A edição de “Visualidades”, abaixo disponível em ficheiro pdf, fez-se no mês de Outubro de 1993, quando teve lugar – na Casa Museu da Fundação Bissaya Barreto – a exposição de pintura e desenhos com a qual encerrei o ciclo de pintura urbana que vinha seguindo de há vários anos. Do texto do livro, que de certa forma procura fundamentar o essencial desse mesmo ciclo de trabalho, colhi este breve texto de abertura:
falas do pintor/ 1
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O pintor inventa em serenidade laboratorial a cidade mágica que é a projecção do seu espírito, a memória da sua sensibilidade, a materialização das suas carências.
Mas o pintor é também um cidadão. Alguém que vive a realidade factual, e dela procura dar um testemunho eficaz e produtivo.
Quando a evidência insuportável dos absurdos consegue passar por “normalidade tolerável”, o exercício da razão torna-se um esforço penoso. Depois de duas ou três gerações de “anestesia” perante os desastres flagrantes das nossas explosões urbanísticas, a Cidade arrisca o pior dos males: que os seus novos habitantes aceitem como “normalidade tolerável” serem emparedados em cimento, vendo seus filhos fugir de medo pelas veredas de betuminoso – percurso escasso para os horse power,símbolos obsessivos da vitalidade restante.
O pintor não sorri. A Cidade, irrecuperável em seu labirinto, entrega-se aos vorazes activos e aos cúmplices passivos que odeiam sua paz e seu futuro. O pintor não retrata uma cidade. Crucifica-se na memória dum espaço interior – “Ersatz” de vivências apetecidas, num mundo tão necessitado como distante. Para o pintor a Cidade mantém o fascínio de que dá testemunho em sua urgência e seu apelo. “De facto” é apenas o cenário no qual se desenha, enorme, o temor pela “sobrevivência” dos seus filhos.
A obra dum artista é indesculpável, seja qual for a roupagem de que se cinja.
O pintor sofre permanentemente em louvor e lamento da cidade deserta.
Coimbra, Maio de l993
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A seguir a transcrição de uma entrevista que ainda hei-de referenciar melhor quanto à data e à entrevistadora, que foi uma Senhora, e que foi publicada para o diário “As Beiras”. O tema da entrevista é o da abertura de novos ciclos de pintura, na sequência do referido ciclo da paisagem urbana.
Com esta exposição abre-se uma nova etapa no seu percurso artístico. Que motivos operaram esta mutação e quando teve o seu início?
A sua pergunta tem interesse para esclarecer as pessoas que apenas me conhecem superficial ou recentemente, através das inúmeras estampas que têm circulado por Coimbra (entre elas alguns milhares em edições pirata e copianços diversos…) e duma ou outra passagem acidental por exposições do ciclo chamado “da cidade de Coimbra”.
Quanto às pessoas que me conhecem melhor, que convivem comigo e partilham – já não digo os meus segredos – mas todas aquelas outras partes de mim (ia a dizer dos meus heterónimos…) esses acharão a coisa mais natural deste mundo, e não vão ficar nada surpreendidos. Com efeito, este “imaginário” vive comigo desde que me conheço e em fases anteriores já foi bastante dado a conhecer. Tem estado unicamente à espera de novos momentos de revelação sob a forma de obra estruturada e consequente, o que exige pesquisa e desenvolvimento, muito trabalho e dedicação.
Fale-nos das figuras que povoam as suas últimas telas.
Essa questão daria para uma conversa que quase não tem fim… Um pouco como essas próprias figuras, saídas não sei bem donde, duma forma quase sempre inesperada e muitas vezes, por assim dizer, torrencial!… Eu não sei se posso qualificar-me, com propriedade, um surrealista. Aliás, se não assumo inteiramente essa filiação, é apenas pelo facto de me sentir também ligado a outras formas de ver o mundo e as coisas, e de não querer ficar apegado a nenhum “ismo” em particular, o que neste momento não faria nenhum sentido. Os surrealistas, no entanto, trataram muito dos fenómenos da imaginação, exploraram o subconsciente, o sonho, o fantástico, e os mecanismos da sua revelação, através da associação das ideias, da “escrita automática” etc., a par do enorme desejo de mudar o mundo, o que sempre foram coisas que muito me fascinaram. Por ter tido acesso a esse tipo de cultura, reconheço existir em mim uma espécie de disponibilidade ou abertura do espírito a vozes estranhas, a visões instantâneas quase automáticas, que qualquer pessoa que desenha espontânea e livremente bem conhece.
Há dois termos que surgem com uma certa frequência no seu discurso. Um, mais entendível, o termo “desenho”. Outro, aparentemente mais deslocado, o dos “heterónimos”. Qual a importância dum, e qual a justificação do outro?
Sem ter a pretensão de lhe “passar um sermão” sobre o chamado “acto criador”, o que é facto é que ele existe, e depende duma “forma”, de “meios de expressão”, duma certa técnica, em suma. Há pessoas que se exprimem através de gestos largos, de técnicas elaboradas que exigem escola. Outras são mais simples, ou intuitivas, porque não tiveram acesso a formas adequadas de ensino artístico. Na minha qualidade de português não privilegiado, não comecei por ter acesso às formas mais sofisticadas de técnica artística. Um lápis, um pedaço de papel, dois dos “media” mais simples deste mundo, e pronto, tanto basta para dar início a tanta coisa magnífica e fantástica!
Resumindo portanto, e sem ter de passar por razões transcendentes e pretensiosas, foi essa uma das primeiras formas de me conhecer e de me descobrir. Passadas não sei quantos milhares de horas, desenhar, para mim, é a coisa mais natural que pode haver. E, certamente, uma das que mais prazer me dá.
Quanto aos heterónimos, adoptei esse expediente com certa moderação. Não queria que fosse julgado oportunismo “colar-me” à grande figura de Pessoa, para justificar uma vocação (e uma enorme necessidade) de encetar permanentes metamorfoses na minha linguagem. Daí, como já leio Pessoa praticamente há quarenta anos (nessa altura não era ainda grande moda…) e dado que comecei a falar dos “meus heterónimos” aos meus amigos, acabei por me habituar, o que “veste” magnificamente quer o meu gosto por Pessoa (que nem sequer é incondicional…) quer uma tendência, que não reprimo, de renovação incessante…
Como é que pode explicar, nesse contexto, a firmeza de atitude que manteve durante todo o seu ciclo anterior, que dedicou à paisagem urbana?
Essa questão está muito bem posta e é-me difícil responder por poucas palavras. Repare que no momento exacto em que encerrei o chamado “ciclo da cidade de Coimbra” (que passou por muitas cidades portuguesas, e por várias cidades estrangeiras…), confrontado com a necessidade de conferir coerência a toda essa questão, tive o cuidado de publicar um livro de dimensões diminutas, mas bastante significativo para mim (chamado “Visualidades”).
O livro valia tanto mais pelo próprio prefácio, de autoria do meu Amigo António Pedro Pita, uma pessoa que segue o meu trabalho praticamente há trinta anos. Tanto nessa análise, como noutros textos de sua autoria (especialmente o que escreveu para o catálogo desta minha exposição na Casa Municipal da Cultura) o assunto se encontra visto duma forma muito difícil de sintetizar, mas de um modo que acho exemplar.
Lateralmente, e friso: lateralmente, posso apenas dizer que esse ciclo envolveu de facto uma atitude de imensa disciplina intelectual, e uma dose enorme de dedicação e investigação em diversas áreas, essencialmente as que dizem respeito às paisagens que se observam de olhos fechados, aquelas que mobilam um mundo construído na mente, e que também serve para questionar o real!
Não sei se o ciclo foi devidamente compreendido, o futuro o dirá. Mas de qualquer forma penso ter sido uma fase de criatividade muito intensa, que teve o seu encerramento, mas de que não abjuro, nem repudio de forma alguma, por maior que seja a mudança aparentemente, e friso: aparentemente efectuada.
Adiante-nos então as suas expectativas quanto a esta exposição.
Uma coisa muitíssimo difícil de delinear, como sabe, a expectativa dos artistas. Penso que, no sentido mais adequado, os artistas pretendem apenas prosseguir o seu trabalho de forma eficaz. E coloco o centro de gravidade do termo no íntimo essencial da obra, como coisa revelada/reveladora.
Sobretudo quando se atinge a minha idade, ou antes disso se o juízo ajuda, começa a poder ver-se o mundo um pouco distante de nós, e nós nele como uma imagem transcendente de nós próprios.
Tenho às vezes imensas faltas de paciência com a insensibilidade dos aparelhos sociais, políticos e outros. Encho-me de raiva, o que me desconcerta. Sinto-me como um cachopo a quem roubaram todos os brinquedos. Com o tempo desenvolvi, no entanto, uma certa impassibilidade feita, senão de conformação, de distanciamento, iria dizer: filosófico. E regresso sempre aos meus amigos, à minha família, aos meus desenhos, à cultura, às artes, a todas as coisas que irão de facto ficar para sempre, como os melhores sinais da passagem dos homens por esta vida.ficheiro pdf, clicar para ter acesso:
COSTA BRITES, Visualidades