o corpo ondulado dos esmaltes coloridos pelo pó mágico transfigurado pelo calor do pequeno forno laborioso, densamente cercado por um universo de alfaias e produtos e artefactos metodicamente alinhados.
Mergulho na vibração espontânea que só as coisas carinhosa e longamente elaboradas possuem, atravessadas pela indeterminação da fantasia e pela casualidade da revelação que apenas à natureza infinita diz respeito.
São obras de expressão condensada que oscilam entre a candura figurativa de visões ingénuas e o desafio enorme da visão abstracta. Quer num quer noutro extremo desse universo existe contudo a marca constante dum diálogo respeitoso e inteligente com materiais de utilização subtil e misteriosa. Um elaborado processo de descoberta e encantamento.
O consenso de simpatia e de afabilidade que geram os espíritos da categoria de Carlos Lobo tornam quase dispensável mais esta conversa de pintor. Todos o conheceram e todos o estimaram. Todos vão elogiá-lo e dizer que pessoas assim fazem imensa falta.
A ilusão contudo também cansa, e olhar para o mundo e procurar entendê-lo em toda a sua conflagração de paixões divergentes é como descer uma escada de expectativas que parece não ter fim.
Enquanto estivermos vivos é que vale a pena dar atenção às pessoas, escutar a mensagem quente e útil que possam querer transmitir-nos. Todas os homens bons que desaparecem são mais uma razão para dar ouvidos àqueles que ainda estão disponíveis e generosamente interessados em prestar seu contributo.
A sociedade concorrencial possui uma lógica impiedosa de categorizar os indivíduos por uma determinada ordem de notabilidades incontestáveis.
A essa norma se sujeitam todos os cidadãos, todos os artistas, todos aqueles que possuem uma ideia generosa e útil escondida em seu coração. O mais certo é que a sociedade não lhes dê ouvidos, e vá ficar perdida mais uma preciosa razão para sentir que se deu um pequeno passo em frente na salvação da própria humanidade.
Na “Invenção do Dia Claro”, disse Almada em seu discurso pitoresco que “quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade”.

Carlos Lobo nunca foi uma alta individualidade

Que bom para ele, e que bom para nós que possa um homem ser uma criatura insigne, sem ter que levar uma estátua, ou uma medalha, ou um cargo público, e permanecer vivo como ele por certo fica na lembrança de todos aqueles que o conheceram.