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Gabriel Orozco, no CAV (Centro de Artes Visuais), ao Pátio da Inquisição

Publicado Diário de Coimbra  23 de Maio de 2003

A visita à exposição de Gabriel Orozco, rapaz que nasceu no México quando eu já tinha os meus vinte anos, proporcionou-me um daqueles momentos raros na vida que permitem pôr de lado uma série incontável de relativismos, necessidades e tensões da mente. Desligar defesas às quais a crispação dos dias nos obriga, para deixar entrar por janelas escancaradas a deliciosa carícia do vento antigo que traz notícias da criação do mundo e que, no mesmo trajecto de impulsos, aponta lá para diante, para onde pensamos que mora o futuro. Vagueei por entre os variados motivos que no elegantíssimo espaço se encontram dispostos, sem qualquer necessidade de referenciação cronológica, social, histórica ou geográfica, captando em cada família de objectos o nexo imperioso de inter-relações formais, simbólicas e estéticas que desenvolvem no observador.

Das cidades ancestrais aos gestos do futuro

Ao entrar recebe-nos uma primeira e sumptuosa visão de grande angular que mostra uma cidade de um país antigo feita de arquitecturas de terra, telhados frágeis de colmo e  terraços áridos de secura. Ao fundo dessa fotografia ergue-se a sentinela vigilante que separa as almas da lonjura da planície e das serras distantes, uma monumental formação pedregosa,  fortaleza natural esculpida e afeiçoada por ventos e por milénios. Esse primeiro elemento encoraja-nos a descolar das coisas que deixámos lá fora na rua poluída e ruidosa onde todas as atitudes vitais parecerem depender do esquematismo de sapiências controladas. Em cima das mesas, cheias da nobreza expressiva do material singelo de que são feitas, encontram-se objectos de barro cozido, a primeira das famílias que referenciamos. Impressionam pela robustez estética e pela variedade de conceitos plásticos, situados nos extremos distantes da funcionalidade para a sobrevivência, na determinação do gesto construtivo e no reflexo das configurações do corpo. Uma dessas figuras transmite, na antiguidade do material de que é feita, a explícita alusão às branduras do corpo íntimo, tal como outras remetem para uma ortopedia ciclópica ou sugerem modelos reduzidos de compactos megalitos. Nas paredes outras fotos e outros desenhos transpõem para distintos planos de significação os objectos referidos, enquadrando-os no contexto de uma civilização bem próxima da terra, de formas e gestos universais onde as linhas da própria mão se apresentam impressas, tal como as nervuras delicadas das folhas de uma planta.

O fenómeno mais intenso e a descoberta que fará flutuar o visitante encontra-se exactamente nesse cruzamento de sentidos. Das fotografias aos objectos e destes às elaborações desenhísticas e pictóricas há uma acumulação de itinerários que conduzem da gravidade remota de silêncios arqueológicos até às sínteses mais depuradas das visões da modernidade. Nas fotografias não é o pitoresco de circunstâncias etnológicas ou folclóricas o que mais impressiona mas sim a memória duma antiguidade transcendente na qual o vulto do homem, tal como nas grandes narrativas mitológicas, aparece apenas de forma austeramente simbólica confinado às imagens que reflectem a sua labuta pela sobrevivência: uma epopeia de pegadas em chão de terra seca, carreiros de pedra solta ou lajes afeiçoadas ao caminhar sólido e lento que conduz à eternidade.

A responsabilidade cultural e os cerimoniais inúteis

Exposições como esta, somatório de atitudes de rigor e generosidade formativa/informativa, responsabilizam imenso o visitante. Se houver olhos para ver e entendimento aberto para o fenómeno que está presente actualmente no Centro de Artes Visuais (CAV), e de que a exposição de Gabriel Orozco não é nem o primeiro nem o único sinal disponível, a comunidade dos apreciadores das artes vai ter cada vez mais dificuldade em entender a trivialidade baça e sem sentido de pendurações inconsequentes de objectos desconexos e abandonados à sorte da sua própria circunstância, por mais respeitável e entendível que tenha sido o seu momento criador (e muitas vezes, infelizmente, nem é esse o caso). Não vale a pena conceber a arte e a cultura como uma fatigante colecção de formalismos mais ou menos credenciados pela dignidade transitória de notabilidades encadeiradas. Se a cultura ou a arte não atingirem a serenidade fecunda da substância realmente comunicante, não passarão da fragilidade dum quotidiano sem raízes, nem memória, nem semente que floresça no ventre do futuro.

Arte moderna, Arte do sec. XX, no Museu da Cidade (2)

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Esta imagem não se refere ao texto abaixo. Representa a contra-capa da exposição de abertura do Museu da Cidade, no Edifício Chiado em Coimbra.

Publicado Diário de Coimbra  13 de Maio de 2003

A exposição que se encontra no Museu da Cidade, comissariada por Telo de Morais, continua a suscitar uma merecida atenção e um elevado número de visitas, revelando-se uma iniciativa esclarecedora de alguns aspectos, infelizmente ocultos, do sentido de modernidade em Coimbra no que toca às artes plásticas, para o período a que diz respeito. Tendo tido ocasião de referenciar o primeiro de tais acontecimentos (a exposição é projectada no tempo em capítulos distintos que vão estender-se até Janeiro próximo) muito ficou por dizer, e é por isso que volto a estas “conversas”, sem receio de que me falte assunto.

O desejo e a capacidade de ler a actualidade

A realização tem por base um limitado número de peças dum limitado número de artistas e não abrangerá naturalmente a totalidade de coleccionadores de Coimbra. Como já disse no primeiro comentário escusa-se ainda (compreensivelmente?) à inserção de valores residentes. A espiral descendente que assim se desenha em nada diminui o mérito da iniciativa que pode a vários títulos considerar-se percursora, numa cidade que não se envergonha de um acentuado “deficit” de modernidade estética que é traço grosso da sua própria fisionomia urbana e dos vocabulários da sua  representação socio-cultural. Sendo difícil classificar exaustivamente todo o tipo de impulsos que conduzem à formação de colecções de arte moderna, é claro que implicam pelo menos o desejo e a capacidade de entender e acompanhar fenómenos de cultura da própria actualidade. A incapacidade de fazer a leitura e de conviver com objectos estéticos cuja antiguidade pode ter quase um século tornam imperioso o estabelecimento dum amplo debate de ideias, por todo o tipo de razões, até de natureza não exclusivamente artística. Depois do comentário feito à primeira das exposições deste ciclo, impunha-se à minha curiosidade a avaliação das ideias e do sentimento de um dos coleccionadores colaborantes da mostra, uma das tais pessoas cuja identidade foi – ao que me parece injustificadamente – mantido no âmbito duma cautelosa confidencialidade, a que a curiosidade incontida acaba por conferir a volatilidade daquilo que em teatro se apelida um “segredo de Polichinelo”. O estabelecimento do contacto acabou por fazer-se de forma perfeitamente natural, e nem à pequena história interessam os detalhes que me levaram à presença duma pessoa apaixonadamente interessada, intelectualmente inquieta e repleta de todos os atributos do espírito que eu acho condizentes com o estatuto interessantíssimo do genuíno coleccionador de artes. Numa coisa tive de concordar, por respeito às conveniências idiossincráticas da cidade que todos (mal) conhecemos ou seja, a manutenção do anonimato do meu interlocutor!…

Arte em diálogo, precisa-se!…

A presente crónica não conseguirá resumir o vastíssimo leque de sensações fortes que a troca de impressões me proporcionou, após uma visita à esclarecedora e surpreendente reserva de obras na posse do coleccionador, e ao longo de um jantar de amigos que, noite fora, nos permitiu “assentar ideias” a respeito duma variedade muito ampla de temas e problemas: o ensimesmamento e o passadismo artístico-intelectual vigentes; a carência dum verdadeiro encontro entre pessoas interessadas e respectivo debate de ideias; a subalternização de certas iniciativas através da negligência promocional; a pobreza de entusiasmo dos “funcionários da cultura”; a inexistência de “gestores culturais” devidamente habilitados; o ascendente que o “político” e o “burocrático” possuem no plano das realidades concretas; o enfileirar estatístico de acontecimentos avulsos, à margem dum sentido de projecto cultural, etc. Por último, nem foi esquecida a falta de galerias de arte suficientemente pujantes, com projectos dinamizadores e desejo de credibilizar a arte e os artistas!…

Crónica de entrevistas adiadas

O Coleccionador (chamemos-lhe assim, e ponhamos maiúscula por ser equivalente de nome próprio) prometeu alinhar, para publicação oportuna,  algumas ideias interessantes a respeito da atitude e da substância da colecção de obras de arte. Fica portanto prometida sequência para este início de “conversas” sobre a “Arte Moderna, Arte do Sec XX”, para as quais ficam todos desde já formalmente convidados, neste mesmo sítio e lugar.

Arte moderna, arte do sec. XX, no Museu da Cidade

 

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Esta imagem não se refere ao texto abaixo. Representa a capa da exposição de abertura do Museu da Cidade, no Edifício Chiado em Coimbra.

Publicado Diário de Coimbra  1 de Abril de 2003

Escrevi esta “conversa de pintor” abismado pelo horror dos dias que passam, confuso e revoltado pela violência super-organizada, super-tecnocrática e super-hipócrita. O destino aparente do largo mundo dos conflitos sangrentos não pode, porém, impedir-nos de falar sobre factos como uma retrospectiva das colecções particulares de Coimbra, que tem lugar no Museu da Cidade, no edifício Chiado, comissariada por Telo de Morais, e que merece bem, por motivos diversos, uma atenta e interessada visita. Estamos pois “condenados ao impossível”, conforme citação de Rocha de Sousa no prefácio que, com lucidez e elegância discursiva, abre o catálogo das obras cuja presença virá visitar-nos ao longo de vários episódios expositivos, até ao fim do ano.

“Toda a Cidade é um Museu Encoberto”

O espaço reduzido da sala de exposições temporárias recebe as primeiras 17 de 88 obras que o evento pressupõe, e que se encontram reproduzidas em catálogo desacompanhadas de matéria de consideração crítico-informativa, se descontarmos a valiosa, mas muito genérica, abordagem de Rocha de Sousa, que tem por título a bela frase poética acima citada. Teria sido fácil inserir elementos de caracterização pedagógica a respeito das obras apresentadas, numa cidade onde rareia o apego e a informação a respeito da modernidade da arte, sobretudo daquela que é portuguesa, pelo que é pena e o visitante lamenta a lacuna que se observa. Sendo mostrada uma só obra de cada autor, é de supor um delicado trabalho na escolha das peças a associar em cada fase, para que a montagem resulte bem, como acontece sem dúvida nesta primeira realização. As obras estão dispostas, por assim dizer, em duas margens que se defrontam num diálogo de valores contrastantes ou complementares, revelando um vincado critério de bom gosto que nem sequer deriva, aliás, da estruturação estilística efectuada no texto de Rocha de Sousa. Vale a pena observar, por exemplo, a sequência formada de um lado pelas obras de Joaquim Rodrigo, Cruzeiro Seixas, Carlos Calvet, Rogério Ribeiro, etc. e pelas de Pedro Croft, Cabrita Reis, Casqueiro, etc. do outro. É ainda curioso o emparelhamento “fora de margens” dos trabalhos de Fernando Calhau e Raul Perez, totalmente contrastantes no teor de forma e conteúdo respectivos. Falar um bom pedaço a respeito de cada uma das obras mostradas, ou das sinergias que a sua confrontação produz,  mereceria o espaço não de uma, mas de várias “conversas de pintor”.

Responsabilidade e importância do coleccionismo

Ao fim deste ciclo de exposições não ficaremos a conhecer senão uma porção diminuta das obras coleccionadas em Coimbra, permanecendo misterioso o critério que as terá reunido, se mais de natureza estética e afectiva ou de natureza financeira. O já referido prefácio de R.S. abre para as importantes questões da descentralização e da autonomia culturais, da necessidade de estimular “a contemplação e o debate”,  de renovar os “modos de formar”, etc. A exposição, classificada como acto “com forte alcance cultural e de cidadania” é, não obstante, visivelmente tributária de estratégias aquisitivas dificeis de definir, mas que não deixam de reflectir centralismos e subjectividades pouco associáveis à afirmação de “autonomias”, apresentando-se cautelosamente asséptica quanto a possíveis valores locais. O coleccionismo é um pilar essencial do progresso criativo, e não perderia nada em contemplar novos valores, incluindo sem complexos nomes autóctones, para além dos casos raros que apenas se puderam afirmar longe, ao abrigo de outras realidades. O criério dos “valores consagrados” tem lançado no mercado da arte, aqui e no resto do mundo, uma quantidade enorme de obras de segunda linha que valem apenas pela assinatura que trazem aposta, abundando as histórias picarescas quanto ao modo como algumas foram parar ao circuito da comercialização. Numa obra de arte o único valor seguro é aquele que deriva dos seus conteúdos estéticos e do prazer intelectual e espiritual que comunica, havendo ainda quem pense com razão que vale mais uma obra boa dum artista desconhecido que uma obra medíocre dum nome prestigiado. Com esta me acabo, fazendo votos que o vento do deserto possa soprar de novo liberto dos venenos semeados pela guerra, que assustam os povos dóceis e lhes causam tanta dor.

Sara Maia no edifício Chiado, ou a vulgaridade do assombro

 

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Publicado Diário de Coimbra  27 de Janeiro de 2003

A arte condescende muitas vezes em ser liricamente distante da realidade virando para o lado o olhar necessário e impiedoso. Solicitam-lhe outras vezes que salte de paraquedas lá de trinta mil pés de altitude onde ar não há que se respire e não se ouve a voz de quem fala por imposição desconfortável da máscara de oxigénio ou descomprometimento conveniente da máscara só-máscara. Acontece então ser tão vazio e tão inútil o seu discurso que não nos dá cansaço algum ouvi-la somente porque temos o bom senso de não lhe ligar atenção e vamos em busca de outra  ocupação da mente ou outra mais séria alegria do corpo.
O que me espanta na pintura de Sara Maia não é aquilo que tem da expressão alucinante com que tantas vezes me surpreendi na obra de Paula Rego ou da moralidade feroz e esclarecida que de longe me persegue em Otto Dix ou da desconcertante abordagem figurativa ou da virilidade cromática que me habituei em Max Beckmann.
O que me espanta é que não leio nos traços da sua contudente linguagem a atitude que poderia pertencer à generalidade das criaturas da sua idade ou da sua geração cultural. Como é possível pergunto-me que possa ter atravessado a porcelana translúcida da sua carne adolescente a antiguidade relativa de tão pesada herança de percepções.
Como é possível pergunto-me que não esteja ali o humor planificadamente cruel dos Simpson a sua claridade plastificada as suas cores metálicas e a vibração de sonoridades que sintetizadores aceleram por goelas abaixo dos devoradores de multimedia.
Uma pintura assim sejamos claros põe-nos os cabelos de pé. Altera os nossos planos de não sei que cultura predisposta a não sei que especulações. Os escândalos da reality são tão matematicamente condimentados de horário conteúdo e sequência publicitária e tão meticulosa e mesquinhamente pré-anunciados e digeridos em resumos de roda pé que já muito pouca coisa nos faz realmente ficar com medo ou genuinamente inquietos ou autenticamente tristes.
Tantas vezes nos sai uma gargalhada no momento exacto em que melhor poderiamos ficar apreensivos. Tantas vezes nos ocorre um impropério pela visão desconcertante do inimaginável tornado comezinho ou da impingência da mais boçal vulgaridade transformada em ocorrência de prodígio.
Em Sara Maia a lei da gravitação universal é posta em causa e não apenas pela ausência do velho compromisso do equilíbrio tectónico tão reconfortante para as nossas mais justificadas convicções.
Em Sara Maia os anões abundam alguns são verdes e outros impúdicos. A tutela da guardiã é ornada de medalhas e empunha cacete os pássaros esquisitos levantam vôo de cabeça a fundo as bruxas desequilibram-se pelos paus de vassoura abaixo tudo ao contrário das lendas previsíveis e de certos efeitos especiais. Na realidade oh como é frequente que uns se ponham a cavalo de outros e que estes por seu turno tenham que alancar com os primeiros. Tanto homem cão tanta mulher bicho.
E aquela da coxa grossa que ficou quase de fora da pintura e se larga à unhada à outra que está por baixo contrafeita pálida e quase ausente. O anão de feltro mole ladra para dentro da saia (é dum padre preto ou duma viúva alucinada) e o anão careca abraça numa preversão de apetites o frango assado tão conformemente arrumado na sua frigideira inox ou na sua embalagem de hipermercado.
Figurões piratas lançam os dados e puxam das cartas viciadas como vemos acontecer todos os dias baloiçando-se por cima de patetas distraídos ou de outros patetas com miolos alimentados a pilhas como aqueles que passam aos cardumes aqui na minha rua mas sem que a história nos seja contada assim fazendo de conta que tudo está como deve e que as magníficas leis da natureza não falham e que se cumprem todas as regras da ciência conhecida.
Oh paz podre oh santas alianças oh sociedades discretas oh almas simples oh bem intencionados oh ingénuos oh distraídos oh hipócritas venham cá todos que isto é connvosco este é o vosso retrato o vosso bilhete de identidade o vosso passaporte para o lado de cá da mentira.
Uma mulher gorda monta-se às costas dum homem cão gordo de chapéu e fato preto e há outro homem em mangas de camisa que lhe apalpa as mamas empoleirado num anão exausto e desfigurado pelo esforço.
Outro anão palita os dentes com uma bandeira e outro acaba por estatelar-se rapidamente para fora da própria pintura. Oh meu Deus como é vulgar este cenário. Oh meu Deus como isto é de hoje e de sempre.

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Carel Verlegh e Armando Martinez na Casa Municipal da Cultura

Publicado Diário de Coimbra 3 de Dezembro de 2002

Abre na Casa Municipal da Cultura uma exposição de pintura de Carel Verlegh, artista cuja obra já tive o gosto de apresentar com mais detalhe, noutra ocasião, aos leitores destas “conversas”. Vem mostrar-nos, desta feita, uma longa série de pinturas, organizadas de forma a dar-nos uma visão retrospectiva da sua obra. Em contraponto são apresentadas peças de escultura de Armando Martinez, galego de origem e cidadão de Coimbra pela constância com que regressa a esta terra e pelo modo como deu início – aqui mesmo, há mais de vinte anos – ao seu trabalho artístico. É especialmente laboriosa a actividade que desenvolve nas pedreiras e oficinas de escultor da região de Cantanhede.

Carel Verlegh ou a cor como metáfora da energia do mundo

Carel Verlegh evidencia, desde os seus primeiros trabalhos, uma enorme capacidade de transformar em paisagens interiores a sua leitura do mundo circundante, captando em sínteses de elevada densidade cromática uma floresta de seres em permanente luta corpo-a-corpo, cuja configuração, já muito distanciada do referencial que lhe deu origem, se autonomiza na mais alargada fantasmagoria, fronteira ou referência da indescritível energia do mundo. Aparentemente centrado em torno de esquematismos que o afirmaram como pintor facilmente reconhecível são, contudo, muito alargados os recursos da sua gramática expressiva.

Armando Martinez, a “pedra-mãe” e a alegria sem fim da viagem

O artista que escolhe a pedra como meio favorito de trabalho tem de ter, além da cultura e da sensibilidade respectivas, algo de mais enérgico, ou mais antigo, que o sólido saber necessário a todas as disciplinas da criação artística. A escultura de Armando Martinez reflecte a experiência viva de contactos com a ampla diversidade do material lítico, e atestam o sentido de ofício que liga qualquer escultor de pedra à crepitação de antiguidade e aos metamorfismos da  formação das rochas. Ouvi-lo contar histórias de fósseis e blocos de pedra descobertos, mencionando o seu nome e a sua abundância, situa-nos algures entre o cenário imenso e mitológico das montanhas e o labor industrioso e poeirento das pedreiras donde saiu a matéria de que são feitas as catedrais. Sem espaço para poder trazer-vos aqui um estudo sistemático de toda a sua obra, espalhada ao longo duma activa carreira internacional, iria referir principalmente o predomínio dum sensualismo sólido e fundamental,  em sínteses regidas pela moderação e pela economia de meios. A pedra esculpida permanece, apesar de esculpida, como forma simbolicamente compacta à flor da qual se desenvolvem configurações humanizadas, geralmente surpreendidas no gesto protector do abraço, no esforço titânico da maternidade ou no apelo fundamental da paixão. É acentuada a modernidade sintética de formas opulentas, de cunho por vezes megalítico, apenas reduzidas no seu impacto por  serem concebidas desta feita como trabalhos de reduzidas dimensões e mais fácil apresentação. Noutro tipo de esculturas a forma alonga-se na perpendicular, atingindo o esquematismo totémico dum grito agudo de pedra, onde as mesmas sugestões de referência sensual e afectiva podem surgir, umas vezes de forma quase explícita, outras vezes mais francamente abstractizadas. Em elevado número de obras é posta em evidência a variedade expressiva do material, que chega a incluir espécies rochosas muito raras, sendo habitual o contraste simultâneo de zonas lascadas e outras polidas. Artista que viaja intensamente, mantém acesa a chama dum sentido de convivência que tem produzido frutos no estreitamento de laços entre Portugal e a Galiza. Presente em largo número de obras públicas no seu país natal e em diversos outros, da Itália à Escócia, tem também um largo número de obras em jardins e praças portuguesas, numa clara demonstração da sua energia comunicativa, em tudo compaginável com o génio irrequieto do povo Galego, que connosco partilha a irrequietude insatisfeita de trota-mundos, fura-vidas descobridores e empreendedores de torna-viagem.

Gão Vasco em Salamanca, ou São Pedro do olhar triste

 SPGV

Publicado Diário de Coimbra 25 de Julho de 2002

 

As capitais de cultura multiplicam-se, como sinal possível de que a humanidade progride e o espírito vale. As aceitações das candidaturas são sempre noticiadas como grandes vitórias, há grandes abraços e toda a gente parece feliz, porque o que vai passar-se irá perdurar na memória, por longos anos. Desde os preparativos se levanta uma poalha doirada de expectativas, como se aquilo que nunca foi, pudesse vir a ser. Porém, nada disso é intuitivo ou natural. O que desce, lenta e secretamente, vem suspenso pelos estranhos fios que sustêm o palanque doirado dos sonhos, e é mais do domínio das prendas inesperadas ou das revelações inauditas.
Há dias fui visitar Salamanca. Soube pelos jornais que ali se inaugurara, com solenidade, uma exposição do grande pintor português e confesso, quase envergonhado, que fora apenas isso – para além da simpatia que nutro pela cidade – que motivou a decisão.
Na excursão de finalistas da minha escola, já lá vão tantos anos, foi-me dado ver o S.Pedro de Grão Vasco, num velho e soturno museu mesmo ao lado duma igreja antiga, feita de pedra escura.
Desculpem-me se falo assim mas, com os meus dezasseis anos, com chuva de inverno, foi mesmo assim que o S. Pedro me ficou na memória: um velho de olhar  triste, vestido com uma roupa solene de oiro e pedrarias, de rosto fatigado, preocupadíssimo.Acontece que, de momento, Salamanca está “Ciudad Europea de la Cultura”!…
Lamentavelmente distraído nem me passava pela ideia que coisas ia encontrar que pudessem ser do mundo inaudito dessas venturosas cidades. Povo, muito povo enchendo todas as ruas, conversando e rindo alto. Casas bonitas, bem tratadas, ruas largas e grandes jardins, animação nuns sítios, serenidade sobrante para todos, em clima de enorme asseio.

Salamanca, Plaza Mayor.

Salamanca, Plaza Mayor.

Praças, largas praças onde os ecos flutuam, multiplicando sonoridades imperceptíveis como o bater de asas de milhares de vozes livres, que é som que não se compara com nenhum outro.
Bandeirolas e folhetos anunciavam esse acontecimento magnífico e é certo que havia uma abundância de factos culturais e artísticos de que toda a gente parecia estar inteirada pelo burburinho que ocorria aqui e acolá.
Entrei em vários monumentos magníficos e neles me perdi, olhando, olhando. A pedra antiga era quase loira de manhã, e à tarde – ao fim da tarde – parecia terra incendiada.

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S. Pedro lá estava, como há muitos anos atrás. Um velho de olhar penetrantemente sério, desconfortavelmente sentado, oprimido por um traje pesadíssimo de ritualidade.
A exposição ocupa um edifício de proporções não muito amplas, generosamente enquadrado arquitectonicamente e com o interior tirando excelente partido de elementos de diversa natureza, antigos e modernos.
Dispondo a cidade de Salamanca duma alargada área histórica monumentalmente muito rica, onde também o conforto moderno tem lugar e presença estética, não tem o automóvel – felizmente – uma presença obsessiva. Circula por onde pode e lhe é permitido, deixando às pessoas que visitam e convivem ampla liberdade de paz e movimentos.
Será tudo isso que é ser uma capital de cultura?
Se for, então, estou plenamente de acordo. Que desça também sobre nós essa benção. Que a cidade nos receba como uma casa enorme onde cabem todos os filhos e, mais folheto menos folheto, mais peça de teatro menos concerto de Jazz, eu possa também aqui ter esse sentimento caloroso e simples de poder navegar por entre gente serena de todas as idades, bebendo os que têm sede, sentados olhando a vida aqueles a quem não apeteça qualquer outra coisa.
O logotipo de Salamanca, capital da cultura, é um semicírculo azul, ornado de uma constelação de estrelas brancas e alaranjadas, uma das quais se destaca do semicírculo, tudo em fundo vermelho. Que me perdoem os autores do logotipo de Coimbra, capital da Cultura, mas – com toda a sincera honestidade a que me sinto obrigado – dizer que não o aprecio é o mínimo que me pede a consciência.
A propósito, outra crítica construtiva, a título meramente exemplificativo: tenho passado pelas traseiras da Sé Velha e está lá perdido num pátio esconso um barraco com telhado de material ondulado, onde se acumula o lixo desleixado e é manifesta uma falta de aprumo sem limites.
Eu sei bem que tanta coisa mal arrumada e suja é capaz de não ir a tempo da capital da cultura, mas queria só avisar que em Salamanca não vi nada que se parecesse com aquilo que para ali está.
Ah! também gostei imenso da ponte romana completamente restaurada e que é só para peões. Fui até lá ao fundo e regalei-me com a barulho das águas do rio Tormes a correr, por entre o verde das folhagens. Já de noite as pessoas continuavam, numerosas, por todo o lado.
Gostei muito da capital da cultura de Salamanca  e, se for assim em Coimbra – oxalá que sim – tenho a certeza que vai ficar na memória de toda a gente!…

João Abel Manta, um artista muito difícil de nomear, no Museu da Cidade

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Publicado Diário de Coimbra 10 de Maio de 2002

 É preciso ter cuidado com o nome com que classificamos este ou aquele artista.
Podemos estar a chamar-lhe alguma coisa que ele não é, ou a criar uma conotação tão diminuta das coisas que nos revela que, mais do que o conceito da pessoa, é o nosso olhar que fica preso nas determinações elementares de uma categorização que nada diz. As crónicas abundantes vão à prateleira das classificações técnico-profissionais e tiram um, dois, às vezes mais termos caracterizadores e colam no artista etiquetas preguiçosas, apertadas como fatos mal feitos, no rodapé do discurso elogioso. Também acho que não deve dizer-se bem dos artistas. Isso faz falta para as pessoas que já morreram e para as figuras desinteressantes que atingiram prestígios incontestáveis. Dos artistas deve dizer-se o sentimento da verdade, já que devem trazer consigo o risco dalguma inquietação e combustível para algumas discussões entusiásticas.

Todos os nomes?

Que artista será, então, João Abel Manta, em breve resumo visitável no Edifício Chiado, na sala de exposições temporárias do Museu da Cidade?
Chamar-lhe-emos pintor? arquitecto? encenador? enciclopedista?
Quando olho para as suas coisas é como se estivesse à conversa com um caudaloso inventor de conceitos, ou perante um palco repleto de personagens servido pelo mais inesperado e surpreendente dos cenários. Conceitos e cenários levados por vezes bem para além dos limites da “conveniência” da sua relação com a realidade visível, em incursões pelo mundo estranho dos seres que povoam o universo instável da invenção poética e pelo exercício da mais cálida ironia. Ao enciclopedista – ou seja, ao homem culto de recursos imaginativos inesgotáveis – vou buscar o que me falta para entrever todas as coisas que não sei, nem saberei, mas que causam o mais secreto entusiasmo e a mais misteriosa surpresa. Sabemos que a arte de J.A.M. é deliberadamente “impura”, possui uma elevado teor de qualidade técnica, de ressonâncias emocionais e que está saturada de “sentidos”. Sabemos como essas coisas são distantes da arte politicamente correcta de agora, que tem pouco a ver com a mão e muito pouco a ver… com o olhar! Hoje a arte é mais grandes acontecimentos “sponsorizados”, empresas de altos comissários, multimédias financeiro-administrativas de exótico gabarito. Os artistas e as ideias ficam lá na fila do fundo; o gesto estético é um corpo espremido por conceitos de vanguardistas-gestores de “novas linguagens”, “desmaterializadas” e efémeras. As vanguardas históricas passaram fome, deram quadros mal aceites por cama e mesa, combateram e derrotaram antigas convenções académicas sem imaginar que um dia viriam a ser leiloados por bilionários nas Londres e Novaiórques. As vanguardas burocratizadas do sec. XXI vão ser muito mais difíceis de desmistificar, porque tomaram as suas precauções académico-políticas e não se iludiram com sonhos de generosidade artística. Mas eu quero lá saber de tais coisas se estou a olhar para um desenho, uma pintura, um mecanismo mágico ou um “drama per musica” de João Abel!… A capacidade acrobática do riso mais escarninho, o registo condoído da dor mais aguda, a percepção do gemido mais ténue, a gargalhada mais contundente e o clarão da mais viva sinceridade, está tudo espalhado por ali, para quem queira colher o fruto do olhar incisivo. O cair ondulante das sedas, a transparência das organzas, a espessura repelente de certos uniformes, o ranço dos hábitos inquisitoriais estão todos por ali, em referenciações expressivas que se alargam ao mais vasto elenco de ideias artístico-culturais. Citações de todos os matizes estéticos, todas as matérias e todas as sensações, títulos e capítulos das obras incontáveis duma biblioteca de sonho.

As intenções boas e as boas intenções

A sala clara, mas de modestas dimensões, do museu da cidade, lá vai fazendo seu caminho, como devem andar as coisas que querem chegar longe. Há dias vi lá uma exposição com coisas de crianças, que achei deliciosa. E, já agora, era veículo dum intenso sentido estético de modernidade!… Vale sempre a pena entrar no museu e na sala das exposições temporárias, que têm de inventar novos espaços se quiserem um dia poder mostrar, por exemplo, uma verdadeira exposição de João Abel Manta que esteja à medida da estatura do artista, ou à medida do nosso interesse pelas coisas, que não é pequeno. É tempo de acabar duma vez por todas com o espírito das colectivas paroquiais, das coisinhas bem intencionadas, do sentimento de magnanimidade abrangente que, apresentando todos os artistas, não mostra nenhum.
Que, desejando agradar a todos, não esclarece ninguém.

A arte e a sua lógica expositiva na cidade que é de todos – I

 

Publicado Diário de Coimbra 22 de Abril de 2002

Num dos últimos momentos da anterior vereação cultural da nossa cidade afirmou-se, certamente com admirável orgulho, o facto de se ter atingido o montante de não sei quantas centenas de exposições realizadas.
Tendo tido a ocasião de visitar um grande número delas, e estando a começar novo mandato autárquico, penso ser a altura ideal para fazer alguns comentários, defendendo que não é o número de iniciativas a atingir que é o dado fundamental do problema, mas sim o seu sentido de projecto, a sua comunicabilidade discursiva e o seu substracto cultural.
Penso, em termos muito gerais, que a realização de exposições em Coimbra não tem evidenciado coerência e sentido de estratégia artístico-cultural, mais parecendo derivada dum encadeado de acontecimentos avulsos com calendário funcionalmente preenchido, mas com aproveitamento qualitativo de precária consistência.
Independentemente da maior ou menor qualidade desta ou daquela iniciativa, o que me tem parecido mais notável é a ausência de um genuíno sentido de projecto, sendo elevado o nível de perda de energias entre trabalho feito e fruto aproveitado.
Aliás, um dos dramas mais agudos deste labor – que é levado a cabo por um aparelho material e humano já de notáveis proporções – é a pasmosa incapacidade de se tornar notado no conjunto da sociedade em que se insere, de suscitar o eco e de construir projecções adequadas.

O silêncio confortável, a palavra incómoda

Quanto aos actos de abertura, desisti há muito do aborrecimento social de frequentá-los de tal modo se configuram como desertos confusos de contemplantes desamparados, para os quais o beberete reservado às raras produções VIP não disfarça a pobreza franciscana de algumas palavras de elogiosa circunspecção.
O discurso de abertura de formato monográfico, que eu já vi praticado em lugares onde a cultura é motivo de convívio qualificado,  seria a forma de tornar esse episódio num acto de valorização crítica a não perder e dignificaria a um tempo os artistas e os organizadores.
Uma atenção mais cuidada deveria ser dada ao material informativo que é posto ao alcance dos visitantes, evitando assimetrias que têm sido de regra: alguns catálogos quase luxuosos, outros completamente ausentes.
A componente dialogante de todo o articulado expositivo tem sido chocantemente omissa, não passando muitos acontecimentos de meros episódios de penduração de objectos que surgem sem razão e desaparecem passados dias,  num triste esquecimento de anonimato.
A conquista de um mais amplo nível de interessados e a construção duma comunidade participante não pode fazer-se de costas viradas para as pessoas e pressupõe algo que não adianta prometer ou improvisar.

Espaços adequados, precisam-se

Há um aspecto relacionado com a própria concepção do edifício da Casa Municipal da Cultura que desde há muito me confrange e enche de perplexidade.
Não sei porque razão foi o edifício planificado assim, desconheço a sua memória descritiva e quais foram os quesitos apresentados ao arquitecto. Certo é que o seu aspecto inicial, com a belíssima sala principal amplamente aberta sobre o arvoredo da Sereia, me causou a mais admirável sensação.
Ao lado, uma sala mais pequena, recebeu a adequada designação de “galeria do jardim”, de tal forma ela manteve o desígnio de se abrir ao espaço exterior.
A abundância de janelas e a escassez de paredes para mostrar objectos conduziu a um resultado confrangedor que nunca mais teve remédio: as janelas viradas para a Sereia foram progressivamente ocultas, sem que delas tenha ficado o mais leve rasto.
No caso das últimas exposições levadas a cabo pela vereação anterior a compartimentação do espaço expositivo foi levado a tais extremos, quer na sala maior quer na mais pequena,  que provocou efeitos verdadeiramente sufocantes quer para as obras expostas, quer para os respectivos visitantes.

João Gordo, eco e transfiguração da imagem fotográfica

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Publicado Diário de Coimbra 28 de Fevereiro de 2002

Integrada na quarta edição da Semana da Mostra Cultural da Universidade de Coimbra, da qual fazem parte um elevado número de iniciativas, abre no dia 1 de Março uma exposição de fotografias de João Gordo, a ter lugar no Teatro Académico de Gil Vicente, que dura, como o próprio nome da iniciativa indica, a brevidade modesta de apenas sete dias. Tendo tido o privilégio de poder acompanhar, ao longo dos anos, o labor do artista, é com imenso interesse que tenho seguido este último desenvolvimento do seu trabalho, por me parecer que constitui algo de surpreendente e original, tocado duma subtil inteligência plástica a merecer bem mais destacado relevo. De louvar é a atenção que à obra tem dispensado a pró-reitoria para a Cultura, que já anteriormente organizou uma exposição de obras do mesmo autor, dum ciclo sumptuosamente belo de imagens obtidas nos campos do Baixo Mondego.

A dificuldade do que é simples e a simplicidade do que é transcendente

O escasso número de obras que irá ser apresentado na pequena galeria do TAGV não me parece bastante, infelizmente, para revelar o potencial estético e a riqueza plástica que se encontram evidenciados neste novo ciclo, cuja consideração me parece desafiar, desde logo, a contingência da sua classificação como “uma exposição de fotografias”. Considerando de passagem a invasão meteórica que a fotografia operou no universo da pintura, julgo que estamos perante um exercício notável da reafirmação de valores que a esse universo dizem respeito, como é patente em tantas outras explorações da arte fotográfica mais recente. Partindo da captação de elementos arquitectónicos  através de um exigente método de análise e selecção, o qual mereceria desde logo um mais alargado comentário, João Gordo passa a uma segunda fase do seu trabalho. Através da associação dessas captações, em processos de teor sempre diferente, concentra e depura a matéria documental das mesmas, conferindo-lhes o valor de matéria visual pura, na invenção duma nova categoria de “seres” ou de “paisagens”, exactamente como um pintor faria com linhas, pontos e planos, na materialização duma nova face das coisas visíveis e/ou inventáveis. Na maioria dos trabalhos, concebidos por meio de contraposições e alinhamentos aos quais não é alheia a utilização subtil e mínima do elemento de suporte, é por efeito de potenciação compositiva que a imagem se renova e transfigura, sendo apetecível a diversidade infinita de soluções combinatórias de conjuntos de obras entre si.

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A fotografia como referencial da pintura e vice versa

Estamos portanto perante a assimilação de diferentes atitudes de expressão artística que não fazem esquecer nem arriscam subalternizar os valores do gesto fundador respectivo. Ou seja, uma “pintura” ou uma “fotografia” feitas à base de valores máximos de ambos os reinos,  que depuram sem esterilizar, dando um novo sentido à ideia de paisagem, ou conferindo nova substância a objectos exaltados pelo seu próprio isolamento, nos limites da percepção abstracta. Uma parede dum teatro restaurado à qual a sombra confere a maciez do veludo ou uma margem de azul cuja modulação é tão explicita quanto misteriosa, são contrapostas ao seu próprio eco. Um alçado de Siza Vieira desdobra-se para além do seu ritmo inicial e, por mais acertado  e feliz que possa ser como acto construtivo, assume o carácter de qualquer outra coisa inventada e ondulante. Uma empena ebúrnea pela luz forte da meia tarde, uma cimalha indecifrável no seu geometrismo de sombra estreita ou a presença equívoca de três janelas circulares, parecem-nos sinais de uma outra realidade, suspensas na vastidão imperscrutável.
Onde moram tais obras?
Qual o céu que as cobre?
Já não interessa nem será possível dizê-lo. As imagens dadas a ver por João Gordo permitem uma quantidade enorme de questionamentos, e será essa a marca distintiva da obra criadora qualquer que seja a técnica de que se sirva.

Oxalá que Coimbra, terra grande/pequena no precipitado enlevo com que relativiza os seus próprios criadores, não ponha de lado a possibilidade feliz de reconhecer de forma mais cabal o valor inequívoco do testemunho artístico da obra de João Gordo.

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Museu Machado de Castro, Coimbra e seus pintores nas colecções da cidade

 

Publicado Diário de Coimbra 18 de Outubro de 2001

Diz-me como olhas e eu dir-te-ei aquilo que vês. Diz-me o que vês e eu dir-te-ei de que matéria é feita a tua alma e quais as portas de entrada que serás capaz de abrir-me na severidade, na secura ou na fantasia geral do mundo.
Abriu no dia 11 de Outubro no Museu Machado de Castro a exposição que lá ficará até 2 de Dezembro próximo, “Coimbra e seus pintores nas colecções da cidade” e eu aproveito a frase com que abri esta crónica para sinalizar a direcção exacta que desejaria imprimir a estas minhas impressões.
Não vou abordar o conteúdo da exposição quanto aos artistas ou quanto às obras expostas, numa iniciativa que desde já me parece digna da melhor atenção, sem deixar de atender às limitações referidas pela própria Directora do Museu, Adília Alarcão, no prefácio do catálogo respectivo.
Aquilo que me interessa, assunto que já venho abordando de formas e perspectivas diversas nesta coluna, é a importância relativa que o olhar do artista poderá ter no conjunto dos impulsos que polarizam a sensibilidade geral, e qual o espaço possível que a sociedade estará disposta a reservar para essa plataforma alargada e diferente da compreensão das coisas.
Referindo ainda o teor do prefácio, conviria sugerir entretanto, às instituições capazes disso, com o optimismo ingénuo que sempre move as propostas dos artistas, que não ficasse por aqui o balanço das pinturas que foram pintadas em Coimbra no Sec.XX, mesmo sem terem tido a graça de passar às honestas colecções…

A saudade de tudo ser diferente

Uma exposição que mostra uma cidade vista pelos pintores que ela própria elegeu para figurarem nas suas paredes poderá servir para categorizar todas as variantes e componentes da cultura artística desse recanto do mundo?
Servirá essa exposição para nos informar mais sobre os artistas em si, as suas preocupações e a sua capacidade expressiva, ou será a sociedade que se mostra na sua capacidade de ver (ou não) aquilo que se encontra em seu redor?
Que pintura estaria ali perante os nossos olhos se fosse outra a curiosidade, a cultura e o sentido prospectivo do coleccionismo vigente?
Que coleccionadores ou que artistas, que cultura, ou que segmento da cultura é que está ali posta em apreço, para que possamos formar de nós uma ideia que fique (ou não) como denominador comum dum legítimo e autêntico olhar pensativo?
Que pintura, que pintores e que coleccionadores iríamos encontrar exactamente naquelas mesmas salas, se em todos pudesse ter havido no século “um pouco mais de sol, um pouco mais de azul”?

Estudar o passado, criticar o presente, amar o futuro

O catálogo da mostra, edição de 1000 exemplares do Instituto Português de Museus, é um trabalho de inequívoca dignidade, com um texto de abertura marcado pela finura da expressão escrita e pela distinção pedagógica duma visão distanciada à qual não escasseia a generosidade de procurar entender uma realidade que tem sido tão abundantemente ignorada.
Seguindo esta ou outra estruturação observativa, desertos estão praticamente os caminhos que conduziriam ao esvaziamento do tema assim tratado nas breves páginas que ocupa.
À coordenadora Virgínia Gomes, que foi quem concebeu esta iniciativa, coube o texto de remate do catálogo “Ser pintor em Coimbra (1878 – 1978)”, redigido com grande sentido de medida e evidente preocupação de rigor histórico.
Sobre a realização da exposição em si, que nos oferece uma evidente procura de equilíbrio dentro do mais alargado critério de abrangência,  debruça-se a nostalgia do visitante sequioso de alguma vibração, dos subjectivismos estimulantes e dos fermentos activos da surpreendente pluralidade que ofereceu a arte do Sec. XX.
A mostra, além de ser ela mesma na inevitável pluralidade de quem a observa, é, na minha opinião,  um recado importante para todos os interessados: coleccionadores,  artistas, apreciadores críticos, estudiosos, promotores, divulgadores, agentes de ensino, etc.
A todos cabe uma parcela importante de responsabilidade por tudo aquilo que fizeram e não fizeram, por toda a essência da realidade que puderam ou quiseram assimilar, por toda a energia ou abertura na configuração de algo que agora está esgotado e não poder recuperar-se: o intervalo de tempo a que diz respeito.
Qual a motivação que resta, a uns e a outros, no dealbar do terceiro milénio, de prosseguir na tarefa de enriquecer o património da visão das coisas?
Será que houve alguém que aprendeu a ver o mundo pelos olhos dos artistas em exposição? Será que têm herdeiros os distintos coleccionadores ali presentes?
Qual a abertura para se poder instalar um diálogo mais produtivo e visível de situação a situação, entretecendo continuidades novas e enriquecedoras da cultura conjunta que só a procura, a troca e o debate podem estimular?
Quais as portas abertas por onde poderemos entrar um dia destes, encontrando face a face alguns destes notáveis interlocutores isolados e absortos?

 

 

Aveiro e Cantanhede, proximidades diferentes

Publicado Diário de Coimbra 23 de Julho de 2001

Nalgumas das últimas edições desta coluna tenho vindo a abordar a questão da utilização plena do trabalho de organização de iniciativas artístico-culturais, seja qual for o tipo dos acontecimentos e seja qual for a entidade que os promova.
O problema, tal como já o apresentei noutras alturas, não se situa nem na falta de quantidade nem na falta de qualidade dos mesmos, mas na precariedade ou na ausência dos meios necessários de divulgação, documentação e debate crítico, de forma a ultrapassar a confidencialidade e improdutividade a que estão condenadas mesmo as mais notáveis dessas iniciativas.
Partindo do princípio optimista de que nascem animadas dum genuíno interesse de divulgação também não faz sentido confinarem-se ao perímetro escasso da vizinhança imediata, como se vivêssemos em planetas longínquos, de costas voltadas para tesouros que estão logo ali, ao estender mão ou ao estender do nosso próprio olhar.

Uma questão de autonomia cultural

Se vou a um hipermercado posso comprar revistas sugestivas e bem ilustradas que me dão informações muito concretas daquilo que está a passar-se em Paris, a que horas e em que lugares. Lisboa é Lisboa, vem nos jornais nacionais e noutras coisas que já sabemos. O que eu não sei é o que se passa aqui, ao virar da esquina, a poucos Km de minha casa!…
Porque é que terão de ser as coisas assim? Estaremos condenados a saber mais facilmente o que ocorre em Lisboa ou em Madrid do que o que se passa num raio de 60 Km do sítio onde moramos? Não estaremos a desprezar algo de precioso e de insubstituível que é o nosso próprio sentido de autonomia cultural?

Aveiro ao virar duma auto-estrada

Por ter estado ligado a realizações artísticas de minha própria autoria, na cidade de Aveiro, e por ser destinatário da abundante informação cultural oriunda de Cantanhede, tenho-me vindo a aperceber que estamos no itinerário de importantes e interessantes iniciativas, ocorrendo elas de forma sistemática para desconhecimento duma enorme maioria. O que se aplicará evidentemente a várias outras localidades, mas vamos por partes.
Tenho em meu poder um conjunto impressionante de catálogos editados pelos Serviços Culturais da Cidade de Aveiro. É o ciclo “Arte do Século” e tem conseguido trazer àquela cidade alguns dos principais valores da arte portuguesa. Júlio Resende, João Cutileiro, José Rodrigues, Arpad Szenes, Vieira da Silva e Júlio Pomar são as referências nominais que tenho ao meu alcance.
Não fica por aqui o abertíssimo leque de realizações culturais que decorre em Aveiro, não sendo possível esquecer aquelas que a própria Universidade leva a cabo por sua iniciativa e às quais já tive ocasião de me referir noutra ocasião, se acaso está lembrado o leitor.
Aliás, no magnífico Centro Cultural e de Congressos de Aveiro, a valer por si só uma visita, decorrem frequentemente acontecimentos do maior interesse, como foi o caso da exposição recente: “O Azulejo em Portugal no Sec. XX” cujo interesse revestiu, para falar bem e depressa, nível mundial.

E Cantanhede a meio caminho

No que diz respeito a Cantanhede, é também longa a série de realizações que vai tomando forma, sendo sempre recheada e variada a sua agenda cultural. De notar, contudo, a vocação que é patente de desejar inscrever a sua acção no âmbito da modernidade, da criatividade, da ecologia etc. Ainda aberta ao público no momento em que escrevo esta crónica está a exposição que é dedicada ao notável artista René Bertholo e que se apresenta na Casa Municipal da Cultura.
Os catálogos das exposições que se realizam em Cantanhede têm a característica de aliar à sua qualidade gráfica o bom nível de conteúdo estético e formativo, para não falar nos preços, uma agradável surpresa!…
Eu sei que o leitor pode ficar zangado por eu só agora lhe estar a falar de tudo isto, dado que a maioria dos acontecimentos aqui referidos já teve lugar.
Mas adiantará certamente desafiar quem tem o poder para que nos faça acreditar que a descentralização e a autonomia cultural não são apenas conceitos folclóricos destituídos de qualquer sentido, e que vale a pena de pensarmos que não somos como pequenas aldeias isoladas no vale recôndito de montanhas que não nos deixam ver os horizontes. Será ingenuidade inconsequente pensar que entidades poderosas e supra regionais como a Secretaria de Estado da Cultura ou a Comissão de Coordenação da Região Centro, ou os ministérios a quem pagamos os impostos poderiam um dia de forma concreta e prática, começar a ajudar a resolver o problema?
Eu sei que a SEC têm um veículo de divulgação de acontecimentos, leio no JL e já visitei na net. A CCRC também já colabora com a realização de acontecimentos culturais. É público e também está na net. Mas mesmo bom seria que um dia destes todas as populações vizinhas desta região do mundo pudessem vir a saber umas das outras, ter realizações conjuntas, participando de mãos dadas em festividades e acontecimentos de património comum, dando o que tivessem para dar e recebendo tudo em troca. Como se fossemos, sei lá, compatriotas dum mesmo país que fala a mesma lingua e quer entender-se na variedade de projectos culturais diversos mas complementares!…
Será isso do domínio exclusivo do sonho utópico?
Seremos nós assim, tão longinquamente ignotos, habitantes de planetas estranhos e de órbitas desencontrados?

Telo de Morais ou a vontade de criar, coleccionando

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Publicado Diário de Coimbra 16 de Julho de 2001

Os grandes momentos da cultura e das artes, se bem que derivados de conjunturas específicas, não resultaram nunca de casualidades fortuitas. A sua eclosão está dependente do trabalho lúcido, esforçado e persistente.
O  coleccionismo eivado de exaltação estética  é uma das condições fundamentais para que qualquer sociedade, em qualquer período da história da humanidade, possa atingir o patamar essencial duma verdadeira cultura artística e faz parte desse conjunto de fenómenos que não dependem do acaso, mas da implantação de valores humanos determinados.
É por seu intermédio que as obras de arte, no seu todo, adquirem essa qualidade de “objectos falantes” que jamais poderão atingir como peças descoordenadas e desconjuntas, por mais nobre que seja o material de que são feitas.
Não é possível descrever esse sentimento profundo de enlevo e de paixão que atravessa o espírito quando diante do coleccionador se apresenta a obra, como coisa por casualidade descoberta, embora procurada com determinação inteligente.

Merecer uma visão do mundo

Não é porém na intensidade desses momentos que reside a virtude essencial do acto de coleccionar. O valor da descoberta pode, por variadas razões, ser equivalente a uma segunda criação do objecto se for norteada pelo gosto e pela consciência crítica. O que quer dizer que tem de levar dentro, associados, dotes da cultura e da sensibilidade capazes de abrir as verdadeiras páginas da história da arte, de dar nome aos movimentos estéticos e de colocar os protagonistas da criação no seu plinto de eternidade excelente.
Todas estas coisas são por demais conhecidas, dirá o leitor. Pensamos nos grandes coleccionadores do passado ou em nomes sonantes da actualidade, os Longhi, os Thyssen-Bornemisza, os Guggenheim, os Gulbenkian e é sempre à distância de milhões, ou à distância de séculos, ou à distância de países que avaliamos essa realidade.
Espessa realidade essa, guardada em palácios antigos ou edificações recentes e mediáticas, documentada em catálogos pesados de papel de luxo onde lemos todos os nomes que foram fazendo a história, desenhando fronteiras nos continentes da sensibilidade.
E nós aqui, será que não temos uma visão do mundo que mereça ficar? Será que não queremos ou não podemos?

A imprescindível autonomia cultural

Cada país, cada região, cada cidade merece que nela haja alguém capaz de olhar em torno e descobrir as coisas que interessem a cada homem ali e em qualquer outro lugar. Se isso for feito reescreve-se a história da humanidade em cada dia que passa, conferindo a cada lugar a parcela respectiva de autonomia cultural indispensável.
Sem essa mesma autonomia não será possível atingir a capacidade superior de criar e de entender a criação. Os frutos da criação artística e cultural não são de geração espontânea e não crescem nas árvores!…
Telo de Morais vem demonstrar-nos que mais do que os meios, é pelo gosto estético e pelo amor pela cultura que é possível redescobrir o essencial das atitudes dos artistas daqui e doutros lugares.
A colecção que nos oferece não é, reconhecidamente, caracterizada pela solidez esmagadora dos grandes homens de poder ou de fortuna.  Diligentemente reunida ao longo de anos, encontra-se não obstante repassada dessa energia do espírito capaz de reunir objectos raros tornando evidente o seu potencial estético.
Outro aspecto relevante do labor coleccionista de Telo de Morais é o perfilar-se como exemplo raro de atenção desperta à cultura da modernidade, num meio onde nem a acumulação do saber nem a presença da fortuna parecem ser janelas abertas sobre a estética do tempo presente.

O nome dos povos e a sua história

A primeira cidade portuguesa onde se ensinaram pessoas a ler perdeu o jeito de estar na frente, acomodou-se demasiado aos seus diplomas,  e não faz falta esta breve crónica para relembrar  aquilo que é evidente.
Como contributo à aquisição de uma cultura estética tocada de universalidade e como janela aberta à percepção do modernismo nacional em ambiente pedagogicamente propício, Telo de Morais liberta a cidade do peso opressivo dum distanciamento incompreensível  em relação aos principais fenómenos da evolução do gosto no Sec.XX.
Repito: sem ter sido rei do petróleo e muito distante até das fortunas das mais abastadas figuras desta terra que à mesma descerão sem deixar obra que se sinta ou se veja, o coleccionador Telo de Morais dá um exemplo eficaz duma acção concreta, das que podem viabilizar a implantação dos valores da arte numa sociedade, seja ela qual for.
Sem encomenda não podem viver os artistas, sem artistas não surgirão as obras, sem as obras ninguém poderá formar o gosto por elas, e sem o gosto e a cultura e o sentido crítico não chegará nunca a poder dizer-se que um povo existe, e está vivo e merece o seu nome ao lado dos outros povos que fizeram a história de toda a humanidade.

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Cultura a mais, crítica a menos

 

Publicado Diário de Coimbra 2 de Julho de 2001

Dizia um amigo meu há dias, na abertura duma belíssima exposição, que não valia a pena usar de certo tom irónico nas crónicas que vou escrevendo.
E respondia-lhe eu exactamente o contrário, por pensar que o que nos falta é um escrutínio mais atento e sistemático de tudo aquilo que se passa na cidade, para ilustração geral dos cidadãos e para que as instituições deixem de pensar que estão a trabalhar para uma glória incontestável, como entidades destacadas da massa de pessoas de que fazem parte, olhando-se ao espelho duma tranquila autosuficiência.
Por outro lado, sendo Coimbra uma cidade fervilhante de acontecimentos de todo o tipo (é impossível assistir a tudo, e é incontável o número de coisas fundamentais que se vão perdendo) é notória a escassez de referênciação crítica e registo documental adequado de tantas peças de teatro, de tantos lançamentos de livros, de tantas conferências, de tantas exposições, etc.
O futuro desta terra terá conhecimento abundante de certas figuras de opereta que conseguem furar o tecto alto e a carapaça dura da notoriedade, e irá ignorar lamentavelmente momentos da mais alta distinção que ocorreram para regalo confidencial de meia dúzia de participantes.

Aproveitar melhor o que temos de bom

Um dos privilégios a que a cidade se foi habituando ao longo dos anos, e com o qual convive no encantamento acomodado dos afectos garantidos, é a presença laboriosa do Teatro Académico de Gil Vicente, apresentado e conhecido pela sua sigla TAGV (não confundir com TGV…).
A história da casa é muito complexa e variada e não sou eu que vou fazê-la aqui. Estando em Coimbra há trinta anos já me lembro, contudo, dum número incontável de episódios com ela relacionados.
Hoje venho só falar-vos dum espectáculo que nela vi há dias, duma exposição de pinturas presente na altura, e na programação que se apresenta para este mês de Julho.
Com encenação de Adriano Luz, texto de Luísa Costa Gomes e interpretação de José Pedro Gomes, apresentou o TAGV a peça “O último a rir”.
Impulsionado pela notoriedade que só a Televisão permite (que seria do talento explosivo de J.P.G. se não tivesse nunca ido à TV?) garantiu o espectáculo duas casas completamente cheias. O texto, narrativa dum atribulado casamento recheado de personagens, todas elas desfilando perante nós através do talento histriónico e da comunicabilidade vibrante do único actor disponível (por isso os franceses lhe dão o nome de “théatre à une voix”) arrasta-se, em certas alturas, pela normalidade humorística que é de esperar num espectáculo deste género.
De quando em vez, porém, a vitalidade do actor não cabe na lógica descritiva que se vai organizando na nossa mente, e levanta voo,  toma conta dos acontecimentos duma forma irresistível, criando uma coisa especial que é “o espectáculo dentro do espectáculo”. É preciso ter ido ver para nos darmos conta disso, e não vale a pena perder mais tempo a explicar como foi.
No primeiro andar estão expostas várias obras de pintura de Joana Lucas e Nuno Viegas, que começam a desafiar-nos cá de baixo, da rua, reveladas pela generosidade translúcida da fachada. O simpático folheto roxo (e que bonita é a cor…) talvez pudesse trazer-nos um pouco mais de texto a respeito das obras presentes, mas sabemos bem como estas coisas são difíceis, e importante mesmo é passar pelas obras e olhar para elas.
Tomando uma bebida  no “foyer” (chamando-lhe assim, pretenciosamente, sabe-me melhor a bebida…) e olhando as luzes da praça, é bom sentir que a sala está cheia de espectadores e as pessoas se cumprimentam, falando alto. Há alguém que fuma um “puro” e isso transforma as coisas, avivando a curiosidade pelo espectáculo que vai começar dentro de instantes, tornando mais escasso o número limitado de cadeiras na sala, saturando o balcão do bar de clientes de última hora, e transformando os quadros espaçosos daqueles jovens estudantes de Belas Artes em painéis de sonho e manchas com luz própria.

Programa cheio, espaços variados

Atenção leitor, se navega pela internet, não valerá muito a pena ir visitar a página do TAGV. Está sempre ancorada em dias passados, relatando coisas já vistas.
Mas vale certamente a pena ouvir o programa da RUC que lhe é dedicado, às quintas feiras das 19 às 20, e não deve deixar de passar pela bilheteira para tirar o folheto mensal, sempre recheado de acontecimentos. Apresentando certa continuidade gráfica com o antecedente, tem agora um aspecto para mim mais comodamente decifrável. Houve um tempo que tinha as letras tão pequeninas que lê-lo era trabalho bom para míopes. E eu, que sou hipermétrope, só lá ia com uma pequena lupa que trago sempre comigo para ler as listas telefónicas e os horários dos comboios.
O programa de Julho regurgita, e não vai haver quem possa ir a tudo, já se vê. Só a programação do TAGV (às vezes também de alta velocidade…) mereceria certamente uma ou mais crónicas destas por semana.
E logo eu, que não consigo fazê-las.

Alexandre Ramires revela-nos Coimbra, no Museu Machado de Castro

 

Publicado Diário de Coimbra 27 de Junho de 2001

Alexandre Ramires vai deixar-nos para passar a ocupar o cargo de Coordenador do Arquivo Fotográfico do Porto, no Centro Português de Fotografia.
Congratulo-me com o facto, que faz justiça à pessoa e às suas qualidades culturais e artísticas, e deixa a auto-contemplativa cidade impassível como ela sempre está, convicta de ocupar um lugar certo e garantido, bem no centro do Mundo.
A obra que Alexandre Ramires tem produzido no domínio das artes visuais em geral, no âmbito da documentação e criação foto e videográfica, é já muito abundantemente conhecida e a presente exposição “Revelar Coimbra 1842-1900” não é mais do que uma confirmação daquilo que é capaz de nos oferecer.
Utilizando documentos dum ineditismo total e todos com mais de 100 anos, Ramires coloca Coimbra no rol das cidades capazes de erigir a sua memória fotográfica como elemento de valorização patrimonial e historiográfica de importância relevante.

As distracções da cultura inconsequente

De referir que grande número dos documentos mostrados foram salvos por Alexandre Ramires duma morte iminente, recuperando-os de montes de papéis quase abandonados ou redescobrindo-os em alfarrabistas, arquivos e bibliotecas em Portugal e no estrangeiro.
São muito diversos os capítulos em que poderia desdobrar-se o manancial de temas de investigação que nos dá a conhecer, magnificamente apoiados, como é hábito, por uma peça de criação videográfica de sua autoria, que irá ser permanentemente visualizável durante o decurso da exposição.
Cada um desses capítulos daria margem, como nos afirma A.R., para outras tantas realizações expositivas ou editoriais, na preservação de algo que todos os dias se perde um pouco, um muito, ou completamente, ao sabor da desatenção, da pressa e da inconsequência cultural.
Sabia, caro leitor, que Santa Clara, vista na prata dum daguerreotipo de 1842, poderá ser a fotografia mais antiga existente em Portugal?
Já ouviu falar no “Mudo calceteiro”, na “Patrocínia cega” ou no “Cobra ladrão”?
E que sabemos de António da Conceição Matos, pintor e miniaturista por designação própria, inventor e primeiro fotógrafo profissional aqui residente?
E de  José Maria dos Santos, dentista e fotógrafo durante quarenta anos, ou de Arsène Hayes, refugiado e livre pensador, com atelier no nº 153 da Rua da Sofia?
Desses e de muitos outros nomes nos fala a exposição, no desfilar dum universo rico de áreas inexploradas, em que poucas pessoas têm querido aventurar a sua curiosidade, o seu labor e o seu olhar sensível.
Cabe referir o nome de Eduardo Mamede como investigador e publicista, a quem se deve um bem documentado trabalho neste domínio de interesses e que, legitimamente, não é esquecido por A.R. no longo texto do catálogo da exposição.
A atitude, que refiro apenas de passagem e sem o detalhe merecido, é a marca duma espécie de lealdade cultural muito louvável nem sempre levada à prática neste género de obras por grande número de autores.

Capital cultural por um ano ou para sempre?

Sem ter tempo para sopesar condignamente o valor sociológico e estético deste  acontecimento e comentar todas as facetas da sua realização, resta-me confiar aos leitores a surpresa que me produziu uma quantidade de rostos, de indumentárias e de personalidades pela primeira vez revelados, tão distantes da versão castiça dum tradicionalismo sem convicção, nem viço, nem verdade.
Aquelas figuras saem pelas janelas abertas no passado como criaturas vivas, testemunhas disponíveis dum tempo que não é nosso, mas que podemos visitar sem ser em sonhos.
Será aquela sociedade de facto nossa, estaremos nós ali, na sombra e no gesto de avós e tios e parentes longínquos, cujo ascendente não temos o direito de evocar por terem sido vítimas do nosso próprio olvido?
Alexandre Ramires consegue dar duas voltas de manivela na inacreditável máquina do tempo e fazê-la funcionar, de facto!
Não fosse ele um apaixonado pelo cinema que às imagens repentinas e fugidias da fábrica dos sonhos prefere a contemplação serena das figuras imóveis, tão fáceis de acalentar e abraçar, no cheiro e no calor duma ternura antiga mas real e completamente viva, aqui, neste exacto momento.
“Revelar Coimbra, 1842-1900”,  no Museu Machado de Castro, até ao dia 16 de Setembro, alguns meses antes da mais antiga cidade onde em Portugal se ensinou a ler, se ver transformada em sua capital cultural.
Por um ano só, ou para sempre?

Carta aberta às entidades que organizam exposições

 

 

Publicado Diário de Coimbra 14 de Junho de 2001

Encontrei João Dixo quando estava envolvido na montagem da sua exposição.
Por aqui e por ali, sem os primores de arrumação que as obras expostas irão depois adquirir, as pinturas eram já perfeitamente contempláveis.
A atitude de objectos ainda não colocados na sua posição “correcta”, acentuava-lhes o valor de paisagens ou visões legíveis numa pluralidade de ângulos, numa diversa e complementar variedade de abordagens.
Começando pelas cores, surpreendem-me pela intensidade de contrastes e limpidez de tons, que se insinuam como memórias da infância. Geralmente desalinhadas do mais óbvio das cores primárias, conduzem a visão para uma área de fascínio quase hipnótico, perto da vertigem ou da percepção de coisas de que nos lembramos sem jamais tê-las visto.
Passando depois às imagens é igualmente num território de indeterminação que nos encontramos. Cada figura mais elaborada, cada alusão casual, cada composição paisagística, tudo peças encaixáveis conforme a malha de referências culturais ou a energia imaginativa do observador.
O pitoresco, o secreto e o irónico dão-se as mãos, organizando exercícios do olhar que se aventuram por vezes para fora das dimensões do campo ou  conquistando a parcela diminuta, mas vibrante, duma margem lateral da tela. Sem esquecer as acentuações que se materializam sob a forma de apêndices, brinquedos e objectos simbólicos, ou a invulgar titulação das obras.

A pintura, exercício de transcendência

“Eu só posso ir a um museu ver imensas coisas num quadro se lá for inventá-las com o meu olhar, vendo esse quadro em silêncio e respeito, com afastamento, numa atitude que tem algo de sacro, não tocando”, diz-me o artista.
É a esse “exercício de transcendência” que nos convidará a arte mais uma vez e sempre. “Eu é que faço o milagre e não o milagre que me faz a mim”, acrescenta.
Presente em Coimbra desde 1966 e aqui continuadamente activo no exercício da pedagogia artística, foi professor da Faculdade de Belas Artes do Porto, responsável pela grupo de desenho do Departamento de Arquitectura da FCTUC desde a sua criação, é Director da ARCA/ETAC e responsável pela Licenciatura de Pintura ministrada nessa mesma instituição.
Conduziu, além de tudo isso, uma actividade multidireccional no campo das artes plásticas e da pintura cujo detalhe não cabe nas limitações desta breve crónica.
Alongo a troca de impressões com João Dixo em torno dos conceitos que tem desenvolvido sobre a pintura nos dias de hoje, abrangendo numa visão relâmpago a sua enorme transformação desde os tempos remotos em que possuía funções de vário tipo, como veículo  e suporte de imaginários dificilmente encontráveis noutra forma de comunicação expressiva.
“A pintura de hoje não é herdeira da pintura do Renascimento. Os seus herdeiros são os inumeráveis meios de comunicação, dos jornais à internet e à televisão”, esclarece.
A pintura sobrou como processo técnico, como teria sobrado uma charrette antiga com a qual já ninguém se transporta daqui para ali, mas na qual ainda podemos fazer uma viagem integralmente dedicada ao prazer, à contemplação, à descoberta de nós mesmos e do mundo.
“Vamos a um museu ou a uma galeria de arte não para assistirmos a uma função, mas para irmos espreitar a nossa capacidade criadora ou para buscar as referências que soubermos encontrar relativas à história da pintura.”

Milionários, precisam-se

João Dixo não mastiga as palavras referindo-se a questões materiais de certo tipo. “Os artistas são feitos pelo mercado”  afirma.
E há uma constatação a que não foge: sendo os pintores pessoas que não sabem fazer senão coisas supérfluas, criadas apenas com fim em si mesmas, para usufruto especializado e prazer de quem as contempla, são evidentemente necessários os milionários que lhes possibilitem subsistir e materializar obras que deverão ser “quanto mais caras, melhor”.

A mesa acesa da pintura

De tampos rígidos de brilho espesso,  ali estão esses objectos de simbologia entendível, esses que  Manuel António Pina define com a lucidez eloquente do poema inserido no catálogo: “Crueldade de frutos e de flores, /ócios de azul, odores, sabores, / tudo o que sem finalidade dura / serves à mesa acesa da pintura. / Puseste-nos a mesa para uma comida /que a si mesma se come /com uma pueril e insaciável fome /de exterioridade e vida…”;
Convivas somos, pois, no lugar simbólico do mais feliz e descomprometido encontro que é possível conceber: o que associa a essencialidade e o supérfluo, a necessidade e o prazer, o público e o privado
Convivas somos, pois, dum repasto cujas iguarias nos são fornecidas pelo seu autor, mas cuja elaboração nos é confiada podendo, para além disso, temperar a gosto a variedade das múltiplas soluções interpretativas. As mesmas que qualquer obra de arte deve permitir como espaço de ambiguidade onde cabem todos os acidentes e excepções, e que são marcas indeléveis da sua liberdade criativa e da sua genuína autenticidade.

As “Mesas da Cultura” de João Dixo, até 27 de Maio, na Casa Municipal da Cultura.

A pintura de Quintas, a luz e a essência

Publicado Diário de Coimbra 14 de Abril de 2001

A causa próxima deste escrito impôs-se-me de forma especialmente emocionada ao ter entrado numa das salas de exposições que a Universidade de Aveiro vai dinamizando de forma contínua e estimulante.
O artista exposto, Quintas de seu nome, não era do meu conhecimento muito íntimo. Quadro aqui, quadro ali, em bienais ou colectivas de variado tipo, já me apercebera da sua identidade forte. Nada vira antes, contudo, como aquele conjunto especialmente coerente e impressionante, testemunho eficaz duma preocupação de amadurecimento do artista em busca do que é essencial.
Tal critério de exigência não é, com certeza, alheio ao facto de ser uma realização efectuada nas instalações de uma Universidade que pensa a sério na componente cultural das suas intervenções.

A Universidade como espaço de liberdade

O leitor dirá, com toda a razão, que é para isso que servem as universidades. E eu confirmo, sem mais comentários, pensando no turbilhão confuso das alienações, e na preciosidade que é poder, um artista sério em todo o sentido da palavra, dispor dum lugar assim, onde possa explicitar toda a energia disponível na sua mente, sem se distrair com facilidades ou concessões que a sociedade e as conveniências práticas tão frequentemente impõem.
As pessoas que tenham entrado nessa exposição devem ter podido aquietar dentro de si, por instantes, o inevitável bulício duma aceleração vital pouco tolerante com as densidades do espírito criador, na presença de um artista preocupado, mais do que em produzir um certo número de trabalhos de pintura, em fazer-nos participar dessa força interior que conduz à realização de uma verdadeira “obra”.
O conjunto de pinturas apresentado (“o grito do silêncio”) possui uma referenciação histórica e cultural muito precisa (o campo de concentração de Auschwitz) que o artista me foi desvelando, entre sensibilizado e comovido.
A minha atenção ao objecto estético ali presente, contudo, insistia em levar-me para outras paragens do sentido de apreensão da obra.
Desde as portas envidraçadas que, por detrás da livraria, conduzem à galeria anexa ao auditório, o distanciamento começava por fornecer a visão sintética de cada trabalho de Quintas, onde cada sinal está presente quer por efeito da explicitação pictórica que o pintor confere ao gesto, quer por efeito de magia associativa do cérebro, no seu labor de percepções complexas que vão daquilo que se vê àquilo que pode entender-se por virtude do saber que a memória vai acumulando.

A pintura de qualidade vista ao longe, também o é se vista ao perto

O artista, ele próprio licenciado pela Universidade de Aveiro, escola distinta que admira e respeita, confessa-se uma pessoa interessada pelo estudo da filosofia e da estética. Se conhece ou não em profundidade os estudos sobre a psicologia da percepção e a psicologia da forma, se leu Gombrich ou Arnheim ou Panofsky, pouco importa, contudo.
O que se dá a ver naquelas magníficas telas de generosas dimensões é um tratado de apreensão dinâmica da visão sensível, isolando cada mancha ou conjunto de manchas naquilo que possuem de rigorosamente essencial, ou seja, eliminando todo o detalhe pitoresco, toda a sobrecarga informativa.
Superfícies subtilmente moduladas revelam vestígios de execuções prévias, quer no interior dessas mesmas superfícies quer nas suas fronteiras delimitativas. A descoberta de tais ocorrências é uma tarefa de prazer visual que nos faz descobrir inúmeros preciosismos de execução artística onde cada silhueta ou tonalidade cromática inscritas no tecido da obra não aparecem nela por acaso, por mais diminutas ou aparentemente casuais.
O processo assim delineado revela uma outra dimensão da criatividade de Quintas: para além do tratamento do tema do silêncio imposto a todos os injustiçados, é a pintura que se afirma em toda a sua extensão, agregando linguagens afins da arte fotográfica, tal como os processos da solarização e do alto contraste.
Tendo de ficar por aqui na dimensão conveniente duma crónica breve, muitas coisas ficam por dizer a respeito do artista e do seu labor.
Limito-me a referir o facto de ter feito uma rápida visita a alguns departamentos da U.A. onde se encontram aquisições valiosas e dignificantes de artistas aveirenses, nomeadamente de Quintas, facto que diz muito a respeito desta Escola de prestígio crescente, onde devem sentir-se muito bem os seus alunos envolvidos pela luz intensa do mar e pela amplidão do formoso pedaço de litoral onde se implanta.

Carel Verlegh ou a cor como metáfora da energia do mundo

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 Publicado Diário de Coimbra 2 de Março de 2001

Respirando de pé no alto duma serra verdejante, cercado de pinheiros e céu azul, estou ali com o artista, homem inteiro nas suas frases curtas, acentuações gesticuladas e interjeições de simplicidade subentendida, as tais que deram jeito, por certo, aos laboriosos construtores que passaram pelos estaleiros de Babel.
Além dos três idiomas bem diferentes que vamos intermutando, dispomos da pintura, esse dicionário de recursos sem fim tão intuitivo e fundamental em Carel, que nos dá, sem mais delongas, o que é simples duma forma elaborada e o que é transcendente da maneira mais natural deste mundo.

O olhar, porta aberta para o mistério de todos os seres

Olha o pintor qualquer coisa que o rodeia. Um simples objecto vulgar, uma fotografia nas páginas duma revista lida e relida ou as figuras impressionantes e fundamentais como são as formas do nosso próprio rosto, as intrincadas volutas dos corpos entrelaçados no amor ou confrontando-se em lutas, a naturalidade dos animais, as árvores e todos os outros seres com a sua enigmática implantação no jardim do universo.
Carel senta-se pacientemente diante da tela incomensuravelmente vazia… e espera. Com traços de esquematismo simples define as captações intuitivas que lhe trazem notícias de tudo o que está próximo do homem por ser fronteira, ou referência, ou símbolo, ou metáfora da energia do mundo.
Carel senta-se de novo, e aguarda que todas esses corpos ou plantas, esses seres ou campos de energia se solidifiquem na sua mente em esquemas de cores, agora numa lógica comandada unicamente pelo impulso da visualidade, remetendo a origem simbólica de cada elemento à condição de continente duma outra realidade essencial, dum universo de cromatismos em confrontação dinâmica.
O artista levanta-se, horas ou dias depois, a caminho do seu azul e dos seus cádmios (amarelo e vermelho) animado por esse pouco que é tudo e, em combinações que alcançam todos os valores da escala cromática, ocupa os espaços disponíveis na tela com volumetrias acentuadas por iluminações subtis, sobreposições, transparências e compartimentações de recorte decidido.
O quadro está feito, restando ao autor que o contemple uma vez mais, ponderando a configuração de alguma subtileza final que faça, como ele me diz, com que o quadro fique realmente “equilibrado”.
A nós, espectadores privilegiados, cabe essa outra responsabilidade gratificante que é tentar fazer a viagem de Carel, mas no sentido inverso: desmontar peça a peça, com prazer e proveito, a origem escondida daquela figuração de cores saturadas, a que o autor recusou artifícios de pitoresco decorativo, falsas pistas de encenações oportunistas ou adereços de facilidade supérflua. Encontraremos por certo tudo o que lá foi colocado pelo autor, e muitas outras coisas, se soubermos olhar, esperando com vagar pela revelação das cores intensas, nesse milagre renovado que é o da contemplação reflectida.

Felizes os que se encontram, felizes os que se amam.

Diz-se que os artistas não procuram, acham. Penso que isso acontece com todos nós, e por isso é que a vida está cheia de surpresas, a maior parte delas de difícil ou impossível solução. Mas se uma pintora, Jacqueline Moys, e um pintor, Carel Verlegh, vieram de tão longe e habitam harmoniosamente há vários anos nas serranias de Vale da Silva, Rio de Vide, há que continuar a acreditar, senão em milagres, em factos magníficos e delicadamente preciosos.

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Crónicas da morte anunciada da pintura (ou não) – IV

 

 

Publicado Diário de Coimbra 6 de Fevereiro de 2001

Conforme refere Lionello Venturi na sua valiosa e conhecida síntese sobre a “História da Crítica de Arte” a teoria de Georg Friedrich Hegel da morte da arte, embora notável, não passa de um erro, mesmo que  tenha persistido como tema, especialmente nos tempos mais recentes caracterizados pela aceleração das transformações de todo o tipo.

É com frequência que o assunto é ventilado e actualizado o prazo limite da arte ou seja, o fim da mesma.

Arthur C. Danto, por exemplo, coloca esse limite no momento em que surge a arte Pop, altura em que os objectos mais comuns do quotidiano, sujeitos à lógica da sua multiplicação pelas vias da produção industrial, invadem o território caracterizador da expressão.

Com a arte Pop as obras tornam-se “impuras”, misturam-se estilos e tipos de arte, cores, formas e materiais. A arte sai da sua redoma. O plástico, os objectos mais comezinhos e até o lixo tornam-se elementos de elaboração artística.

A partir daqui só a filosofia pode tentar mostrar-nos qual é a essência da arte e o que significa o momento em que ela se encontra. Os artistas não são anti-modernos, mas sim pós-modernos. Encontram-se, além disso, reconciliados com o mundo e com o sistema que os cerca.

Aquilo que fora apanágio e elemento legitimador de toda a história da arte – o objecto único, distinto e original – sossobra perante a lógica da multiplicação das imagens. Não é impunemente que o local de laboração artística de Andy Warhol se chama “the factory” (a fábrica). Os grandes museus e inúmeras  galerias por todo o mundo não têm que preocupar-se. Embora o preço das obras não seja por isso menos elevado, não vai haver falta delas. “The factory” trata disso com uma impressionante eficácia, e com recurso sistemático a todos os expedientes do tecnicismo gráfico.

Uma arte auto-consciente e filosófica

Aquilo em que a expressão “fim da arte” se foi tornando, contudo, não tem qualquer relação com o fim  das obras de arte ou fim do exercício das artes. O que morreu não foi a arte, mas sim a possibilidade de organizar históricamente a sua evolução através da ocorrência de fenómenos estilísticos, correntes hegemónicas ou manifestos condutores.

Os artistas do fim da arte não deixam de fazer arte, deixam de fazer história. Passam a contar, aliás, com a responsabilidade acrescida de poderem optar com toda a liberdade e de se poderem afirmar exclusivamente em ordem à sua consciência própria, sem obediências de estilo ou de escola. Contemplam o mundo como querem e dão desse facto um testemunho livre de preconceitos. A arte torna-se portanto auto-consciente, filosófica.

Para quem  saiba das coisas da filosofia, e não é esse o atributo infalível dos pintores, possível será esclarecer a esse respeito os fundamentos da imensa obra de G. F. Hegel, onde será possível descobrir que a arte é considerada como morta quando a verdadeira filosofia nasce.

Não é, contudo, ao nível magníficamente profundo desse tipo de elaborações que se desatam estas breves conversas de pintor. Aquilo que venho aludindo não tem por objectivo uma sistematização metódica e científica das grandes questões da Arte. Apenas me preocupa aquele espaço íntimo e precioso que todos e cada um de nós possa reservar à conservação do nosso próprio olhar como espaço de lucidez e criatividade.

Tal como leio em Robert C. Morgan é essencial que a tarefa do artista seja conduzida por um desejável cepticismo auto-crítico e não pelo desprendimento cínico relativamente à obra feita.

Uma parte substancial do ser-se artista no ciberespaço da actualidade é oferecer uma resistência consequente à programação mediática à qual parecemos irremediavelmente condenados.

O resto é parte integrante daquele território que possamos conquistar dentro de nós e nos afirme como seres capazes de descobrir e dar a conhecer o melhor que a vida tem, nos itinerários da criação e da inteligência sensível.

bibliografia:

“História da Crítica de Arte” de Lionello Venturi, nº 24 da col. Arte e Comunicação, Edições 70

Colette Vilatte ou a pintura como exercício excelente

 

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Publicado Diário de Coimbra 2 de Novembro e 25 de Setembro de 2000

Ao volante do meu já antigo companheiro de viagens aproximo-me do Bom Velho, lugar onde se situa o atelier de Colette. Sobretudo depois de se passar Alcabideque a paisagem adquire uma nobreza rara, um intimismo clássico comprovativo de origens culturais mediterrânicas.
As formas esguias dos ciprestes e os maciços de pinheiros mansos que se espalham por sobre as colinas produzem um efeito de cenário a que não faltam pórticos, ninfas, faunos e poetas (estes acrescentados pela imaginação, já se vê…).
Por entre a erva seca (filha do desleixo da desertificação e da mãe amorosa dos incêndios) resistem bravamente oliveiras e azinheiras tristemente abandonadas, o todo envolvido pelo mistério de séculos, em terra de ruínas romanas e lembranças de muitas eras.
Já no atelier não é o peso das memórias nem o vazio irreparável das ausências que me retêm. A pintura de Colette Vilatte está ali e é um desafio inevitável para o olhar e para o alinhamento das ideias.
Comece por dizer-se que C.V.  não é daquelas pessoas que tenha entrado na arte por predestinação juvenil, ou opção natural de estudos. A sua vida é feita de imaginários confluentes de origens diversas, onde a necessidade de expressão artística resulta duma carência lentamente amadurecida. Não surpreende portanto que produza uma pintura marcada por um forte sentido de rigor e moderação de gestos, aquilo que tanto admiro e a que chamo “economia de meios”.
Abstraccionismos há muitos, poderia dizer-se. E até há casos em que o fervor “espontaneísta” tropeça no degrau resvaladiço das soluções expeditivas, portas que se abrem para salas vazias, de ar tão rarefeito que nelas mal se respira.
A pintura de Colette liberta, até à austeridade, de alusões confrontáveis com a experiência dos nossos sentidos, não deixa de evidenciar um labor orientado para a descoberta de uma “figuração”, determinada pelo sentimento e pela sensibilidade, de “seres” que povoam a alma do mundo. Cartografia de continentes e oceanos de formação cosmicamente distante ou vestígios recuperados da sinalética de painéis e painéis publicitários, aos quais o esplendor gráfico de um instante não livra da inevitável erosão do tempo e do mergulho insondável na fragmentação da mensagem plástica, completamente liberta de todos os recados supérfluos e invasores.
A pintora reúne as impressões e impulsos oriundos dessas coordenadas tão distantes, em alinhamentos ora sinuosos ora ritmados por inflexões acentuadas, a totalidade da obra aglutinada pela cortina de manchas subtis e fragmentárias, franja nebulosa que os acasos e virtudes do material diluído adequadamente propiciam.
Todo este universo surge marcado pela elaboração suave e cuidadosa e se o gesto aqui e ali surge despreendido e casual, é porque obedece aos preceitos dessa cartografia de continentes distantes ou interiores, aos quais um critério de arrumação plástica subdivide em suportes diferenciados, sem que essa expediente releve duma qualquer intenção delimitativa, estruturante ou fracturante do campo.
Se um traço atravessa a tela de extremo a extremo, aquilo que poderia ser de início um simples risco na pele lisa e rápida do suporte inerte, transmuta-se numa vibração, numa fractura delimitativa de compartimentos enriquecidos por tonalidades, escorrências e casualidades inerentes ao exercício de tudo o que há de mais simples, no exercício excelente desta arte magnífica a que se chama pintura.

Colette Vilatte expõe na Casa Municipal da Cultura

E não deixa de ser curioso e interessante que, tendo-me ocupado ultimamente com um tema recorrente da teorização das artes e da estética, que é “a morte da arte”, a “desmaterialização da arte” ou o “fim da pintura”, tenha mais uma vez e sempre tido a oportunidade gratificante de me encontrar com Colette Vilatte, obreira diligente da perpetuidade da arte da pintura, a tal coisa que só morre se dentro de nós deixarmos secar a fonte fresca e esclarecida do nosso olhar pensativo.
Aí está, estimado leitor, um tema bem nutrido para uma série de “conversas” a desenvolver  aqui, no futuro próximo.
Entretanto, e desde o dia 3 de Outubro, visite a exposição de C.V. patente na Casa Municipal da Cultura.

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Crónicas da morte anunciada da pintura (ou não) – III

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Centro Galego de Arte Contemporânea, Arqº Alvaro Siza Vieira / Santiago de Compostela (1995).

 

Publicado Diário de Coimbra 22 de Novembro de 2000

Em visita recente à magnífica e histórica Santiago de Compostela, refiro duas presenças portuguesas do mais alto gabarito: a do Arquitecto Álvaro Siza autor do projecto do Centro Galego de Arte Contemporânea, e a do escultor José Rodrigues, presente numa magnífica exposição patente no Convento de São Domingos de Bonaval.
A qualidade deste último acontecimento (originária e anteriormente patente na cidade do Porto) é dum nível invulgar, desde a nobreza como se enquadra no espaço monumental que a alberga, ao próprio “corpo arquitectónico” que lhe serve de suporte (uma compacta peça metálica oblíqua à nave central do templo que é panteão dos Galegos ilustres) e que reforça a solidez compacta duma estética séria, consistente, impressionante.

JR

Exposição do Escultor José Rodrigues, São Domingos de Bonaval, Santiago de Compostela

Como é que se pode chamar arte a isto?

O projecto de Alvaro Siza Vieira realiza com a inteligência que lhe é peculiar a compatibilização da arte do século com a soberba monumentalidade da cidade onde se encontra.
Lá dentro, visita-se uma colectiva de 24 artistas organizada pela Secretaria de Cultura da Renânia do Norte, com um elenco de apoios, patrocínios, comissão de honra e altíssimos comissários, cujo peso e volume deixa esta crónica e o seu modesto autor completamente esmagados pela mais indiscutível e inquestionável altitude. Nomes, nomes e mais nomes. Autoridade e poder, numa palavra.
As obras ali expostas são, contudo, das tais que corporizam uma faceta da questão que venho levantando aqui. Obras que, pela via duma desconstrução assumida da arte, esvasiam as categorias fundamentais da estética, forçando o espectador que tenha a capacidade de manter a compostura observativa (lá, onde a esmagadora maioria não passará dum escarninho encolher de ombros) a interrogar as relações possíveis entre o sensível e o inteligível, entre o significante e o significado que se manifesta em tais “obras”. Um velho armário de lata recolhido do lixo duma oficina qualquer, tem uma porta fechada donde um gravador lança de minuto a minuto um grunhido fosco, animalesco e bruto. Um exemplo, apenas.
Já vimos todos coisas destas, troncos grossos ou gravatos perdidos, montes de pedras ou ferro velho espalhadas pelo chão de museus do mais alto gabarito, esculturas feitas de caca (caca mesmo, leitor, não é gralha!…) em soberbos centros culturais, o conteúdo de caixotes do lixo emparedados em blocos de fibra de vidro em belíssimos palácios da arte moderna. Uma vez, tem piada. Mas o fenómeno de tais “artes” instalou-se com uma continuidade tão impertinente que tira a paciência a um santo. Os perturbantes gestos do dadaísmo inicial e o urinol de Duchamp (a “Fonte”…) já têm mais de oitenta anos, senhores!…

Os Van Goghs e os aproveitadores

Alguns dos notáveis percurssores das vanguardas históricas, aqueles que renovaram e revolucionaram a arte e o olhar deste século, eram homens isolados cujos trabalhos eram muito pouco disputados e  que tiveram de defrontar academismos poderosos. Em casos extremos tiveram de pagar a hospedaria com quadros que ninguém queria e que agora enchem de júbilo (e de dólares…) os mais empedernidos especuladores.
As vanguardas instaladas deste fim de século servem-nos uma pretensa visão contestatáriada da sociedade, uma pseudo ironia  mil vezes requentada, e algumas alusões incompreensíveis dum ecologismo soft, fortificados no mais couraçado dos academismos. Professores doutores e altos comissários a baterem a pala uns aos outros, trocando entre si favores, oportunidades principescas, imersos num impenetrável banho de autosuficiência e de incomunicabilidade, tudo a fabricar curriculum e a amontoar prestígio, prestígio, prestígio…
O que me valeu, no fim daquela tarde de visitas contrastadas e assimétricas, foi poder mergulhar de novo no calor das ruas e nas praças vivas de Santiago, tomar uma “copa”, e saudar a arte eterna dos povos que sentem e das pessoas que amam a vida.

bibliografia:
“Teorías del arte contemporáneo” Fuentes artísticas y opiniones críticas
Herschel B. Chipp, Akal Ediciones, Madrid

Crónicas da morte anunciada da pintura (ou não) – II

 

Publicado Diário de Coimbra 23 de Outubro de 2000

Continuando a discorrer sobre a questão que se coloca em título, abordo hoje um dos muitíssimos temas que flanqueiam esta questão enorme e complexa: a disponibilidade torrencial de imagens e o assalto da informação inútil.
Quando eu era miúdo, comecei por folhear um grande álbum fotografias da primeira guerra mundial e uma pequena colecção de postais ilustrados que o meu avô trouxera dos Estados Unidos, fazia anos. Revisitados vezes sem conta, e enriquecidos pelos comentários do meu avô, foram uma preciosa aquisição da minha memória das coisas.
Passados alguns anos, qual é o estado das coisas quanto à oferta das imagens, para as crianças do fim do Século do cinema e da banda desenhada? Qual é o espaço realmente disponível (e o tempo, de que já falei antes…) para uma contemplação real, fruidora no sentido autêntico do prazer e do saber?
Desde que se levanta um cidadão, até que se deita, é maciça e invasora a presença da mensagem gritada, colorida e luminosamente intensa. Os livros ilustrados (que não há tempo de se folhearem todas as páginas) as revistas nas prateleiras compactas das livrarias (que se torna difícil escolher dentre todas aquela que vamos comprar) e nos ecrãs a variedade de programas (donde até já se inventou uma palavra nova que quer dizer perplexidade: o “zapping”…) são às catadupas.

De internets e futebóis está o inferno cheio

Para alguns dos meus leitores que julgue que este discurso nada tem a ver com o interesse pelas artes, mais uma achega: a urgência de acesso às auto-estradas da informação atira com o cidadão para a frente dos ecrãs da internet, com muito mais facilidade do que entra numa galeria de arte ou visita um monumento antigo, carregado de mensagem e de história. Estão agora a ver?
Uma vez a navegar, vejo-me a braços com o hipertexto e a interactividade. Fecho uma janela e abro outra. Abro aquela e já lá estão mil e uma outras, como alçapões debaixo dos pés de cada um.

Gustave Courbet - Un enterrement à Ornans (1849), Musée d'Orsay / Paris

Gustave Courbet – Un enterrement à Ornans (1849), Musée d’Orsay / Paris

A descarga de uma reprodução de um dos maiores quadros da história da genial pintura (“Um enterro em Ornans”, de Courbet), podendo considerar-se uma imagem de grandes dimensões em termos de internet, comprime a obra duma forma esmagadora e imprópria para qualquer forma de contemplação, e leva para aì um minuto ou dois, uma eternidade para um internauta nervoso. Terminado o “download”, faço o “save” e passo adiante de imediato. Adeus Courbet, que se faz tarde. A obra real, a sério, fica para a próxima visita ao Louvre.
A propósito de coisas sérias, e já que tratamos de genialidades (o génio de Figo, lembram-se?…), falemos de futebol.
Que magníficos, ágeis e imaginativos. Que genialidade e que visão do jogo. Que emoção, que dramatismo e que magnífica generosidade!
– Encaramos o jogo desta tarde com um enorme respeito pelo adversário. Sabemos que é uma equipa recheada de valores. Mas temos a nossa filosofia, etc. etc. etc.
Os discurso é carregado duma dignidade verbal  repetida vezes sem conta, e não explodem com isso as caixas prodigiosas dos televisores.
Somos com efeito reféns duma pantagruélica invasão de imagens sem critério que não seja o da sua enorme facilidade. Reina a confusão no mundo das imagens invasoras: um desfile de modelos é contraposto a uma paveia de mortos enregelados duma guerra num qualquer país do Norte e aos casos picantes do “beautiful people”  sucede-se o rosto parado e exausto dos esfomeados dum país quente do Sul. Detrás de cada imagem, mil imagens, para uma sociedade que enrola os pés na mais tremenda iliteracia e numa absurda falta de imaginação.
Para quem não esteja (ainda…) a ver o que é que tudo isto tem a ver com artes e pinturas, eu cito mais uma recente descoberta de tomo, capaz de por de rastos o portento televisivo remanescente: já ouviram falar do BB? Bertold Brecht? Não caro leitor, eu estou a pensar é no Big Brother!…
De alguns lados do tabuleiro social desfiam-se as tramas e programas da cultura institucional, muito ajeitadas à palmadinha nas costas e à estratégia dos prestígios. Quanta erudição, quanto charme conveniente!…Do outro lado, ao mais fácil alcance da maioria,  essa enchurrada que não tem fim das ideias luminosas dum mau gosto que se afunda, ao que parece, até ao paroxismo da completa idiotia.

Do lado de cá de tudo isso,  um silêncio propício à mais tranquila serenidade.

Vá lá estimado leitor. Recoste-se em silêncio e, se puder, comece a ler a sugestão que vai na receita bibliográfica da “conversa de pintor” de hoje.
Ponha uma música muito boa e não se esqueça de desligar a rádio (dos anúncios) e a televisão (das mil e uma confusões). A internet? Ah, essa, vai dar-lhe geito para mandar vir o livro magnífico, editado em Espanha (6 900 “pêlas”…)

HAEG

Bibliografia:
Historia del arte – Gombrich, Ernest H. – i.s.b.n. 978 848 306 044

Crónicas da morte anunciada da pintura (ou não) – I

 

 

Publicado Diário de Coimbra 13 de Outubro de 2000

De regresso a estas intervenções, depois de um interregno dedicado a outras tarefas, saudações cordiais aos leitores do DC, sobretudo àqueles que me foram perguntando pelas “conversas de pintor”.

Regresso adequadamente céptico, como demonstra o título, redigido por um pintor que tem coleccionado textos, referências, depoimentos e bibliografia avulsa sobre o tema da morte da arte em geral e a respeito do ocaso da pintura, em particular.

Adivinho a curiosidade surpreendida do leitor:

–        É então verdade que a pintura (e a arte…) já morreram, ou não?

A pergunta feita assim, não desafia a resposta. A perpetuidade das coisas é coisa que a natureza não consente, mas ao homem, ser irrequieto e – para mais – agressivo e destruidor, é preocupação obsessiva a projecção perene da sua individualidade.

Apesar dos consagrados avisos de que “assim passa a glória do mundo”  é indesmentível que um número selecto e insubstituível de coisas é eterno no plinto imaginário sobre o qual se ergue.

As artes são, algures, parecidas com as religiões. Há sempre profetas que vaticinam a sua chegada esclarecida ou o seu ocaso inevitável. E há sempre um número incerto, mas garantido, de fiéis prontos a retomar a palavra, a imagem e o sentido da sua necessidade insuplantável.

Se a comparação com as religiões é bem ou mal feita, não perca o leitor tempo a combater ou alinhar tal conceito. Certo é que as artes se transfiguram incessantemente, sem ser garantida a sua entrada numa contingente e precária eternidade.

Necessário seria contudo que todos e cada um de nós pudesse ser capaz de lançar mão daquela visão das coisas que mais agradavelmente lhe convém, sem a interferência obscura das manipulações do oportunismo, das encenações esquisitas e da pressa, da perturbação da velocidade que atravessam este século e estes dias.

Questões do tempo e do corpo

Discutir a morte da arte é como discutir a morte do tempo. Existirá, o tempo? Quando acordamos pela manhã, será realmente do tempo, aquilo de que nos falam os ponteiros do relógio?

“Para si, disponha de todo o tempo do mundo!…”, grita incessantemente o coro infatigável das publicidades. E eu pergunto:

–        Tempo, para quê?

Para reflectir serenamente, para contemplar o brilho dum olhar, ou o itinerário dum raio de luz que se escapa!

O cinema de Manoel de Oliveira tem essa mensagem  insigne, que é a de retomar nas imagens a lógica do tempo da palavra lida, ou a lógica do olhar que se detém sobre um objecto para que a memória o possua captando, por seu intermédio, a compacta variedade do mundo.

Além do tempo, tem a pintura a ver com o corpo. Com as dimensões e a conformação do rosto. Com a paisagem do olhar.

De manhã, quando se levanta, fique com vagar algum tempo a olhar o espelho. Tente descobrir as paisagens que se escondem por detrás do seu olhar.

Prolongue, sem pensar no relógio, as virtudes desse instante suspenso.

Talvez consiga, por si mesmo, descobrir verdades inéditas e palpitantes sobre o destino da arte e das suas imensas mortes anunciadas.

Bibliografia:

“The End of the Art World”, Robert C. Morgan, Allworth Press, NY, Aesthetics Today series

Pintura em azulejo de Carlos Alberto Ferrão na ARTE – galeria estúdio

 

Publicado Diário de Coimbra 27 de Novembro de 1999

Com regularidade serena e a pertinácia que é possível para qualquer artista radicado neste local ignoto das grandes movimentações artísticas, vem revelando Carlos Alberto Ferrão desde 1984 ao público apreciador das artes o produto de parte do seu labor e das suas diversas facetas de criador plástico.

O seu curriculum denuncia uma significativa experiência no domínio da pintura a óleo e um enraizado sentimento dos valores desenhísticos mas é a sua faceta de pintor sobre azulejos que se tem vindo a tornar mais conhecida, pelo conjunto de realizações mais contínuas e recentes.

Pintor ou artista do azulejo?

Assinalo e sublinho a expressão presente no próprio convite feito para a exposição patente desde o dia 23 de Outubro na Arte – Galeria Estúdio, porque me parece estarmos essencialmente em presença dum artista cujo universo cultural e cujos recursos de comunicabilidade se encontram plenamente desenvolvidos no universo que à pintura dizem respeito.

Faço essa afirmação porque tenho tido o privilégio de conhecer a reserva de sensibilidade, cultura e labor artísticos de C.A.F., que não confinam de modo algum o seu domínio de interesses à arte de colorir azulejos, ainda por cima fatalmente impedidos de virem a ser utilizados como cobertura mural, de tal modo está assumida a sua natureza de suporte colado sobre madeira e devidamente encaixilhado.

Não que essa característica seja por qualquer forma carente de legitimidade ou nobreza expressiva. A opinião que exprimo é relativa a uma evidência para quem conhece a variedade de recursos de C.A.F., quer no domínio doutras modalidades artísticas, quer na apropriação que efectua dum imaginário pleno de ironia e sentido plástico e que é francamente pouco conhecido.

O azulejo: encontro de traços e de cores vibrantes

Como é próprio de tantas e tantas telas pintadas por outros artistas pintores, também a generalidade dos trabalhos de C.A.F. tem como gesto inicial a atitude estruturante do desenho. Desenho ao qual a démarche colorista se vem adicionar sem ser de modo gratuito, cada um dos quais reinvindicando espaço próprio, disputando por vezes um ao outro uma porção de respectiva autonomia.

O traço, aliás, anima-se duma instabilidade posicional que recusa a submissão estrita ao compromisso figurativo e abre caminho a diferenciações de que a cor se encarrega de tirar partido adequado. Noutros casos chega a simular a atitude visualmente dinâmica duma focagem/desfocagem, que à visualidade empresta o efeito dinamizador da dita quarta dimensão, o factor tempo.

Uma exposição nunca satisfaz plenamente o artista porque nela nunca se diz tudo que haveria para dizer. A mim, como espectador privilegiado do tão rico universo criativo de C.A.F., lamento que não lhe tenha sido possível até agora demonstrar numa sala bem grande duma instituição cultural devidamente responsável, uma retrospectiva bem estruturada de todo esse tesouro confidencial de experiência artística multifacetada que é a do Artista em apreço, presente  até ao dia 5 de Novembro na Arte – Galeria Estúdio.

A sugestão fica feita, é merecida pelo Artista, mas os beneficiários seríamos seguramente todos nós.

Abrunheiro – 25 anos, na Casa Municipal da Cultura

Publicado Diário de Coimbra 27 de Novembro de 1999

 01 JDAbrunheiroJosé Daniel Abrunheiro 1997 (visto na internet)

O artista confessa-se exilado por iniciativa própria na sua terra de origem. Fugido às contingências, às várias alienações e à pouca generosidade. Não é pessoa que apareça por aqui e por ali, empunhando a taça da estratégia colunável.
Abrunheiro procurou distanciar-se, ganhar altitude, legitimar a autonomia do seu discurso. Emigrou para dentro de si. Procurou-se e regressa muitos anos depois, com um braçado de paragens percorridas no extenso território da sua necessidade e do seu desejo. Não há exercício mais árduo e parede mais a pique: atravessar léguas e léguas de território ausente, navegar milhas e milhas de mar enxuto, em busca de algo que está dentro.
A pintura que nos oferece é duma opulência desusada, profundamente marcada por uma experiência desenhística que pertence ao percurso do artista gráfico que de modo consistente transferiu do estirador para a paleta uma maestria oficinal impressionante. Todos os seus contornos são tão esmeradamente definidos, com gradientes luminosos tão exactamente categorizados, que não deixam espaço a qualquer encantamento dúbio, desfocagem inoportuna ou intrusão astigmática. O todo especialmente caracterizado pelo uso tão comedido da matéria pictórica, que não chegamos a dar pela presença material do óleo, quando é essa a técnica utilizada.
O drama interior, se questionado, é enormemente confrontado com essa claridade inequívoca, à qual se acrescenta um enorme optimismo colorista que se exprime até às culminâncias dum sensualismo onírico, recuperação impressiva de paragens cheias de espanto, recordações de sonhos de criança que dorme, ou de alma regressada agora mesmo dum além inexplicável e resplandecente.
Nem o olhar da águia nos atormenta nem as garras do leão nos assustam, metaforicamente ocultas por um par de luvas da mais requintada pelica.
O ventre claro e luminoso da mulher é como uma praia e nele as pegadas caminham para a luz. A luz omnipresente: no vestuário das pessoas já mortas, na translúcida evocação da Mãe, na transparência poligonal das cores, nos planos entrepostos, nas imagens de leituras múltiplas, na simbólica persistente.
Só o rosto do próprio, se auto-retratado, nos confronta com a gravidade solene do silêncio, com a visão distante dos problemas sem resposta ou o olhar descido daquele que procura no interior aquilo que não encontra fora, estendendo uma mão problematicamente vazia que tanto oferece como solicita.
A sublimação mais adequada que me parece ter encontrado do gesto pictórico de Abrunheiro situa-se na natureza mesma dos suportes por ele mais frequentemente utilizados. Telas de rede fina ou aglomerados de madeira de superfície firme e lisa, superfícies duma brancura estreme em cuja alvura incólume o olhar do pintor se pode perder no primeiro instante como num oceano de luz, sem margens nem fronteiras, sem fim nem princípio.
É nesse território imponderável que se expande a pronunciada vocação lírica do artista ou o seu cansaço dos paradoxos do quotidiano, onde nos dá a ver coisas e objectos transfigurados, muito para além dos limites plausíveis da realidade. Uma cidade, como monturo de lixo fétido, é retratada com as cores da cidade dos brinquedos de Pinóquio e as atractivas ressonâncias de papel de lustro da casa dos confeitos de “Hänsel und Grettel”.

Pintura excessiva no seu tormento de explicitação?

A focagem omnipresente, tão abundantemente suspensa de uma confessada vocação literária, mantem o olhar do pintor associado a um compromisso estrito da visão com o objecto que se dá a ver, compromisso a que muitas pinturas  se vêm mostrando alheias.
Que importa isso a um artista que acerta todos os seus relógios pela hora incerta, em quadrantes de geração esquisita dum sujeito ausente que persiste na busca do tempo que não é, e que um dia destes pode surpreender-nos ao virar da esquina dum sonho ou procurando pelo chão a jóia perdida dum sentimento?

Serralves e Vila Nova de Cerveira

Publicado Diário de Coimbra 27 de Agosto de 1999

A cidade de Coimbra, em Agosto, parece cansada de ciência e a maioria da comunidade cultural substitui a árdua consolidação dos seus curricula por uma ausência purificante.

Pergunto a mim próprio qual é a verdadeira Coimbra. Se esta que se espreguiça algures, ao sol reparador dos ares de Agosto, ou a outra, aquela que afadigadamente se movimenta ao longo do descontínuo calendário dos compromissos académicos.

O leitor, que conhece a cidade muito melhor do que eu, que faça o seu próprio juízo, respondendo-me quem saiba se é justificado e compreensível este pesado e adormecido silêncio de Verão que se repete, pontualmente, todos os anos.

É curioso notar que, exactamente neste período do ano, surgem por aqui e por ali, de Norte a Sul do País, uma vaga enorme de acontecimentos de grande significado cultural e artístico. E não só em Lisboa ou no Porto.

Gerhard Gutruf na Sala da Cidade

Refrescando Agosto encontra-se em Coimbra a exposição de Gerhard Gutruf, promovida pela Embaixada da Áustria conforme consta na Agenda Turística, presente até dia 20 na Sala da Cidade – Refeitório de Santa Cruz.

É o valioso testemunho dum labor generoso do ponto de vista pedagógico, que abre simultaneamente para os domínios da pintura e da gravura. A realização merecia elementos de acompanhamento e informação de melhor qualidade, e penso que o ideal seria mesmo uma conferência a realizar pelo autor que, segundo parece, chegou a estar na cidade para montagem da sua exposição.

Visita ao Museu de Serralves

A cidade do Porto continua a aquecer os músculos para o enorme e milionário acontecimento de 2001, Capital Europeia da Cultura. E mostra serviço, não tenhamos dúvidas. Coimbra, se quizer aproveitar e ganhar balanço, não perde nada em estar muitíssimo atenta a este labor organizativo.

Serralves é muita coisa. Tanta coisa que não cabe no discurso resumido nesta crónica.

Primeiro, o conjunto e o seu significado histórico, a forma como surgiu e o modo como está ali agora, à disposição de toda a gente.

O edifício inicial, os jardins, a fundação e as suas colecções, as suas iniciativas e projectos.

O Museu de Arte Contemporânea, a obra arquitectónica de Siza Vieira e o projecto institucional, que engloba como realização actual de maior visibilidade a exposição “Circa 1968”.

Entremos primeiro no espaço de liberdade verde que tudo envolve, na maior das calmas.

A generosidade de espaço que caracteriza o conjunto e o seu enquadramento natural demonstra-nos a razão daqueles que em devido tempo sabem planificar com vistas largas. Quando foi edificado, o palácio e os seus jardins devem ter parecido um exagero colocado em quintas espaçosas, mas muito fora de mão.

O intenso prazer que nos proporciona a visita confirma o que já era nossa convicção: estamos cansados de obras de concepção mesquinha e atarracada, de prédios em cima uns dos outros, de espaços saturados, de carros em cima dos passeios, para não falar das medonhas ruas sem passeios onde está aberta a caça ao peão, e por onde o peão tem de aprender a trepar paredes se quiser  sobreviver.

Um café com Siza Vieira, não é para todos

Bebamos um café com Siza Vieira na elegantíssima cafetaria que desenhou para nós, até ao mais ínfimo detalhe. Seja a presença do Arquitecto uma ficção a que se permitem estas insignificantes “conversas de pintor”, certo é que o diálogo é possível, por ser tão intenso o conjunto de impressões estéticas que todo o edifício desperta no visitante.

Sem desprimor para a exposição ali presente, é óbvio que o edifício e a sua concepção disputam uma parte muito significativa da atenção dos olhares disponíveis de quem entra.

Desde a implantação da obra, das opções que tiveram de ser feitas para existir uma boa articulação com o material paisagístico e arquitectónico pré-existente, toda a história do edifício deve ser um emaranhado de razões cheias de interesse conceptual que teria interesse conhecer.

Para mim, sem ter conhecimento dessa história feita de complexidades e opções candentes, há um aspecto que sinceramente me conquistou, para além dum universo doutras razões apreciativas: a sequência de relações que o edifício estabelece com a área envolvente e a utilização que o Arquitecto faz da substância visual que está ao seu dispôr e que nos vai sendo revelada através das aberturas rasgadas na construção.

As janelas, de dimensões cinemascópicas por vezes, constituem-se como aberturas de enorme sentido revelador quer da paisagem natural, quer da plástica interposta das restantes áreas do edifício. Caso a caso parece-me sempre exemplar o tipo de opções que foram feitas e é até possível fazer um exercício muito curioso: tentar descobrir, pela movimentação, os diversos jogos possíveis de enquadramento que uma só janela permite. O resultado é surpreendente e fornece uma infinidade de reflexões sobre o potencial da obra do nosso interlocutor que, embora ausente, se revelou magnífico de eloquência.

Para quem vá em direcção ao Norte, muitas são as referências artísticas que não convém ignorar. Entre elas destaque para a X Bienal de Vila Nova de Cerveira, esplêndido destino de férias culturais, em grande actividade até 12 de Setembro.

Castro de Sanfins e Mário Botas

 

Publicado Diário de Coimbra 20 de Agosto de 1999

 

Coimbra em Agosto, a cidade no seu melhor.

É assim, com menos gente e com menos (muito menos) automóveis, que se prova o que é obvio: a má arrumação do cimento armado, a exagerada taxa de ocupação do solo urbano.

A paz merecida de Agosto podia ser de todo o ano se fosse outra a arrumação das coisas. E não me venham com razões do negócio porque o negócio também podia fazer-se deixando às pessoas espaço livre para viver.

E nós, os poucos que cá ficamos este mês, também devemos pensar nisto: A cidade é construída para todos, mas só alguns mandam na construção da cidade toda.

Coleccionar Arte, refrescar Agosto

Agosto em Coimbra, gente ausente, portas fechadas. Os autocarros rareiam, mas só dá conta disso o turista mais pobre e o número de cidadãos residentes que não possui o sacrossanto objecto de transporte privado: polui e transtorna o quotidiano, mas quem há aí que queira virar a cara a esse naco de liberdade possível. O carro: sustentáculo afirmativo do ego e ensejo dominador do tempo e do espaço!

Entretanto, não se esqueça duma coisa, estimado leitor: Se prescindir de trocar carro tão cedo pode ir pensando em começar já uma bela colecção de obras de arte. Exactamente com o mesmo dinheiro, sem qualquer encargo para si (até parece um daqueles anúncios de papo furado a quem tanta gente dá ouvidos…).

E o valor dos quadros adquiridos vai ficar ali intacto para todo o sempre, enquanto que o valor da lata rebrilhante em breve perderá a refulgência que tanto impressiona amigos e conhecidos. Eu sei que não vai fazer isso mas não me leve a mal. É para desabafos ingénuos como este que se fizeram as crónicas de Verão!

Metamo-nos então no comboio (que, aparte o chegar sempre fora de horas, é uma ilha de frescura através da manhã afogueada) rumo  a Lisboa, em busca de sensações e relações que nunca virão até nós, os da província.

Em Lisboa, na Gulbenkian,  as exposições de Paula Rego (até 29)  e a de Paul Caulfield (até 15). Na Culturgest foi ainda possível ver a realização dedicada a artistas da América Latina que estava de saída. Logo ao lado, no palácio Galveias, a exposição da pintura Espanhola e Cubana das colecções do Museu Nacional de Cuba (até 10 de Outubro).

Esta última exposição é uma excelente oportunidade para os apreciadores de pintura do Sec. XIX. O catálogo é uma edição excelente com um preço muito convidativo, atendendo à sua qualidade.

Quanto a Paula Rego e a Paul Caulfield, são artistas impossíveis de arrumar nesta crónica de Agosto, quedando-me desta feita pela sugestão de que, sim senhor, são visitas do maior interesse.

Sanfins, uma capital castreja

Ficando em Lisboa (uma vez não são vezes…) foi possível ir no outro dia, logo de manhã, para Belém. Como o Centro Cultural só abre lá para as onze, chegou o tempo para matar saudades das muitas coisas que estão à volta da Praça do Império e, não havendo coragem para andar muito, aproveitou-se para visitar desta vez o Museu Nacional da Arqueologia.

Embora não estando patente ao público a importante colecção permanente, o que é pena, visitam-se as quatro exposições disponíveis, qual delas a mais interessante. Uma documenta os núcleos de povoamento que existiram no norte do país numa época anterior à fundação da nacionalidade, com filmes, vitrinas, maquettes, mapas e diversos painéis muito elucidativos.

O número de locais históricos referenciados naquele período (povoados por valorosos combatentes que se opuseram à campanha militar romana de Décio Júnio Bruto de 138 a 136 AC) é verdadeiramente surpreendente – cerca de 500 localidades!

Nos caso mais amplamente documentado pela exposição (Sanfins, a 7 Km de Paços de Ferreira e a 30 Km do Porto) é fortíssima a motivação duma visita a fazer “in loco”, devido à beleza do local de implantação dos vestígios e a respectiva recuperação arqueológica.

A outra exposição temporária, instalada sobre estruturas em ferro com uma concepção e uma arquitectura em tudo surpreendentes, é uma notável realização a respeito da herança histórica e cultural do Islão no nosso país, numa mostra sugestivamente intitulada “Os Últimos sinais do Mediterrâneo”.

Com caracter permanente ali se podem visitar duas exposições soberbas: A Arte Egípcia e Tesouros da Arqueologia Portuguesa, integrando esta última conjuntos de valor incalculável de peças de ourivesaria arcaica peninsular.

Mário Botas e as visões inquietantes

No Centro Cultural de Belém há sempre coisas de interesse para ver. Sem me referir com o detalhe devido à colecção ali presente do Museu do Design, e também  à exposição “Flashes,  tendências contemporâneas” da Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, falo do principal motivo que me fez deslocar ali: a retrospectiva de Mário Botas presente ainda até 24 de Outubro próximo.

Na minha coleccão de papéis velhos e recortes preciosos figura um par de antigas policópias de 1981, respeitantes a uma interessante exposição feita por Mário Botas em Coimbra, no Círculo de Artes Plásticas (“Quinze desenhos de viagem e três de meter medo”) sendo sua directora a minha saudosa amiga, a artista Túlia Saldanha. Com ambos conversei na altura e é indelével a impressão que me ficou da personalidade fina e talentosa do artista.

Sempre tenho perseguido com zelo e prazer do espírito os testemunhos da obra de Mário Botas. A sombra gélida do seu fim pre-anunciado mancha geralmente de espanto a consideração que merecem os seus trabalhos.

Para mim, contudo, entre tanto destino inútil e entre tanto desperdício de vida fútil como o que nos é dado ver por este mundo, encontro na duração de Mário Botas um larguíssimo continente de horizontes infindáveis.

Lamentando a brevidade dolorosa da sua passagem e contemplando sem temor a contingência inevitável do nosso próprio fim, não sinto qualquer desgosto fundamental ao pensar no destino do grande artista.

Pensando na extensão do tempo, na raridade fluída de qualquer tempo, é sempre curto e insubstancial o tempo que já passou, e não voltará jamais. Só a obra, o pensamento e o sentido que nela residem podem permanecer como garantias de eternidade e substância. Nessa ordem de ideias, tempo longo e profundo de imensa riqueza foi o que não faltou ao trabalho deste enorme criador.

Entra-se no espaço que o Centro Cultural de Belém lhe reservou e abrem-se-nos as asas dum imenso desejo de participar e de viver.

A opção pelos suportes de pequenas dimensões e a utilização de técnicas de registo muito singelas não impedem que a obra surja pujante, densificada, magnificamente transcendente.

Dando uma ou mais voltas a todo o conjunto exposto é sempre enorme o manancial da surpresa e da descoberta: a estranheza, o inesperado, a aragem do medo e a incessante convocatória de referentes duma cultura requintada de mil olhos e de mil cabeças associam-se a um sentimento poderoso de lucidez e destemor.

Isto mesmo, dito doutra maneira: o exercício pleno duma virilidade do olhar. A capacidade para encarar de frente os mistérios magníficos. A incapacidade de recusar as versões desconcertantes da verdade.

Razões para entender que a vida não é para mirar de soslaio, e que a arte vista por este prisma nunca pode ser aquele exercício insípido de certas paixões superficiais, cheias do pequeno amor, inquinadas de mesquinho amor.

Uma manhã no café com António Pedro Pita, sobre Abel Salazar

 

Publicado Diário de Coimbra 4 de Fevereiro de 1999

Se eu chegar a viver tanto como viveu Abel Salazar, não me fica neste momento senão um escasso ano de vida. Que poderei então fazer no curto espaço que me sobra? Pintar alguma coisa mais? Pensar um pouco sobre a vida? Viver, simplesmente?

Sempre que leio a biografia de algum artista ou me ponho em contacto com qualquer figura notável sinto esta inexplicável necessidade de medir forças com a existência, avaliando a liberdade que ainda me resta, em comparação relativa dos tempos vividos.

Se o exercício parece inútil ou intimamente cruel, fica a informação sincera de que o faço de forma inevitável, colhendo disso o único benefício de conferir a cada instante de disponibilidade consciente o peso e a gravidade das raras pepitas de oiro que vou garimpando nos regatos do dia a dia.

Abel Salazar, cidadania pensamento e arte

Sentado diante de António Pedro Pita viajo através do pitoresco e da profundidade do curso de vida do notável cidadão, pensador cientista e homem preocupado em decifrar os mistérios da arte e da vida que foi Abel Salazar.

Algumas histórias simples da infância conotadas com a personalidade forte do homem desatam em nós o prazer do riso. Riso que se apaga perante os agravos da vida conhecida, dos choques com uma sociedade marcada pela maldade da estupidez e pelo desprezo pelos seus melhores elementos.

Tendo-se revelado apesar disso o destacado valor do homem e do artista, fica em nós aquela dúvida incomensurável do quanto foi perdido por não ter corrido livremente a força esclarecedora da sua inteligência.

Da bem arrumada biblioteca do amigo com quem converso chega-me uma obra original da autoria de Abel Salazar: “Que é Arte?” colecção Studium, Coimbra, 1961; uma colectânea de valiosos depoimentos da Editorial Inova de 1969 com o título “Presença de Abel Salazar”; um opúsculo com a intervenção de Júlio Pomar na abertura da exposição póstuma de A. S., obra de 1989 da Fundação A.S. de São Mamede de Infesta.

Restando referir o valioso texto de autoria de António Pedro Pita publicado no esmerado catálogo realizado para esta exposição, ficam assim apontadas as pistas mínimas de referenciação do tema de hoje. Tema que tem como ponto de partida a referida mostra, patente ao público no Refeitório de Santa Cruz até 21 de Fevereiro. Local designado pelos Serviços Culturais de Coimbra como Sala da Cidade e que se situa, para quem ainda não saiba, à frente do edifício da PSP, à Praça Oito de Maio.

A perspectiva, metáfora do mundo

As obras expostas documentam momentos de criação que se estendem ao longo de 25 anos, de 1912 (as primeiras aguarelas) ao decurso dos anos vinte (os mais pequenos formatos a óleo) e até à segunda metade dos anos trinta (com um reduzido número de obras muito significativas de maiores dimensões).

De todo o conjunto destacaria por razões muito especiais os valores que estão patentes nas obras situadas nos extremos temporais deste intervalo, as primeiras pelo espírito de síntese e comunicabilidade e as últimas pela diversidade alargada do gesto estético, ao qual não é alheio um evidente sentido de modernidade.

É observável no conjunto exposto uma notável unidade estilístico-formal, muito especialmente no que diz respeito à estrutura cromática, aos motivos escolhidos e a certos critérios de economia de meios expressivos. Como se o discurso, embora eloquente, não necessitasse de ser proferido em altas vozes, e nos fosse dado a ouvir serena e profundamente.

A paleta dos trabalhos apresentados instala-se numa faixa relativamente estreita que vai do branco aos castanhos, passando pelos amarelos, mas no interior da qual são perceptíveis inserções subtis duma vasta gama de cores, sempre sobriamente sujeitas à tonalidade dominante.

A perspectiva, metáfora do espaço envolvente

Nas obras de maiores dimensões o material subjacente desempenha um papel de relevo, como se existisse entre o gesto do artista e a escolha do suporte uma cumplicidade específica, de que a cor e a textura são elementos evidentes.

A espontaneidade e esquematismo da concepção desenhística (que num dos trabalhos nem sequer nos oculta a prévia instalação dos eixos estruturantes da composição) e uma agora acentuada economia de meios concorrem para uma linguagem em que o detalhe, o supérfluo e o vulgar estão radicalmente arredados. O artista, apenas preocupado com o que é essencial, reserva espaços bastante amplos para a linguagem do material e do gesto, que adquirem dessa forma autonomia plástica suficiente para que tal possa ser entendido como direcção apontada ao futuro.

Quanto à engenharia de luz e de perspectiva em evidência nestes trabalhos, melhor se entendem à medida que o observador se vai afastando das obras, havendo um momento em que, mais que um processo técnico se transformam em metáfora do espaço envolvente, numa enfrentamento entre o que é sensível e o que é inteligível ou, como poderia dizer o próprio Abel Salazar, “um encontro do que é desconhecido, por ser do domínio do científico”, com “aquilo que é mistério, por ser do âmbito artístico”.

Uma curiosidade enorme me invade quanto ao restante das obras disponíveis no acervo do artista, que terão existido ou não, e de que não é possível termos conhecimento.

Se fosse o próprio Abel Salazar a organizar a sua exposição e a escolher os originais a revelar, seriam estas as obras a apresentar ao público? Quantas das coisas escondidas ou menos apresentáveis (com aspas) não viriam à tona, e quantos destes trabalhos não ficariam na penumbra dos exercícios menos reveladores?

António Pedro Pita, conferência sobre Abel Salazar

À magnífica legitimidade das perguntas irrespondíveis corresponde o prazer duma chávena de café na companhia do meu interlocutor com quem falei de todos estes assuntos e que me prometeu o ensejo de debater mais alargadamente o tema tão interessante que me apresentou:

– No conjunto de diligências de um artista onde é que está o principal? No apontamento rapidamente concebido, no esboço acidental, no perímetro convencionalmente acabado da tela integralmente preenchida, assinada e datada? No pequeno formato que se olha de perto ou na obra de maiores dimensões que observamos de mais longe?

Ou perguntando de outra maneira:

– Na totalidade do trabalho do artista, onde é que está a obra?

À falta de espaço para uma entrevista cabal sobre tudo o que foi dito à nossa mesa de café, a todos aqui fica o convite para a conferência de António Pedro Pita sobre Abel Salazar, no dia 11 de Fevereiro, 5ª feira, às 18:00 horas, na Casa Municipal da Cultura.

Valdemar Santos expõe na Galeria OM

 

Publicado Diário de Coimbra 15 de Dezembro de 1998

Tal como as pessoas também as cidades se distraem, não vendo aquilo que se passa consigo próprias. Talvez também o leitor se não tenha dado conta, mas aquela cidade absorta contemplando a sombra do seu passado, já não existe.

A fatalidade, que não era desculpa, de não haver escolas superiores de Arte em Coimbra, já não se lhe aplica. Um largo número de estudantes de pintura, arquitectura, design gráfico, cerâmica, escultura, fotografia, gravura, serigrafia, cenografia etc. passeia agora pelas ruas antigas com a pasta dos desenhos debaixo do braço. O comércio de artigos para o exercício das artes alarga-se, algumas galerias começam finalmente a deixar de ser simples estabelecimentos que vendem pintura para se caracterizarem como iniciativas com direcção artística e projecto cultural e é notório o alargamento da população amadurecida para um novo entendimento  das artes visuais.

Além dos estudantes, também os mestres de tais matérias fazem parte do alicerce humano da renovação. Valdemar Santos, professor da ARCA e licenciado na ESBAP do Porto, mas natural de Coimbra, é um exemplo significativo que hoje aqui é contemplado.

Valdemar Santos e as ressonâncias do azul

Nas transparências de azul de Valdemar Santos há muito do espírito contido e da contemplação intensa da arte oriental. Em algumas das séries expostas na Galeria OM até 19 de Dezembro, é patente o formalismo austero, a fluidez matinal e a subtileza de luzes descobertas em linhas de descontinuidade, tão abundantes no segredo e na reflexão plástica do oriente eterno.

O artista, tendo exposto em Macau, lá levou alguns trabalhos em que demonstrava essa acentuada vertente do seu imaginário e da sua cultura, não fosse mestre, construtor e investigador de cerâmicas.

Nesta mostra, contudo, não fica por aqui. E passa a colocar-nos questões principais das suas atitudes de pintor. A pintura como temática da pintura, na sua gramática e nas suas técnicas de interpelação do real, do simbólico e do exclusivamente plástico.

O plano de representação e o plano do representado confrontam-se e diferenciam-se naquele quadro  com nuvens e com um estreito e comprimido horizonte onde se vêm casas e plantas em primeiríssimo plano como se fossem uma grinalda feita de papel de lustro.

O agente diferenciador de planos é o de um conjunto de círculos brancos que navegam bem perto do observador, delatando a presença da tela, e dizendo-nos:

– Olhem todos e percam as ilusões; esta paisagem não passa duma coisa pintada numa tela tão branca e tão vazia como qualquer de nós!

Pintura tonta, nunca mais!

O compromisso natural das coisas arquitectónicas bem arrumadas sobre a paisagem, e da paisagem bem arrumada em baixo, no plano que vai dos nossos pés até à linha do horizonte, são questionados naquele quadro em que o horizonte é uma nuvem espessa com barco e lua, e a casa de paredes brancas aparece invertida sobre a parte mais escura e mais distante do céu carregado.

E o acto gratuito da pintura mimética, copiada, repetida (a citação de citações de citações, lembram-se?…) é rebatido naquele quadro quase igual ao seu duplo, com legendas em inglês e tudo.

Mais duas séries de pequenos formatos marcam presença, cada um no seu género próprio, neste conjunto.

Uma das séries é uma espécie de viagem em instantâneos temporizados em torno dum ramo de rosas que assumem sem embaraços o seu singelo destino decorativo. Rosas, sempre moduladas em preciosismo de azul e branco, realçadas por uma passagem de verniz (que evoca com eficácia o vidrado de azulejos) navegam sobre fundo neutro, baço e opaco.

A outra é uma alusão a situações da pintura clássica com um entrecho e um enredo próprios que não vale a pena contar aqui por ser longa a história e concentradas as ideias. Mas muito expressivos os exemplos e a técnica que propõem, por trazerem à memória a atitude privilegiada em arte que é a do momento da investigação, do estudo e do lançamento do projecto. Quem me dera vê-los em grande formato, em quadros tão comunicativos como a ideia que nos propõem

A Galeria OM, situada perto do Girassolum, é um pequeno espaço de arte onde as exposições se sucedem e onde é possível folhear um jornal de artes ou até comprar uma edição especializada na matéria. Ali se encontra, até 19 de Dezembro, a exposição de Valdemar Santos, que dispõe de um pequeno catálogo concebido com originalidade e ilustrado com fotografias coloridas reproduzindo quadros expostos.

Ana Rosmaninho inaugura galeria da Livraria Minerva

Publicado Diário de Coimbra 7 de Dezembro de 1998

Feliz a artista que homenageia o poeta, feliz o poeta cuja palavra é ouvida, feliz o actor que declama.

Felizes aqueles que contemplam e escutam na livraria nova e no novo espaço de arte as coisas que a todos fazem falta, e que produzem – mais que prosperidade ou beleza – o próprio sentido da vida.

Na Rua de Macau número cinquenta e dois, no Bairro Norton de Matos, a partir de agora e para toda a gente.

Motivo: o corpo. Tema profundo: a sua pintura.

O corpo da mulher como pretexto da pintura, ou a pintura como pretexto de si própria? Foi esta a primeira questão que se me pôs, ao olhar a pintura de A.R.

São cerca de vinte obras que, sem margens ou complementos, assumem o corpo da mulher como motivo central e dominante.

Corpo simbólico? Corpo mítico? Corpo histórico evocativo da dilatada tradição dos artistas magistrais, das figuras mitológicas e dos símbolos marmóreos e monumentais? Ou corpo imediato da mulher presente, da mulher que se espreita de longe e se cobiça de perto? Corpo indiscreto, publicamente exposto, publicitário, especulação da sua própria ausência? Ou corpo íntimo, ponte imediata para os destinos interiores, único suporte da felicidade prometida mas fugaz?

Interrogações que se fazem em torno do trabalho de A.R., sem pressa nem temor de chegar ao impossível esclarecimento que, como em qualquer forma de arte, guarda mais abundantemente  em si mesma o largo caminho da dúvida que o perturbante desenlace da certeza.

Poderá alguém dizer, um pouco precipitadamente, que a presença do corpo da mulher invade todo o espaço disponível sobre a tela.

Olhando melhor há outras presenças que com ela concorrem, de forma clara e explícita: a presença da cor e do gesto de expressão plástica, que lhe disputam um espaço autónomo de significação. Autonomia que se afirma nas sobreposições cromáticas, nos acasos de mais um gesto do desenho, de mais um sulco aberto na espessura da tinta, de mais um rasgo final de cor saturada. Rasgos contrastantes: sinalização final do exercício da pintura, elemento energicamente polarizador da paleta de fundo, como uma lágrima, um chamamento, um grito.

Sigamos todos os gestos que pintam

Imaginemos a pintora aplicando sobre a tela inicial tons amaciados e diluídos de cores da terra e com elas fazendo surgir transparências evocativas da carne pálida e íntima.

Imaginemo-la acentuando as formas, sem compromissos de rigor anatómico, respeitando mais a franqueza e a abertura do gesto que a verosimilhança do corpo real.

Membros como ramos de árvore. Corpos como nuvens repousando sobre o azul. Corpos que se alongam deitados, com olhares que não se cruzam com o nosso. Corpos que sobre si mesmo se debruçam no exercício duma auto-contemplação que nos coloca fora, à distância dum silêncio que só a cor aquece, agora cada vez mais expressiva. Corpos numa imobilidade lânguida que se contorcem para além da pose, num arriscado exercício escultórico que questiona o nosso próprio sentido do equilíbrio e a curiosidade infinita de avaliar volumetrias, cingir detalhes e disfrutar contrastes.

A pintora, que também é escultora, atreve-se a confrontar-nos desse modo com aquela área indecifrável do pudor e da explicitação das tendências naturais de que o olhar é cúmplice, umas vezes, e incómodo delator, outras.

Das primeiras cores diluídas aos traços de mais forte sanguinidade e às manchas terrosas de sombreado mais compacto, acrescentam-se as vagas de azul, os amarelos, os verdes e os claros, atingindo valências expressivas através da acumulação de matéria, da sua modulação em espessura e empastamento.

Áreas de cor forte que interferem com o corpo, intrometendo-se, disputando à carne o espaço precioso de quem vê ou afirmando-se por conta própria sem o prejuízo redutor de traços de contorno ou de qualquer outra lógica de ocupação da tela.

Assim se completa a expedição aos reinos da memória onde se expandem os clarões da juventude e as sombras da decadência inevitável.

Ecos imperecíveis do corpo metáfora do mundo, janela única da percepção dos mortais, veículo de todo o prazer e palco de todo o sofrimento.

As minhas visitas à Galeria de Arte Vária

Publicado Diário de Coimbra 26 de Novembro de 1998

É uma derrota da civilização e um péssimo hábito não falar com os vizinhos.

Às vezes ali ao pé da porta, anos e anos, e nem bom dia nem boa tarde. Acontece infelizmente cada vez mais nas aglomerações citadinas feitas à pressa.

Por mim, não gostaria jamais de despir-me duma certa espontaneidade de franqueza a que me habituei com os meus Avós. Falar com pessoas, falar das pessoas! Falar de mim e aprender o mundo comigo e com os outros. Expôr-me, arriscando um pouco do meu segredo. Expôr-me, arriscando aprender algo interessante ou fazer um novo amigo. É bem pequeno o risco para uma esperança tão preciosa!

Para certos alguéns a opção certa é a do silêncio, escondendo o que realmente pensam. Tentar construir mistério e garantir altitude dissimulando uma verdade por vezes bem raquítica. E há ainda aquele processo terrível de não falar das coisas que acontecem, para fazer de conta que elas não acontecem. Ou silenciar a existência do outro, não olhando para ele, como quem diz:

– Não falo em ti. Não olho na tua direcção. Para que te afundes no silêncio e nele morras, ignorado.

É um processo terrível, mas usual. Prefiro mil vezes julgar como aquele meu amigo que é poeta e que diz:

Quanto mais urbano, mais humano!

Mas mudemos de assunto, antes que nos assaltem as dúvidas.

A Galeria de Arte Vária, ali a Celas

O nome que faz subtítulo é duma galeria que fica perto da Cruz de Celas, que já foi monumento de tamanho e agora é só uma pequena cruz, afogada de cimento e de carros por todo o lado.

A Arte Vária encontra-se na zona mais recuada de um estabelecimento de móveis e de peças de decoração, o que talvez demonstre a insuficiência que Coimbra evidencia de não ser capaz de garantir o comércio de arte em regime de completa autonomia. O espaço é luminoso, o acolhimento cortez, e há o hábito enraizado por anos de insistência de editar catálogos de grafismo normalizado e sempre ilustrados, por vezes generosamente.

Vários são os acontecimentos que ali tiveram lugar no ano de 1998 que persistem na minha memória. Sem uma preocupação de actualidade jornalística, que apenas poderá ser útil para a última das exposições ainda patentes na galeria, aqui venho referir como notas de visita três desses acontecimentos.

O Jugoslavo Branislav Mihajlovic e a transgressão delicada

Paisagens semi-abstratizadas onde apenas o fenómeno do horizonte serve de referência para o observador se colocar. Interiores cheios de silêncio, onde magníficas luzes laterais definem profundidades e mistérios. Paisagens diversas e captações interiores de que o artista se serve para desenvolver uma técnica cheia de experimentalismo contido, e um olhar que não se satisfaz com a primeira visão das coisas. Um trabalho que não lança mão de materiais e objectos estranhos à pintura de forma gratuita, como tantas vezes acontece no espaço controverso de algumas tentativas de modernidade fácil, e que desafia o observador à descoberta dum intertexto rico de consequências e variado em seus níveis de leitura.

Ema Berta e a produção infatigável de seres

Sem ter a preocupação semi-académica de arrumar perfeitamente a artista nos escaninhos da referênciação estilística, salta-me à memória o Grupo Cobra, a vibração matérica de Karel Appel e a fluência caligráfica de Pierre Alechinsky na descoberta de figuras animadas de fantástico. O feérico exercício da pintura de Ema Berta decorre duma coisa que eu gosto muito e a que chamo a produção de seres. Não serão flores nem frutos nem objectos nem animais, podendo contudo ser tudo isso e muito mais. Os próprios fundos sobre os quais se agita essa floresta de entidades se constituem como silhuetas suficientemente expressivas e moduladas, para poderem afirmar-se como presenças com significação autónoma de seres, e nem sequer doutra ordem dos que primeiro se referem.

A generosa aplicação da cor, para além da figuração impulsiva cheia de imaginação subconsciente, possui um toque precioso que não oblitera nem oculta nem esmaga ou faz esquecer aquilo que a pintora vai fazendo ao longo de todo o seu labor. As pinceladas ficam todas ali ao alcance do nosso olhar, uma após outra, fazendo que cada momento de cor se adicione aos outros, amplificando-se e ganhando significado.

António Viana e a reinvenção das invenções

Nas criações de A.V. não é o conceptualismo plausível ou formalista que se cruza com o universo habitual da pintura e do desenho, ou vice-versa.

Cada corte esquemático, cada perspectiva inventada, cada alçado e respectivas cotas e até o fingimento das especificações e dos gráficos se desenvolvem mais aquém ou mais além da credibilidade de peças, ou engenhos, ou arquitecturas em concurso de utilidade real.

Nem os métodos de registo escolhidos, nem o descompromisso de rigor tecnicista, nem o particularismo frontal da escolha dos materiais de suporte colidem com o direito à visão autónoma do fenómeno da reinvenção das próprias invenções.

Inúmeras são as misturas de projectos e as interferências plástico-simbólicas. Mas nem as cúpulas das catedrais, nem os cavernames dos navios, nem a espessura dos altos fornos, nem a confusão das engrenagens, nem o paraíso esquemático do bosque invertido nos roubam espaço para o encontro com os gestos próprios do desenho ou da pintura. Aqui e ali, por todo o lado, se insinuam como finalidade eventual do labor dum artista em busca de algo mais que dos prodígios da indústria, ou das soluções providenciais saídas dos luminosos estiradores ou das oficinas fumegantes.

António Viana, a ver na galeria de Arte Vária ainda em Dezembro, ali à Cruz de Celas.

Estampas de Épinal, escultura de nuvens e desenhos de Arpad

 

Publicado no Diário de Coimbra de 12 de Outubro de 1998

Filhos da banda desenhada e do cinema, não se cansam os jovens da minha geração de penetrar cada vez mais fundo na origem desses e doutros fenómenos, que nos acompanham desde o dealbar do nosso entendimento do mundo e dos seus meca­nismos prodigiosos.

Nos fundos do cofre dessas memórias muitas são as referências e inesgotáveis as raízes.

As estampas de Épinal fazem parte delas e, ao revisitá-las, temos aquela sen­sação complexa de entrar numa casa nossa conhecida, antiga e carregada de aromas que nos embalam até ao berço da nossa imaginação.

Na Casa Municipal da Cultura, com apoio da Alliance Française encontra-se até 2 de Maio uma exposição de tais objec­tos artísticos produzidos na famosa e anti­ga “imagerie” Pellerin de Épinal, cidade milenar banhada pelo Mosela, cercada de grandes florestas (os Vosgos) e recheada de parques verdes, em contacto íntimo com regiões de grande projecção, a Lorena, a Alsácia, o Franco Condado e a Champagne.

As estampas de Épinal, descendentes das antigas tradições europeias de produ­ção de imagens que, desde a idade média, faziam ampla divulgação de temas religio­sos e profanos, têm o seu momento de grande expansão no começo do Sec. XIX com a narrativa gráfica dos sucessos napoleónicos.

Prosseguindo uma evolução recheada de temas da mais destacada popularidade e pitoresco, os herdeiros de Pellerin chegam, aos dias de hoje, como exemplo notável de conservação de um património inestimá­vel.

O romance da Raposa e outras coisas

De notar que nos começos do Sec. XX a venda de estampas de Épinal (mormente em folhas volantes de pequeno formato) atingia um montante de 13 milhões de exemplares anuais, que eram exportadas para todo o mundo (Portugal, incluído). Não vou poder abordar os aspectos técni­cos da sua obtenção, por falta de espaço. Apenas refiro que beberam nas antigas téc­nicas da xilogravura e que as tiragens man­tiveram sempre o carácter e a autenticida­de dum produto semiartesanal. A decora­ção foi sempre singela e o colorido simples mas de efeito expressivo. A fabricação mecânica do papel, suporte especificamen­te adequado para o efeito da estampagem, é a única tarefa que se mantém pratica­mente idêntica à que sempre foi.

Aos bons leitores de Aquilino (e são muitos) ocorre-me citar o “Romance da Raposa”, cujas ilustrações são da autoria de Benjamin Rabier, nome destacável da imensa quantidade de artistas que partici­param no enorme movimento de criativi­dade que foi o da renovação das estampas de Épinal através dos tempos.

É no seio deste turbilhão de grafismos que surge, em 1889, já não em folhas volantes, mas sob a forma de jornal ilustra­do, “A Família Fenouillard”, um dos mais remotos começos da actual banda desenha­da, a alinhar com outras referências histó­ricas, todas muito ciosas do seu respectivo e genuíno significado histórico.

Visitada a exposição, apreciadas lenta e gostosamente todas as estampas, olhado o vídeo ali disponível, penso que é de reflec­tir muito seriamente acerca da maneira exemplar como a cidade de Épinal tem sabido manter esta tradição artística e cul­tural. A criação de um museu e todo um sem número de iniciativas e interesses ligados a este fenómeno são motivo duma actividade criativa permanente e um dos principais factores de projecção da cidade. Sem esquecer que constituem uma fonte de trabalho e proveito, a que um número de 190 000 visitantes em 1997 trouxe a justificada consagração.

Cyph, outra presença de França

Com um pseudónimo cifrado, resultante de letras retiradas do seu próprio nome, aparece-nos na Galeria do Átrio da Casa Municipal da Cultura, também até 2 de Maio, a obra de um escultor oriundo das costas atlânticas do país de França.

Formado pela escola de Belas Artes de Paris, e activo em Nantes como professor de desenho, faz da escultura a sua activida­de de paixão.

Seguindo uma metodologia que tenho repetidas vezes recomendado aos meus atentos leitores, procurei falar com o artis­ta, para poder acrescentar à minha própria leitura o conhecimento sensibilizado do “fazer das coisas”.

A obra em si revelara-me (em visita anterior) um sentimento dulcificado e poé­tico das formas esculpidas, onde está pre­sente a essencialidade afectiva e sensual das coisas iniciais e profundas. Nuvens como nuvens. Vagas como vagas. Vento como vento. Ou o simples eco de tais seres, posteriormente designados como tal. Corpos de mulher como pretexto de evoca­ções subtis, distanciadas da referência explícita, ou da acentuação gratuita. “Correndo o risco de ser mal entendido, posso dizer que o corpo da mulher não me interessa. Utilizo-o apenas como ponto de partida para criar formas”.

Podendo pensar que esta exposição, constituída exclusivamente por peças de reduzidas dimensões, reflecte a preferência do autor pelos pequenos formatos, tal não se verifica. São os mais de mil km que nos separam de Nantes que a isso obrigam. E a consulta do livro onde se documenta a actividade de Cyph demonstra isso mesmo, dando a conhecer a sua produção de peças de dimensão mais notável, algu­mas usadas como elementos de decoração pública.

Outra evidência patente na Galeria do Átrio é a multiplicidade de materiais e técnicas a que Cyph dedica a sua aten­ção. O alumínio fundido de forma inova­dora, conforme me explicou, os diversos tipos de utilização do bronze, tirando partido da complexidade e riqueza deste material, os vários tipos de mármore, onde se nota um gosto particular pela exploração da cor dos veios e sua utiliza­ção como acidente próprio da forma alcançada, e ainda outras qualidades de pedra como a ardósia.

Especialmente curioso me pareceu, quanto ao bronze, o tipo de experiências levadas a cabo por Cyph (aqui apenas patente em obras de pequena dimensão, de carácter experimental) onde a forma escul­pida pelo artista se limita a configurar um dos lados da volumetria das peças. O bron­ze vertido nestas, é depois conveniente­mente terminado com todas as .respectivas operações de acabamento, patine etc., no lado que diz respeito a essa face trabalha­da. A parte oposta fica a revelar os acasos ou acidentes que se formam no “avesso” do bronze acabado, onde o artista, aprovei­tando igualmente os desperdícios de forma que os rebordos apresentam, se compraz em registar todos os efeitos plásticos pos­síveis. Estas obras, que também podem ser obtidas pela fractura intencional de peças integralmente esculpidas e moldadas, adquirem o carácter de achados fortuitos ou de objectos lançados pelas ondas numa praia, que esperam que alguém as encontre casualmente.

Nesta brevíssima explicação, apenas compreensível em face dos exemplos reais, dar-nos-emos conta do universo de possibilidades que a escultura oferece, e da complexidade técnica e operacional que à mesma diz respeito, o que lhe con­fere a nobreza duma arte maior que real­mente é.

Desenhos de Arpad

Sem aduzir por agora qualquer comen­tário, dado que já esgotei por hoje as medi­das padrão desta coluna, não desejaria dei­xar de referir a notável exposição presente na Sala da Cidade (o antigo refeitório do mosteiro de Santa Cruz) com os desenhos de Arpad Szenes. Fica no entanto o esti­mado leitor convidado a visitar até 31 de Maio este conjunto de cerca de 100 dese­nhos reunidos e expostos pelas Fundações Arpad Szenes/Vieira da Silva e Calouste Gulbenkian quando da comemoração do centenário do nascimento do artista.

Pat Andrea na Casa Municipal da Cultura

Publicado no Diário de Coimbra de 12 de Outubro de 1998

Não tendo tido a oportunidade de ver a exposição de Pat Andrea em Lisboa, que esteve patente no Palácio Galveias, oferece-me esse privilégio a Casa Municipal da Cultura, até 30 de Maio corrente.

A única folha informativa disponível nas duas salas da exposição dá-nos a conhecer unicamente o soberbo itin­erário curricular do artista. Somos assim obrigados a mergulhar na obra sem qualquer conhecimento prévio do uni­verso cultural do pintor, o que torna o exercício arriscado mas legitimamente fascinante.

É, para já, muito raro poder passear em Coimbra em salas (espaçosas?) rodeado de tão grandes telas trabalhadas com tão imensa sabedoria do desenho e da pintura.

Saudações portanto à iniciativa que é levada a cabo com a colaboração, que é de louvar, da Galeria Fernando Santos do Porto.

Nos quadros, que vemos? Rostos e corpos de mulher alterados frequente­mente nas suas proporções morfológi­cas, não poucas vezes agitados pela convulsão crispada de pavores e luta, em figurações posicionais que fazem alusão às atitudes mais íntimas da fisi­ologia e do destino natural dos seres. Tais deformações proporcionais não me parecem contudo pretender reduzir o fascínio daquilo que o pintor observa, antes pelo contrário. Diria, outrossim, que o seu olhar demonstra a capacidade de se concentrar nos ângulos mais propícios, nos detalhes mais felinos, na intimidade mais concentrada, mais apaixonadamente indiscreta. E é capaz de passar directamente duma farta cabeleira espessa e cheirosa que emoldura um rosto apaixonado às partes mais íntimas da mesma figura, sem passar pelo tronco, tal como o faria uma câmara cinematográfica numa ráp­ida sobreposição de planos.

Que vemos mais? Alguns homens em posição quase subalterna, numa fig­uração que não sendo anódina e em caso algum desproblematizada, revela, com distanciamento crítico feito de perplexidade, a formulação subtil de receios e a denúncia dos limites próprios. As únicas perspectivas que nos traça do homem em atitude viril, numa, é evidente a ironia e acintosa a pose, noutra, o licor sagrado corta uma paisagem quase romântica transfigura­do esquematicamente em lâmina fria, numa fórmula quase distanciada dos requintados atributos técnicos do pin­tor.

Aparece também, além de outros símbolos cuidadosamente selecciona­dos e exemplarmente expressivos, um animal: o cão. Por vezes incorporado nas próprias figuras, parece (excepto nos casos de presença inofensiva) ser interlocutor exclusivo do homem, com o qual chega a travar combates de fero­cidade evidente. Que medos, que fan­tasmas, que delírios recorrentes e afli­tivos retratará esta forma perturbante? O tratamento de algumas figuras mas­culinas, igualmente mergulhados na sombra pastosa ou sombria de silhuetas perturbadas, parece indicar de que lado se encontra a pista a seguir, lá, onde o impulso do desejo é mais agudamente doloroso e onde o monstro salta, ameaça ou dilacera.

Plasticamente muito generoso em toda a explicitação do acto estético, desde as considerações iniciais até às últimas coberturas (concisamente. reser­vadas para os locais da tela onde mais forte se deteve o seu olhar), Pat Andrea é um pintor com um profundo conheci­mento de toda a orgânica da arte que exercita, além disso, sem desperdícios nem trucagens. Tudo o que aparece nos seus quadros é matéria ou acto visível e visual onde o recurso bastante abun­dante ao “non finito” aparece como cúmplice do olhar do observador na fruição dos seus processos de procura e adiamento.

Sendo de naturalidade holandesa, ostenta sem rebuço um cunho expressi­vamente latino americano na vibração onírica, na paleta aberta e sem complex­os e na frontalidade deslumbrada dum olhar que espreita, acaricia e desvela tudo o que é sensualidade profunda ou encantamento visual imediato.

A tragédia biológica da mulher merece alguns sublinhados importantes e o seu estatuto de ente sofredor e isola­do tem alusões a que uma evidência simbólica empresta universalidade justi­ficada.

Todas estas coisas digo, contudo, não esquecendo o essencial plástico desta fortíssima presença artística cuja paixão observativa nos faz mergulhar a cada momento num gineceu convulso onde o sorriso da mulher se transforma por vezes num trejeito comprometido e onde os olhares de soslaio reforçam a consciência clara do interdito miste­rioso.

Nesta pintura magnífica são abun­dantes os seios, objectos magníficos que o universo conserva como dos mais excelentes da nossa memória sensorial e afectiva. Pat Andrea reserva-lhes entretanto um tratamento propositado feito de ocultações/revelações não descentrado da polémica que estabelece de forma inequivocamente frontal com a vulva, aquela raiz donde parece provir todo o segredo, toda a energia e todo o silêncio do mundo.

Despedida de um pintor sem dizer seu nome

 

Publicado no Diário de Coimbra de 12 de Outubro de 1998

Não andei com ele na escola nem fomos do mesmo tempo na tropa. Não discutimos nas mesmas tertúlias nem nos zangámos nos mesmos debates. Não nos tratáva­mos por tu, não tínhamos confiança. Não éramos da mesma terra nem chamávamos um pelo outro.

A decência de modéstia que a sociedade de hoje dispensa à presença natural do artista, faz-me escolher este modo para fazer a evocação dum pintor nosso, recentemente desaparecido. Certo de que a maioria dos que me lêem sabem de quem se trata, confio à curiosidade daqueles a quem o facto tenha passado despercebido a virtude dum esclarecimento sensível e ausente dos gestos vibrantemente inúteis, do vocabulário gongórico das necrologias de circunstância, e da presença forçada dos intrusos de última hora.

Que coisa, aliás, poderá dizer-se na morte de um pintor que não possa

dizer-se na morte doutra pessoa qual­quer?

E que actos, que celebrações, que homenagens e que gestos poderão servir a um colectivo para se despedir de alguém que fica, apesar de tudo, na presença do olhar de todos os que tiverem o privilégio de lhe contemplar a obra?

Os exorcismos vibrantes e as solenes exéquias que a sociedade reserva às fig­uras do poder e aos ditos “grandes do mundo” têm bem pouca utilidade para verdadeiro consolo das almas. Nunca conversei de facto com uma alma. Mas se aquilo que conheço da minha é de ter em conta, vale bem mais o silêncio sen­sibilizado que o alarido dos fogos fátu­os. E da morte do pintor, se se fala muito ou pouco, se se segreda apenas, se poucos souberam, se nenhum jornal disse, pouco realmente importa. Se sou­bermos olhar a sua obra viva, se quiser­mos através dela contemplar um pouco de nós mesmos, fica o seu olhar dentro do nosso.

É esse o elogio, o ensejo de paz e o campo de repouso do pintor.

Nota do Autor:

num autocarro da linha sete, perguntou-me dias depois um senhor desconhecido quem era o pintor a que me referia na minha crónica anónima. Respondi-lhe que se tratava de António Pimentel, no exacto momento em que, apressadamente, já ia saindo do autocarro.

Alexandre Ramires: a complexidade visual do mundo e a revelação dos seus segredos

Publicado Diário de Coimbra 12 de Outubro de 1998

Alexandre Ramires está rodea­do de aparelhos de registo de imagem e de som. O laborató­rio não é vulgar nem simples, pelo intrin­cado de ligações e componentes, mas não atinge expressão superlativa nem no seu custo nem em sofisticação técnica.

Ali, o único luxo que está patente é o da paixão pelo que se regista e a forma como isso é feito.

Num pequeno aparelho adequado, dum lado entram as matérias primas da imaginação, do outro saem nar­rativas animadas de mensagens culturais e conteúdos estéticos inesperados. Fotografias ou os seus negativos, slides, filmes de vário tipo, originais pintados ou dese­nhados seja em que material for, recortes de jornais antigos, outros impressos, coisas escritas à mão, tudo que seja documento visualizável serve de combustível à operação transfiguradora da imaginação dinâmica e da memória reflexiva.

Esta é apenas uma das habilidades laterais do artis­ta. E não pequena, por minha fé! Tudo o que entra pela porta do seu olhar sai transfigurado para o vídeo, pron­to para a comunicação, para a partilha de mensagens. As captações segmentadas de uma imagem, a sua repetição, os descentramentos e desfocagens, os afasta­mentos, as aproximações e as inversões de cor dão a uma mesma visão o efeito da pluralidade, do movimen­to, do conteúdo interior.

Em vez do tropel ininteligível dos “vídeo clip” de milhões de dólares, do filme ultra rápido das mensa­gens subliminares, da mensagem caótica que dá a entender tudo e não esclarece nada, a maximização inteligente dum momento privilegiado do olhar. A des­coberta dum rosto na multidão. O gesto que poisa sua­vemente sobre uma ideia. Um instante de surpresa, de receio, de carinho ou de entusiasmo que não tinha sido visto antes por ninguém.

Das conferências na Vanderbilt ao serviço cívico em Trás-os-Montes

Refrências curriculares? Vejamos: A revista Zorro desde o número um, cinema diário desde os 11 aos 17 anos, o jornal todos os dias (ainda a doze tostões), os cromos da História Natural, da Conquista do Oeste e da História de Portugal, a “Science et Vie” e a “Stientific American” desde muito cedo. Aos 18 anos ala para a América dos anos da era Nixon, do inferno na Indochina e do Black Power! Um rapaz nascido em 1955 em Olhão, na parte Sul de Portugal ainda não vio­lentado pêlos excessos turísticos, encantado pelas fre­quentes conferências na Vanderbilt Universify, em Nashville, Tennessee, que frequentava pela mão de um seu tio, professor de língua portuguesa e especialista em Fernando Pessoa.

Em 1974, uma clara opção por Portugal. Serviço Cívico em Trás-os-Montes, em tarefa de Recolha de Cultura Popular. A equipa era chefiada por Michel Giacometti, prestigiado observador e estudioso do nosso património cultural. Desse momento especialíssimo foram retidas ideias principais, como a da cultura da comunicação e o sentido da memória.

A experiência do astronauta em plena sala de aula

Em Coimbra início do curso de Física. Esperam-no 6 anos de actividades intensas, substancial evolução no conhecimento e evolução das sociedades e na aquisição da racionalidade científica. Permanece 5 anos na Direcção do Centro de Estudos Cinematográficos, onde consolida a noção de que é efémera a acção da imagem como simples veículo de enredos emocionais e cons­ciencializa a necessidade de organizar as bibliotecas da visualidade que identifiquem, cataloguem e disponibilizem os seus conteúdos. Inicia a experiência de filma­gem de factos com vocação histórica que se arriscavam ao olvido.

Já nas suas funções de professor, aprofunda a ideia de que na lógica do consumo das imagens, tal como os meios de comunicação no-los apresentam, impera uma autêntica ditadura do ritmo que não permite a leitura de códigos e a incorporação do saber.

Fala-nos Alexandre Ramires:

– Houve imagens que me ficaram pela sua tremenda eficácia: um astronauta na lua com um martelo e uma pena. Quando deixa cair os dois objectos vê-se clara­mente que caem lado a lado. Na disciplina de Física havia a dificuldade de comunicar o conceito de que a força de gravidade actua da mesma maneira sobre dois corpos de massas diferentes. –

Visto o filme, poupava imenso esforço de argumenta­ção e facilitava a memorização da ideia Antes do formalismo matemático era possível partilhar mecanismos de verificação mais simples e directos. Esta utilização de filmes rompia com a lógica da ida ao cinema que não permite uma reflexão e apenas viabiliza a percepção superficial da historieta e do enredo.

Não pôr fronteiras ao que é novo

C.B. – Vejo portanto que o esforço que podia ter resultado na aparição na nossa praça de mais um ciné­filo competente deu lugar à perspectiva do recolector e organizador de imagens, opção a meu ver mais genero­sa porque menos centrada na personalização da sua própria mensagem. Poderei concluir que é portanto um optimista e que não vacilou perante a massificação dos vídeos?

AR – Sou optimista porque penso que as socieda­des têm evoluído muito e que não se devem pôr frontei­ras ao que é novo.

Acontece que as tecnologias não têm sido aproveita­das para o que é mais útil. Lembro-me do debate acalo­rado que noutras épocas foi travado com aqueles que sustentavam que essa massificação era catastrófica e que iria acarretar entre outras coisas a morte do cine­ma.

Acho que o futuro exige uma partilha intensa de olhares, e que é por seu intermédio que as gerações podem captar a experiência e o conhecimento das ante­riores sem ter que cair nos mesmos erros. É necessário que a memória visual esteja disponível e organizada, que atinja a dignidade imperecível da palavra escrita e que encurte caminhos na comunicação do pensamento e da experiência.

C.B. – Começou portanto a efectuar essa recolecção no começo dos anos oitenta. Diga-me no que resulta­ram então estes quase vinte anos de trabalho.

AR – Inicialmente colhia elementos de trabalho ape­nas na área da minha licenciatura, para meu uso pró­prio. Com a evolução da experiência, passei também a recolher, classificar e disponibilizar assuntos dum leque muito aberto de conhecimentos para ceder a pessoas neles interessados. Como consequência fiai solicitado a organizar diversas videotecas o que me deu a ocasião de colocar a experiência acumulada ao serviço de insti­tuições escolares, autárquicas etc. O meu arquivo pes­soal atingiu mais de sete mil e quinhentas cassettes gravadas que contemplam todas as áreas do conheci­mento e que abrange centenas de milhares de conteú­dos devidamente referenciados.

C.B. – Se bem percebo trata-se dum trabalho de longa duração que confere às suas referências um cunho de universalidade, tal como era entendido pela cultura renascentista.

AR – O simples trabalho de identificação dos temas a classificar e a respectiva riqueza e diversidade tem-me revelado a importância de não confinar a aprendizagem ao território exíguo da especialização.

Há tanta coisa de interessante no universo do saber que vale a pena alargar a nossa curiosidade em todas as direcções. Aliás, a curiosidade que permite traçar pontes entre continentes de conhecimento aparente­mente afastados é a mesma que permite viver em clima de festival de cinema no mundo caótico dos meios de comunicação por imagens.

C.B. – Fica por abordar o maravilhoso das exposições que tem realizado no âmbito do seu trabalho como director da Imagoteca dos Serviços Culturais da Cidade de Coimbra e toda a respectiva dimensão histórico-antropológica. O espaço é curto, fica para a próxima ocasião!…

Hiroshi Umezaki na Casa Municipal da Cultura

 

Publicado no Diário de Coimbra de 5 de Outubro de 1998

Nunca vi o Monte Fuji porque nunca fui ao Japão, e tenho pena.

Conheço-o em muitos dos seus aspectos plástico-sim­bólicos, pelas abundantes referências que lhe são fei­tas através da divulgação da riquíssima cultura Japonesa.

Por diversos motivos que vão explicados, e por outros que não cabem nesta cróni­ca, é natural que vos diga que olhei para os trabalhos de Hiroshi Umezaki com alguma da mesma perplexa admiração com que contem­plaria a montanha sagrada e os seus altos cumes gela­dos e distantes.

Há na aplicação oificinal e na estrutura interna dos trabalhos deste artista uma energia metódica que causa espanto, e merece respeito.

A flutuação no azul e a espada do Samurai

Analisemos contudo o desenvolvimento das obras apresentadas e reconheça­mos nelas, desde já, a exis­tência de diversos níveis de leitura e a sobreposição de sinais de densidade diferen­te, conforme dizem respeito a situações mais remota­mente estruturantes da sensibilidade do seu autor, ou se reportam à sua neces­sidade de evidenciar preo­cupações de carácter inter-cultural.

Essa necessidade, que se denuncia sem lhe retirar toda a respectiva legitimida­de é, como evidente se tor­na, aquela porção do mun­do que não nasceu com Hi­roshi.

Quanto ao mistério da flutuação no azul, aos con­tinentes vibrantes de luzes frias, à íntima e negra fen­da rasgada pela adaga do samurai, é claro que não

foram concebidos nem à mesma hora nem na mesma latitude que a lembran­ça das pedras de muros mortos e esquecidos, ou de outros vestígios da sua ex­periência de viajante dili­gente e empenhado.

Às massas de estrutura­ção cromática de H.U., vi­brantes pelo trabalho de densificação e descoberta de efeitos, encontram-se sobrepostos certos aciden­tes que lhe dão sentido plástico. Alguns, mais per­to da estrutura sintáctica das obras (manchas con­centradas de cor, relevos em trompe-1’oeil) reforçam o seu carácter abstractizante. Outras, de vocação quase simbólica, são verda­deiras fracturas no recôn­dito das quais se abre um grito de cor fina, um traço veloz e doloroso como uma lâmina.

Tais são alguns dos argu­mentos essenciais que nos apresenta Hiroshi Umezaki, com o seu dedicado exercí­cio de servidão artística que é típico dos trabalhadores de espírito metódico e incansável.

O acrescentamento dou­tra ordem de elementos macro-figurativos, corpos humanos ou estruturas quase arqueológicas duma cultura que se deixou dete­riorar pelo tempo e pelo esquecimento de si própria, constituem uma última fase do trabalho do artista, niti­damente destinado a impli­car-nos no seu esforço e de dar a ver, com um olhar renovado, coisas que há muito conhecemos.

O propósito tem uma dose reconhecível de generosida­de intercultural, mas as pedras antigas das casas em ruínas dos habitantes ausentes não têm aquela vibração deslumbrante, e a sua configuração anárquica e decrépita encontra-se ali indisfarçavelmente artificializada por um esmerado espírito de ordenação gráfi­ca.

Assinalo um facto demonstrativo da perspicá­cia do artista como agente transformador de materiais sensíveis, que valoriza a ati­tude estética desde o mo­mento da eleição dos meios e da produção do suporte. Na segunda sala {Galeria do Jardim) interpondo alguns dos ciclos presentes, nota-se a presença de bases da mesma dimensão dos traba­lhos expostos, inteiramente recobertas com o azul prefe­rido do autor, sem qualquer outra cobertura ou inter­venção.

As imagens caudalosas e a vocação da alegria

A comparação das mentalidades orientais com aque­las que nos são próprias, quanto às gerações já vivi­das, terá um sentido ape­nas baseado no gosto pela diferença e no sentido mági­co da viagem. …

Se considerarmos porém as gerações em formação, num mundo que depende fundamentalmente de atitu­des competitivas e de risco, quanto ao esforço de apren­dizagem e domínio das rea­lidades, será também (só) isso?

Será que o Oriente está assim tão longe de nós que nos possamos interessar pelo Monte Fuji apenas como uma ideia abstracta? Será que a espantosa voca­ção de alegria desprendida que marca de graça e de espontaneidade a nossa juventude é compaginável com um mundo de com­boios ultra rápidos e de mensagens transmitidas em milhões de canais, à veloci­dade das estrelas?

No século XVI foram al­guns jovens portugueses até ao Japão em busca de fortuna e conhecimento.

Deixaram por lá a primei­ra espingarda que atirou tiros no Império do Sol Nas­cente, e algumas outras coi­sas mais subtis de que os povos guardam a memória respectiva.

À magnífica juventude que faz parte de mim e está tão longe como eu da férrea e pertinaz disciplina japone­sa, pergunto:

– Se o nosso olhar for rá­pido como um clarão conseguiremos captar duma só vez, por instinto ou felicida­de, toda a complexidade do mundo? E se, pelo contrá­rio, para conseguirmos o entendimento da vida e o aperfeiçoamento das suas melhores ferramentas for­mos obrigados ao arrojo da persistência e à coragem do bom senso, seremos tam­bém capazes?

Alexandre Ramires e a biblioteca dos saberes na imagem

Acrescentando às emo­ções fortes da visita à expo­sição de Hiroshi Umezaki, vale-me neste ponto do meu questionamento uma pes­soa que tem uma vastíssi­ma experiência no domínio da colheita de meios vi­suais, sua ordenação siste­mática e sua utilização con­sequente.

Tendo começado cedo a penetrar os segredos da aprendizagem das ciências pela aceleração das suas visualidades, licenciou-se em Física, foi professor e, mais do que isso, um apai­xonado espectador, organi­zador e divulgador de ima­gens, no que elas possuem como instrumento cultural e científico de futuro.

Não cabendo na parte final da “conversa” de hoje mais do que uma breve introdução a esta fascinan­te matéria, que iremos ver tratada na próxima semana com a valiosa ajuda de Alexandre Ramires, pedir-Ihe-ei apenas que nos diga se também ele, alguma vez, aspirou ver de perto a bran­cura serena dos altos cumes do Monte Fuji..

Alexandre Ramires:

– Os Montes Fuji, símbolos dos horizontes do nosso entendimento, sim: a clareza do sentido de culturas que, lidos, entendidas e partilha­das nos fazem aproximar e sentir o futuro como terreno de diálogo, com imagens repositório das ideias a par­tilhar!

– Obrigado pela resposta, que vale como exaltação de atitudes. E, então, até para a semana!…

António Olaio expõe na Galeria OM

 

Publicado no Diário de Coimbra de 29 de Janeiro de 1998

A abertura de uma nova galeria expressa­mente vocacionada para realizações de quali­dade no domínio da arte moderna será sem dúvida um acontecimento de importância no panorama artístico e cultural desta cidade. Refiro-me à declaração de princípios da direc­tora da Galeria OM, que se situa junto ao C. C. Girassolum, na Rua Feliciano de Castilho, feita através dos ecrãs da delegação regional da RTP, nos seu programas do fim de tarde, que tão auspiciosamente vêm abrir a realidade local ao noticiário televisivo.

O espaço da galeria, que todos com cer­teza desejariam um pouco maior para o desenvolvimento natural que este tipo de realizações solicita, iniciou actividades com a presença de trabalhos da artista Catarina Baleiras, que veio sinalizar de forma explí­cita o desejo de avançar na senda de pro­postas invulgares, mas de indesmentível esmero estético.

O acontecimento seguinte, que se encontra patente ao público até ao fim do mês de Fevereiro é constituído por uma exposição individual de António Olaio, artista nascido longe, mas de vivência coimbrã até ter ido para o Porto, onde se licenciou em pintura pela ESBAP.

Arte a partir da arte

O pintor, que iniciou a sua acção notavel­mente cedo, em exposições de adolescência nesta mesma cidade, veio a interessar-se logo de imediato pela convivência artística na área do movimento da arte conceptual, ao qual veio a dedicar uma apreciável dose de activi­dade, tendo protagonizado acontecimentos dessa forma de intervenção em Portugal e no estrangeiro.

Radicado em Coimbra de há alguns anos, exerce a sua profissão como assistente de Desenho no curso de Arquitectura da FCTUC, permanecendo aberto a uma varieda-

de notável de interesses artísticos, dentre os quais a música assume particular relevo.

Esclarece, aliás, que esta actividade – que leva a cabo de forma bastante significativa como compositor, cantor e letrista – é parte integrante e desdobramento natural da sua condição de “performer” e de pintor, catego­rias que assume sob a designação de “técnico de estímulos”, expressão que usa com convic­ção muito especial ao procurar explicitar o conceito que tem de si mesmo como artista.

Ciente de que as pessoas sabem geralmente muito mais do que conseguem exprimir, pro­cura atingir através da música a concretização de um acréscimo de comunicabilidade, a cria­ção de um universo estético onde se desenvol­vam estímulos e situações interessantes atra­vés de meios diversificados. Produzir, como gosta de dizer, “arte a partir da arte”.

O nome é mais uma cor

A exposição actualmente presente na gale­ria OM é constituída por um conjunto de desenhos e por três quadros a óleo, resultantes duma série de seis que foram apresentados pelo autor na Bienal de Vila Nova de Famalicão, e que têm como tema e ponto de partida a Casa de Camilo em São Miguel de Seide.

As três pinturas são captações feitas por A.O. nessa mesma casa, e estão concebidas como se se tratasse de fotografias antigas, ou imobilizações de uma passagem de imagens televisivas ou fílmicas a preto e branco. Sobre as imagens assim apresentadas inscre­ve-se uma frase: “and this is the drawer where he kept his gun”, alusão à arma com que se feriu Camilo, e que paira sobre a casa como uma ideia obsessiva ou como um fan­tasma.

A inserção da frase funciona de forma plu­ral, quer nas suas implicações de índole visual, quer nas que seja possível adivinhar através das suas ressonâncias literárias ou até linguísticas. António Olaio, estudioso interes­sado na obra de Marcel Duchamp, cita esse autor mais uma vez a propósito dos títulos com que tem assinalado bom número de tra­balhos seus, afirmando que “o nome é mais uma cor presente no quadro”, na coexistência dos diferentes sentidos que ao mesmo são atri­buíveis.

Arte como forma de inteligência

Há uma ideia que me parece de capital importância no entendimento do conceito que anima o artista a respeito da montagem/orga­nização das suas exposições em geral.

Estas são concebidas como “encenações” em torno dos títulos que lhes conferem ori­gem temática, constituindo-se como ideias-força na explicitação do intuito que mobiliza o artista em relação a cada situação criada.

Os quadros deixam, portanto, de ser teste­munhos diferenciados de momentos avulso do pensamento do pintor, para se constituírem como “exposição total”, ou “instalação” de propósito coerente, arte como forma de comu­nicação, “arte como forma de inteligência”, aí onde de novo se nos torna presente a citação de Duchamp.

Referindo as restantes peças que preen­chem a exposição (ou seja, o conjunto de desenhos sobre papel branco de pequenas dimensões) será oportuno dizer-se que consti­tuem contraponto destinado a não interferir com a complexidade narrativa das telas com que se defrontam (no sentido físico da sua arrumação na sala da galeria), desenhos em que o artista se aproxima do objecto de ador­no simples que o senso comum recomenda, na plasticidade pura de um simples traço coleante que se transfigura em caule, e se expande em ramificações singelas, inflorescências de imponderabiíidade assegurada pela fragilidade estrutural que a execução espontâ­nea a pincel sobre fundo branco lhes confere.

Flores como gestos de homenagem ou tri­butos de admiração e lembrança, sem preocu­pações naturalistas, pretexto para atingir algum conforto visual atenuador da carga mais dramática dos quadros fronteiros, teste­munhas inquietas do drama camiliano numa casa invadida pelo espectro duma pistola car­regada.

Casa do escritor, lugar geométrico de tanta memória da literatura, com tão ampla resso­nância colectiva, agora entregue à curiosidade vária dos visitantes de extracção turístico-cultural, num mundo que massifica os estímulos sem os calibrar, sem os reflectir e sem os tem­perar com sensibilidade, como ali nos foi dado entender através do discurso serenamen­te fluente e culturalmente enriquecido do pin­tor António Olaio.

Eduardo Nery na Culturgest e na FCG

 

Publicado no Diário de Coimbra de 19 de Janeiro de 1998

 

Quando eu era miúdo ir a Lisboa era uma coisa importantíssima. Vinha-se de lá mais alto, mais esclarecido e, muitas vezes, bastante mais maroto.

Agora, ir a Lisboa, é muito menos. A pressão dos compromissos, a amálgama confusa das gentes, a distorção da pressa e a sujeição das esperas, reduzem o eco das nossas expectativas aos limites daquilo que. já daqui levamos, na reserva das nossas alegrias e no músculo das nossas imaginações.

Contudo Lisboa é, quer queiramos ou não, a maior concentração de oportunidades, de gentes e de drama que existe no rectângulo. É preciso continuar a visitá-la com a mesma ilusão e com a mesma cobiça de outrora, senão por causa dela, por causa de nós próprios, E dar a esse tempo de reen­contro e de lazer especial, a duração e a liberdade que são essenciais.

Uma exposição paga e outra grátis

Desta vez escolhi – entre outras coisas interessantes que não cabem nesta pequena crónica – a visita às duas magníficas expo­sições dedicadas a Eduardo Nery patentes até fins de Dezembro, na Culturgest e na Fundação Calouste Gulbenkian.

Na Culturgest – onde se mostrou a obra de atelier de Nery – esteve exposta outra obra, dum artista estrangeiro – Sean Scully – aliás de bastante interesse. Pelo acesso a essa outra exposição pagavam-se 500 escu­dos. Para visitar a de E.N., “apenas” 400!…

Se a Caixa Gerai de Depósitos não dis­põe de meios que lhe permitam mostrar Arte gratuitamente, mais valia cobrar logo duma vez 900 paus pelas duas visitas (que deve ser o que toda a gente acabava por fazer…) do que deixar o visitante a remoer motivos que expliquem esta (concerteza muito explicável…) diferença de cotações.

Quanto à obra de atelier de Nery patente na Culturgest, ali nos foi permitido analisar o que foi a evolução do seu pensamento estético, desde os primeiros desenhos de juventude, seguidos das diversas experiên­cias no domínio da pintura (o abstraccionismo lírico, o expressionismo abstracto, as significativas abordagens do pós-surrealismo, a tapeçaria, a Op-art, a “anti-pintura”, as colagens, as diversas incursões na foto­grafia, etc.). O Artista, espírito largamente aberto a uma grande variedade de interes­ses no domínio do transcendental, foi tam­bém muito marcado pela curiosidade cien­tífica, pela necessidade da ordenação metó­dica e pelo raciocínio analítico.

É no cruzamento desta diversidade de tendências que foi evoluindo, impulsionado

por uma pesquisa incessante, por um uni­verso riquíssimo de ideias próprias (imbuí­do de poesia, de sentido crítico e de ironia), o que conjuntamente culmina de modo natural na sua faceta de “artista de interven­ção pública”, ou seja, de artista a quem são confiados projectos do âmbito das obras públicas e que possuem uma índole estética muito particular.

O trajecto que as duas exposições sobre E.N. documentaram alarga-se por 40 anos de trabalho que o conduzem no quase iní­cio da sua carreira a um convite que lhe é feito pelo grande reinventor da tapeçaria moderna que foi Jean-Lurçat de ir estudar com ele em França É mais ou menos por essa altura que o artista transita do gesto largo do expressionismo abstracto à con­tenção cerebralizada da abstracção geomé­trica. Assim se compreendem as criações que efectua na área da “Óptical Art”, onde a tendência de ordenamento e lógica plásti­ca conferem à superfície das obras uma mobilidade sem limites, com efeitos volu­métricos de leitura variada, em que a cor e a geometria dão lugar a uma autêntica fenomenologia da percepção, rica de ambi­guidades, trocas cinéticas, retracções e expansões do mais variado efeito.

O azulejo, evidentemente

É também nesta ordem de ideias que o universo de Nery se cruza tão adequa­damente com a utilização do azulejo, elemento primordial das nossas artes arquitectonico-decorativas, e que desa­gua na sua riquíssima produção de pai­néis, tão recheados de originalidade e força plástica.

Os primeiros trabalhos referidos no catá­logo completo das suas obras realizadas para a arquitectura e para espaços urbanos (aspecto que estava documentado na expo­sição da Fundação Calouste Gulbenkian – com entrada gratuita, diga-se de passagem) datam de meados dos anos 60, e vão ganhando com o decorrer do tempo um significado e uma importância que não é possível descrever numa destas sucintas “conversas de pintor”.

Na última sala do conjunto que abrigava essa realização da F.C.G. passava um filme documentário interessantíssimo em que, de forma embora resumida, a própria voz pau­sada e grave do artista ia longamente refe­rindo aspectos dessa intervenção multifacetada, complexa, recheada de alusões e res­sonâncias sócio-culturais as mais profundas e apaixonantes.

É de notar que, no âmbito desta área de intervenção, nem Coimbra está excluída, com obras que vão desde painéis de azule­jos à organização cromática de edifícios públicos.

O pudor de publicitar as iniciativas culturais

O catálogo “Eduardo Nery -1956/1996” (5 000 escudos, na Fundação Gulbenkian) com as suas mais de 260 pági­nas de bom papel, bons textos e muitas reproduções fotográficas, é um óptimo documento de trabalho. A edição é apre­sentada por ambas as instituições mas a Culturgest, que até tem um interessante “jornal de exposição” (o que faz parte, creio, de todas as suas realizações do géne­ro e custa 350 escudos, se me não engano) parece ter uma certa dificuldade em vender o catálogo referido. Não me foi possível comprá-lo ali, embora tivesse tentado.

Não refiro estes pequenos detalhes com azedume (como faço, aliás, com a questão dos custos de entrada) senão para lamentar aquilo que me parece ser uma dificuldade enorme de duas grandes instituições cultu­rais em articular esforços para melhor divulgar e projectar uma tão importante ini­ciativa conjunta. Se as instituições são gran­des, o artista é enorme, e não havia mal nenhum em divulgar mais e melhor um evento que encontrei para ali perdido em enormes salas vazias de público, como tan­tas vezes me vejo sozinho nessas casas da arte e da cultura, sempre que ali vou de visita.

Casa da Cerca e José Mouga

 

Publicado no Diário de Coimbra de 12 de Janeiro de 1998

 

Sempre que vou a Lisboa e me chega o tempo, meto-me num cacilheiro e vou até à outra banda. Nem que seja só para ir e vir, para esquecer o caos, a amálgama, os fumos e a pressa. Vou lá para cima, para o tombadilho, respirar o ar enorme do meio do rio, acamaradar com as gaivotas e sonhar viagens.

Nos dias de maré rija, quando o barco baloiça mais, consolo-me das saudades das lanchas açorea­nas, embaladas vigorosamente pelas ondas do mar alto, e lamento que o mundo não seja todo feito assim, de frescor e liberdade.

Desta vez, porém, foi dife­rente. À saída do barco, tomei o autocarro que vai para o Cristo Rei. Saindo na Rua Capitão Leitão, lá fui pergun­tando caminho em busca dum sítio chamado “Casa da Cerca”. Andando um pedaço, já por ruas estreitas, lá se chega finalmente, sem perder o ensejo para referenciar outros locais já familiares, como o Teatro Municipal de Almada.

A “Casa da Cerca” está ins­talada num antigo palácio do Século XVIII, a que os comen­tários arquitectónicos atribuem linha barroca de aura “já romântica”. Certo é que o mais valioso capital deste elegante edifício é a sua localização. Apropriadamente edificado junto dum larguinho que tem o nome de Largo da Boca do Vento, está assente num pequeno planalto que domina o Tejo, o seu estuário por inteiro, e a cidade de Lisboa, repenti­namente ali diante como que ao alcance da mão que, sonhando, se estende até ao

outro lado do rio. E o grande ar fresco, as árvores de ramos oscilantes, as estátuas e a erva curta fazem tudo dentro de nós, subitamente suspensos, para além das coisas e dos casos comezinhos.

Lá dentro a exposição de José Mouga, que tem o título genérico “Anos de risco/dese­nho 1977-1997”.

Comprado o elucidativo catálogo (124 páginas de texto e reproduções) nele fica plas­mada a memória do aconteci­mento que tem a duração de três meses (Novembro de 97 a Janeiro de 98), e que dispõe ainda dum sintético, mas útil, “jornal de exposição”.

Muito haveria a dizer a res­peito do acontecimento no seu todo, incluído o esmero estéti­co, certamente devido a todo o grupo realizador sob a direcção do pintor Rogério Ribeiro.

Particularmente substancial é a forma como se desenvolve a exposição, que atinge as 161 peças, subdivididas em 16 con­juntos/capítulos, cujos títulos –”memórias do natural”, “bestiário”, “ossos”, “memórias tranquilas”, “escritos na cal”, “fragmentos do natural”, “ensaio sobre a solidão” etc. – aparecem referenciados por textos do diário do pintor. Tais textos, sem assumirem o aspecto simplista da “legenda” ou da “alusão” linear, contextualizam poeticamente todo o labor do artista de forma a amplificar o “prazer de ver” que serenamente se apodera do visitante.

Quanto aos conjuntos/capítu­los plasticamente considerados, estão devidamente alinhados pela simplicidade densa das lin­guagens respectivas e agrupa­dos por caracterizações técnicas de elevado critério oficinal.

Olhando assim José Mouga é possível a todo o momento efectuar uma discussão muito fértil da fundamentalidade das técnicas e dos materiais em presença a partir de cada ideia como formulação plástico-poética.

Assim será também, quer se deseje fazer uma abordagem do generoso conteúdo pedagó­gico, quer se procure a densi­dade doutros níveis de leitura, cruzando linguagens e contex­tos da forma mais apetecível e mais propícia ao estado de espírito de cada observador.

Assumindo-se a “Casa da Cerca” como um Centro de Arte Contemporânea é possí­vel, neste caso, transformar a modernidade numa atitude que, sem deixar de se situar a um nível de densidade concep­tual adequado permite, e até solicita, a participação dum número muito alargado de sen­sibilidades. Isto, sem o recurso a esforços de leitura elaboradamente codificados, que – tal como tenho podido verificar noutras realizações com essa tipificação – confinam as “pos­sibilidades de ver” a critérios próximos da rarefacção ou da pura e simples nulidade.

Regressar a Coimbra e encontrar tudo mudado

A “Lisboarte” é uma inicia­tiva com o patrocínio de Câmara Municipal de Lisboa, em que um certo número de galerias se apresenta minima­mente organizado sob a forma de realizações conjuntas (inau­gurações simultâneas, por exemplo) sendo publicado um roteiro com mapa dessas gale­rias e das suas realizações e havendo na fachada dos edifí­cios respectivos uma bandeirola que assinala o ponto onde se encontra a exposição.

Esta ideia obedece apenas aos mínimos, e nem toda a gente que vai a Lisboa chega a ter conhecimento sequer duma pequena parte das realizações ali em curso. É de notar que também por iniciativa munici­pal é publicado em Lisboa um roteiro alargado de todo o tipo de iniciativas culturais, cama­rárias ou não. Considerando a avareza dos meios de comuni­cação quanto a este tipo de noticiário, é uma iniciativa de interesse. Se juntarmos a isso a imensa dispersão geográfica dos locais de arte e cultura, a disparidade de calendários, horários e outras particularida­des, e a “complexidade” dos meios de transporte, fica com­preendida a insularização do meio artístico-cultural.

Quanto ao Porto, chegam-me notícias doutra forma de dinamização: a congeminação em curso da chamada “rua das galerias”, com as mais diversas iniciativas anexas, pela con­centração dum certo número de estabelecimentos de arte e con­vivência cultural na Rua Miguel Bombarda ao Palácio de Cristal.

O título deste último pará­grafo é apenas, confesso, para lançar um pouquito de confu­são. Com as iniciativas que vão surgindo em Lisboa e no Porto para dar dinâmica e coe­são à actividade das galerias de arte, vêm-me à memória umas sugestões que dei, nuns artigos sobre o assunto do comércio de arte e publicados no DC em Junho de 1994.

O número de galerias exis­tente em Coimbra, e dos outros espaços dedicados à ocorrência de acontecimentos de arte já justifica, com efeito, algum esforço conjunto de modo a publicitar um calendário de acontecimentos, colocando no mapa a localização dos even­tos, e formar uma espécie de roteiro para os interessados. Isto para ficar por uma ideia mínima e não levantar a venta­nia das utópicas intenções…

Todos sabemos a dificuldade que estas coisas envolvem e quão distanciadas as pessoas se encontram umas das outras. Façamos votos entretanto que um dia destes, de regresso duma viagem longe, encontre­mos realmente tudo mudado!…

Duas respostas de Rocha de Sousa

Publicado no Diário de Coimbra de 5 de Janeiro de 1998

 

Ano novo, e passam mais rápidos os dias. Ano novo, e são mais curtas as horas. Ano novo: as mesmas necessidades e os mesmos desejos.

Debruçado sobre os primeiros instantes de 1998, ocorre-me relem­brar a característica de liberdade que têm estas “conversas”, adaptadas apenas à necessidade de ir abordan­do temas referentes à Arte em geral, e à Arte moderna em particular.

Pretextos, qualquer um serve: uma viagem, uma visita, uma pessoa ou uma ideia. Por vezes, um simples facto da sensibilidade desata a impe­riosa urgência de atravessar o espa­ço de silêncio que nos separa de alguém, ou de colmatar o vazio que nos afasta do entendimento de uma ideia.

Há dois ou três meses, num esta­belecimento onde vou encaixilhar os meus quadros, lá vi encostado a uma parede um quadro de cores soturnas, cheio do sentimento misterioso da vida, repleto das alusões que carre­gam a arte de sentidos, e põem em marcha esta enorme curiosidade de nos decifrarmos até ao mais fundo da nossa transcendência. O dono da casa consentiu-me que o deslocasse mais para a luz. A “leitura” do qua­dro estimulou-me a pôr em marcha um contacto com o autor da obra, o pintor Rocha de Sousa, para do mesmo trazer notícia aos leitores das minhas “conversas”.

É interessante referir que o origi­nal que é a causa próxima desta cró­nica é pertença dum coleccionador residente na região centro do nosso país (o que não sendo motivo de espanto é, por certo, razão de agra­dável surpresa).

Obedecendo à intenção genérica que anima estas conversas, aqui ficam as perguntas a que R.S. acei­tou responder (com subtítulos de minha responsabilidade) e que rematam a “conversa de pintor” de hoje, cujo título fica, desta maneira, qualificadamente justificado.

“Visibilidade” e qualidade

CB. – Conhecendo a sua multifacetada intervenção pedagógica no campo das artes e a imensa varieda­de de atitudes que a sua obra de artista criador comporta, fale-nos de si como “autor de autores, sem heterónimos nem pseudónimos, a deixar o outro e os outros florescer em si mesmo”.

R.S. – A sua pergunta é “pregui­çosa”, porque o autor é entrevistado de si para si, circunstância que pode comportar aspectos perversos. Direi em todo o caso, o que posso e o que sei, com ou sem perversidade.

O meu curriculum, que na sua versão detalhada completa 200 pági­nas, fala de um esforço de pesquisa – de criação – em diversos planos da actividade artística: artes plásticas (pintura e técnicas mistas), desenho, ensaio e literatura de ficção, obra didáctica para as áreas artísticas, cinema para televisão (séries cultu­rais), vídeo pedagógico (Universidade Aberta) e vídeo de ensaio, literatura. Prémios: alguns, de sem ressonância, mas isso pouco importa. E de resto a visibilidade de um autor (pelo menos em Portugal) não depende da sua qualidade. Depende de uma espécie de lobbies e de tráfico de influências com dife­rentes características. A concorrên­cia frenética do mundo estende-se a esta área, torna-a por vezes pouco credível e promíscua.

O meu trabalho na pintura, publi­camente desde os anos 60, tem-se envolvido num discurso de natureza lírica, expressionista e pop, com incidência em realidades fundamen­tais da época contemporânea. Trata-se de uma “salada russa”, dirão alguns, sobretudo porque, também aqui, as veredas e os caminhos coe­xistem e interagem no mesmo qua­dro. Procuro assim exprimir-me no meu tempo, nessa linha mista e tematicamente dramática, com a angústia na alma, porque a pintura tem de facto pouco espaço para tra­tar, de forma empenhada, os temas da nossa morte diária.

Os dois eixos principais da obra pictórica que tenho realizado são constituídos por séries com os nomes de “As Personagens Ilustradas” e “Os Desastres Principais”, sem evocar experiên­cias de parceria e outras séries mais curtas.

As técnicas mistas, em que a colagem, a pintura, o grafismo e outros efeitos, se misturam de forma paradoxal, com equilíbrio e caos, constituem um campo mais lúdico da minha obra, mas são claramente reconhecíveis a par da pintura.

Todos os problemas inerentes a estas áreas de produção foram razoavelmente estudados por mim, em ordem ao trabalho pedagógico na Faculdade de Belas Artes de Lisboa (UL). Publiquei algumas peças nesse sentido, incluindo o espaço audiovisual a que me dedi­quei por gosto próprio e no campo didáctico da Universidade Aberta. A área audiovisual preenche um dos meus maiores interesses, desde o cinema documental e cultural, pro­duzido para televisão, até à concep­ção de obras em vídeo – trabalho de mim para mim e trabalho no âmbito da pesquisa, divulgação e ensino na Universidade Aberta: O vídeo – como linguagem do cinema – permite-nos trabalhar de diversas maneiras com o factor tempo e a mobilidade visual, aspectos de gran­de riqueza em termos expressivos. A exploração da metáfora através de personagens femininos tem-me permitido aceder a um tipo de dis­curso onde reemergem, de um modo novo, certas linhas conduto­ras da pintura, nomeadamente quanto às crises existenciais que marcam o nosso tempo.

A actividade didáctica na antiga Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, e na actual Faculdade, requerem metodologias muito especiais em termos de docência. As estratégias nesse domínio apu­ram o nosso sentido crítico e uma sensibilidade eclética em termos positivos. Dediquei-me, desde muito cedo, à actividade da crítica de arte, exercendo-a em jornais como o “Diário de Lisboa”, entre outros, e revistas como a “Colóquio”, “Artes Plásticas” ou “Sema”. Actualmente sou, nesse domínio, colaborador permanente no jornal JL.

Estas várias vertentes do meu trabalho, segundo alguns, anuncia­riam um caso de heteronimia ou a separação dos campos por heterónimos. Mas isso constituiria um equí­voco, pois as diversas escritas prati­cadas associam-se profundamente, fazem raccord entre elas, são tradu­ções tecnológicas e técnicas do mesmo autor, do mesmo projecto, inclusive das mesmas formas, de uma linguagem para a outra. O autor, ele-mesmo, retira dessa plu­ralidade uma especial unidade de intervenção. O outro que há nele-mesmo é abordado na obra pluriformal de um único criador.

A Arte divorciada da realidade

C.B. – Coimbra é uma cidade de escolas, cheias de mestres, cheias de alunos. Penso contudo que desde os Séculos XVI e XVII nunca mais parou de decair o seu sentimento colectivo das artes. Basta olhar a cidade, os seus espaços exíguos de liberdade e repletos de feiura e de caos, para evidenciar esse facto. Julga que o progresso no entendi­mento da Arte poderia vir em socorro de tal estado de coisas?

R.S. – Coimbra, lugar de mil significados na cultura portuguesa, perde entretanto, um pouco como em toda a parte, a força anímica de um projecto, a ideia de que os fac­tos vividos hoje, no comércio, na indústria, na universidade, teriam um sentido superior, contariam pela arte, incluindo a literatura, para um admirável ponto de chega­da no futuro. O apagamento do interesse colectivo pelas artes pode efectivamente ter-se iniciado nos séculos XVI e XVII mas o problema ultrapassa Coimbra, estende-se grosseiramente a todo o país, a todo o mundo. A globalização dos processos de desenvolvimento assenta, cada vez de forma mais radical, num neo-liberalismo antropofágico, num colonialismo das grandes potências e dos grandes comércios que se alarga a toda a “aldeia global” em que nos transfor­mámos aparentemente sem regres­so. E isso faz-se nivelando o mais possível a população por baixo, tor­nando-a dependente de modelos de vida que impõem sempre novas necessidades, consumos supérfluos, crescimentos anómalos. Os media são uma das grandes armas dessa operação ensandecida, que nos é proposta como a felicidade futura, coisa que os 20 milhões de desem­pregados, só na Europa, devem achar uma graça de mau gosto ou a emergência de um poder capaz de pôr em risco o próprio planeta. E ainda, em vez de uma catástrofe ecológica já próxima, o nascimento de um novo Big Brother controlan­do os comércios, os lucros, a liber­dade e o amor.

Durante grande parte do século XX a arte contraiu-se sobre si mesma, divorciando-se da realidade, e pensando muito pouco, ou nada, para além da sua verdade intrínseca, olhando-se demasiado ao espelho. Aflorar, nas artes plásticas, o mundo, era literatura, diziam os teó­ricos. Entrosar as novas descobertas formais com os “desastres da guer­ra”, reflectir para além da sua “geo­metria secreta”, isso era banalidade ou conservadorismo.

Recentemente, muitos autores (e é esse o meu caminho) advogam a coexistência dos diversos modos de formar, entre os mais secos minimalismos e a expressão mista das dores e medos contemporâneos. É impossível “endeusar” Vasarely e minimizar Vostel. As nossas esco­lhas têm a responsabilidade que tiverem, à luz de certos contextos, mas reflectem, por cada acto cons­ciente, uma época, uma possível diversidade, vários caminhos.

“Não há civilização sem arte”. Seja como for, a arte reflecte o mundo, abre a visibilidade dos ros­tos desse mundo, mas não é peda­gogia, nem moral, nem caridade. Quanto maior for o interesse por ela, e nela os países encontrarem alternativas a algumas das actuais seduções, mais equilíbrio as socie­dades poderão alcançar. Mas não é dessa forma, nem por esse cami­nho, que os homens das transnacionais e dos exércitos e das classes políticas encontrarão, milagrosa­mente transformados, um novo objectivo para a civilização con­temporânea.

Maria João Franco expõe no Museu Santos Rocha

Publicado no Diário de Coimbra de 5 de Dezembro de 1997

Maria João está ali e explica todo o sentido daquilo que procura. Eu olho-a, olho os desenhos espalhados no chão, a pasta mal arrumada cheia de estudos, o sofá já coberto de telas man­chadas de traços e cores, e mal a oiço. É quase inútil aquilo que dizem os artistas nestes instantes, tentando facilitar o acesso ao entendimento da obra. O olhar perde-se por entre o encantamento dos objectos, a sua presença cheia de referências, e a vizinhança de utensílios evocativos do sentido e da brevidade da vida. A minha atenção prende-se às mesas de trabalho, ao chão, às cadeiras e cavaletes onde se dis­tribuem casualmente os vestí­gios do trabalho. No ar, um cheiro a óleo, a vernizes, a

materiais voláteis diversos causam-me, tal como o branco das paredes, uma tontura cheia de prazer, uma quase embriaguez. Alguns quadros esperam ainda pelos últimos momentos da sua criação. A cor, um mínimo de cor – na maioria dos seus trabalhos. Economia de meios, austeridade de processos, rejeição da facili­dade, pavor do decorativismo.

A memória do corpo

Por sobre algumas telas surgem figurações monumentalizadas do corpo, em cap­tações seccionadas do tronco, intencionalmente despojadas de todos os ornamentos individualizantes dos seres retratados. Nenhum dos contornos mais fugazes ou delicados, nenhum detalhe que recorde o traçado expressivo da fisiono­mia, a vibração articulada dos dedos ou a ondulação harmo­niosa dos gestos. Corpos como nuvens, espontaneamente delineados pelo coleante trace­jado do carvão ou corpos mis­teriosamente configurados, abertos na cor de fundo como árvores cortadas, sem a flutu­ação airosa dos ramos ou qual­quer outro adorno natural.

Imaginando os percursos de tais “achamentos”, fácil é imaginar que, se a figuração se insinua de modo apetecível ou trivial, rápida é a mão que descentra, apaga, encobre e “desfeia” – se necessário – essa leitura mais fácil ou a alusão mais imediatista e superficial do visível.

Que coisa resta, então, dessa procura crispada, desse desejo de mistério mais denso? Será normalmente desejável este labor acidentado de “tornar com­plexo” o mundo? Ou será que o mundo é algo que possamos ler à primeira vista, algo que pos­samos abarcar e compreender desde o primeiro instante de dor e deslumbramento?

As cidades e florestas subjacentes

Entre esses corpos, enfim, como barcos solidamente ancorados nos mais profundos odores da alma e o horizonte de cores trespassadas de mis­térios que lhes serve de amparo e de suporte, desenvolve-se um permanente combate. Dum lado a presença das vibrações sacramentais da noite antiga, doutro o eco distante das pais­agens enormes do sonho e da criação. E nesta “pintura detrás da pintura”, fruto do acaso e da necessidade, que surge o leque de visões misteriosas que é contracampo das interpretações do corpo.

Seja nos trabalhos deste ciclo, ou em quaisquer outros dos que conheço, o labor da artista cessa no momento exac­to em que se revela o mistério, e a plurivalência da sua leitura é tanto mais eficaz quanto menor a elaboração (aparente) da procura. Como se tivesse de ser “fácil” a produção das “casualidades” que revelam no plano do suporte toda uma vastidão de sugestões que oscilam entre o estritamente poético e o solidamente plásti­co. O respeito assim revelado pela essencialidade da superfí­cie pictórica revela o carácter de modernidade da obra, por ser um recurso de desenvolvi­mento que despreza con­venções tecnicistas de repre­sentação do espaço, e pelo rigor de utilização dos elemen­tos da linguagem.

A expressão cromática desenvolvida por Maria João Franco centra-se em torno de cores de tons fortes que oscil­am entre negros e vermelhos de diversas categorias, o branco e as terras, onde as desocultações são obtidas por toda uma sorte de efeitos, sistematicamente libertas do compromisso do uso do pincel. A própria matéria cromática é independente do convencionalismo das cores fabricadas especificamente para o efeito, com recursos a vernizes e betumes de densi­dades e colorações diversas. Uma ou outra ocorrência fora do alinhamento de austeridade assim descrito, raramente tem lugar. Se surge, é sempre mar­cada por uma vocação de sotur­na solenidade, como que no limiar da sua própria ausência.

Todo a acção plástica é emocionalmente marcada pela inten­sidade, desde a intervenção mais simples à de mais radical efeito. Assim se dá a compreender a densidade desta pintura, rica de transparências ameaçadoramente circunscritas por imensas vagas de sombra e de sonho. De sombra e sonho, digo bem, porque tanto nos ameaça com a escuridão da noite e a densidade do sangue, como nos acalenta com o deslumbramento das neblinas matinais.

Na Figueira da Foz à nossa espera

Patente ao público, desde o dia 28 do mês de Novembro, encontra-se no Museu Santos Rocha, na Figueira da Foz, uma exposição de Maria João Franco. Ali iremos encontrar nem só as “Histórias do Corpo” (título da exposição), nem só as cidades e florestas subjacentes. Outras aborda­gens, outras aventuras, outras experiências nos esperam. A luz, as sombras, os monumen­tos distantes, os céus e os abis­mos de fogo e a simples matéria de que se compõe o mundo.

A Arte Pop revisitada na Centro Cultural de Belém, apenas trinta anos depois…

Publicado no Diário de Coimbra de 15 de Outubro de 1997

Imaginemos dois nossos conterrâneos, um a caminho de Lisboa no seu jipe em plena auto-estrada, e o outro preparando-se para estacionar o seu carro de matrícula K no já pletórico parque de estacionamento do hipermercado citadino  (confortavelmente situado bem dentro da malha urbana da cidade) ambos falando por telemóvel…

O cenário assim congeminado não é de modo algum impossível ou fantasista. Ao iniciar esta “conversa” sobre a “Arte Pop” ocorreu-me que, em meados dos anos 50 (quando esta deu os seus primeiros passos nos EUA e Inglaterra) para depois se transformar numa das faces caracterizantes dos anos 60, mal se sabia ainda em Portugal o que era uma auto-estrada, o consumismo tinha um aspecto francamente larvar e quanto aos “mass-media” tinham mais em que pensar do que nas elaboradas campanhas publicitárias que agora desabam sobre nós, talvez como na América nessas décadas de fascínios diversos e contradições sem conta, que a história guarda já em seu regaço.

Escolho portanto o quadro psicológico acima descrito (a situação jipe/auto-estrada, hipermercado, estacionamento e telemóvel) como paralelos adequados do consumo massificado, da publicidade e dos media, por serem estes (entre muitos outros, claro) alguns dos termos explicitantes do movimento Pop. E coloco, aqui e agora, dois interlocutores em tudo semelhantes a mim e ao próprio leitor, dado que me parece perfeitamente adequado estabelecer com o a “Pop Art” e a nossa actualidade socio-económica e cultural os relacionamentos que forem possíveis, quer por semelhança, quer por contraste.

Das vantagens da abrangência

Muitos dos intelectuais portugueses que foram assistindo desde início ao desenvolvimento do fenómeno artístico actualmente em exposição no Centro Cultural de Belém (“Pop 60’s – Travessia Transatlântica”),  dão certamente como adquiridos e assimilados todos os comprimentos de onda do movimento, estudaram as suas incidências estético-ideológicas, e usufruiram do produto das suas inumeráveis visões, tão cheias de frontalidade e expressão.

Ocorre-me entretanto perguntar: será que os conceitos de arte maioritariamente vigentes entre nós já teriam assimilado para o domínio da expressão artística, como o fizeram os anos 60 na América e na Inglaterra, as aquisições da sociedade hodierna, na sua vertente reflexiva e actualizada dos fenómenos mágico-consumistas, tecnológico-poluentes e irónicamente críticos?

Não vou levar demasiadamente longe este meu questionamento, tão impertinente como outros que tenho trazido a estas páginas. Proponho entretanto (e já é a segunda de tais sugestões aqui feitas…) que os mestrandos de sociologia se debrucem sobre esta questão pelo seu interesse e pela respectiva (e respeitável) largueza de mangas…

Lembro apenas que ali, no Centro Cultural de Belém, se encontram muitas peças expostas (as notícias falam de 250…) oriundas de grandes colecções e de notáveis museus (entre eles da ampla reserva do Sintra Museu), que muito dificilmente seriam aceites por muita gente como abordagem possível do fenómeno artístico. Já não digo evidentemente, como eventuais aquisições dado que, decididamente, não iriam com a mobília lá de casa…

Referem alguns críticos da especialidade uma eventual excessiva abrangência da exposição, no que diz respeito ao número e diversidade de artistas ali representados. Ao que parece, tal abrangência não foi tão longe que tenha privilegiado uma mais ampla representação portuguesa, mesmo daqueles que já estão presentes no Sintra Museu de Arte Moderna (no sector da Pop Art aliás…). Tal abrangência não constituiu inconveniente do meu ponto de vista, dado que veio demonstrar a projecção que o movimento tem no imaginário artístico dos anos 60, dando ocasião a que possam rever-se alguns artistas tão interessantes como os europeus Richard Lindner, Konrad Klapheck e Valerio Adami, entre outros, considerados como figuras “menos centrais” do fenómeno. Cito estes apenas de memória, dado que uma primeira visita não me encorajou a comprar o catálogo (sete mil…) cuja qualidade gráfica e número de reproduções me pareceu interessante, por contraste com o conteúdo textual, bastante menos informativo que o do catálogo do Sintra Museu (oito mil e quinhentos…).

Roy Lichtenstein, aviões de reacção e raparigas de maillot

Já em pleno decurso desta exposição faleceu o artista novaiorquino Roy Lichtenstein, produtor duma obra especialmente significativa no âmbito da “pop”. Entre muitas outras fontes de inspiração (é dado como um dos expoentes de erudição no seio do movimento) recorreu também à banda desenhada, fenómeno intergeracional de ampla repercussão a demonstrar que – também neste caso – foi na abertura de fronteiras temáticas e no rasgar de horizontes de interesse plástico que radicou o potencial da Arte Pop. Se pensarmos que o movimento teve a sua origem em meados dos anos 50, por oposição a um outro então em fase de triunfo internacional (e que era nem mais nem menos que o expressionismo abstracto) ficamos a fazer uma ideia da eminência de alguns dos mais quentes debates que vão agitando a quieta melancolia e desactualidade do nosso meio artístico.

Nesta conformidade, e se o nosso conterrâneo que velozmente rola na auto-estrada (e a esta hora já deve estar a chegar a Lisboa…) tiver a ideia de ir de visita ao CCB, talvez seja uma ideia fazer-lhe uma telefonadela para lhe lembrar de ir dar primeiramente uma saltada a Sintra.

No Museu acima referido, e cuja colecção se encontra patente ao público de forma interessantemente pedagógica, vai poder dar-se conta daquilo que veio antes e do que está depois da tão falada (mas pouco bem conhecida…) Arte Pop, o que será uma óptima sugestão para qualquer outra pessoa que queira eventualmente visitar a exposição que é tema central desta “conversa de pintor”.

Olhar um quadro, visitar uma exposição

Publicado no Diário de Coimbra de 4 de Outubro de 1997

Venho hoje referir-me (ainda que de longe) à enorme timidez de grande número de pessoas perante a obra exposta, ou peran­te os conjuntos de trabalhos que se deixam ver nas chamadas “exposições”. Como se houvesse uma muralha feita de receios diversos entre essas pessoas e as obras em presença, e, como se a convivência com objectos estéti­cos (das mais diversas áreas) fosse uma plataforma eriçada de espinhos, onde a entrada fosse reservada, e a adesão envolvesse compromissos de gestão muito delicada.

A matéria desta “conversa” aproxima-me, portanto, do acto singelamente transcendente em que qualquer de nós, face a um trabalho de arte, se prepara para descodificar o seu conteúdo, mergulhando fundo nas diversas camadas que recobrem o seu aspecto inicial e do dilema receo­so do “gostarei?/não gostarei?”. É aliás aqui, na dificuldade em formar e/ou emitir um juízo que dê uma boa imagem da nossa capacidade crítico-cultural, que se localiza um dos factores de inibição perante a obra em apre­ço.

Tal momento deveria consti­tuir sempre uma oportunidade de contemplação/reflexão empenha­da mas liberta (ia a dizer “feliz”…) sobre as qualidades “interiores” do objecto, e um desafio de auto-reconhecimento, pela resolução do “enigma” e pela “explicação” que haverá que proferir-se, quanto mais não seja perante a nossa própria surpre­sa/perplexidade. Momento esse de clarividência/espontaneidade, resultante do gosto, e do seu exercício descomprometido.

A arte obriga a pensar. Daí, a tão apetecida e tranquilizadora opção por distracções de valor fútil, pela cultura do “fait-divers”, e por tanta, tanta massificada vulgaridade.

Dum grupo de jovens atentos e duma mestra ‘forte”

De visita a um museu, vi uma vez um grupo de jovens, capita­neados por uma orientadora, sen­tados diante dum quadro abstrac­to, de concepção muito sintética, quase minimalista. Uma simples forma geométrica, sobre uma compartimentação de espaços de cores lisas, sem modulações, tex­turas, ou outros acidentes que conferissem ao conjunto diferen­ciação de planos, profundidades ou qualquer pitoresco narrativo.

Somente as proporções da figura (tendencialmente triangu­lar), o seus desequilíbrios e dina­mismo próprios, a sua lógica de apoios e intersecções nos planos circundantes constituíam motivo de debate sereno e aprofundado, e campo de treino de observação estético-filosófíco.

Passei por eles a caminho da cafetaria, onde fui tranquilamen­te buscar forças para uma visita prolongada. Tive tempo de pas­sar pela livraria, folhear diversas coisas e, de regresso às galerias eles ainda lá estavam, a mestra muito gorda e muito sentada, os alunos muito compenetrados, falando cada um por sua vez, pausadamente, na avaliação dos conteúdos e na sua percepção subjectiva.

Fiquei contentíssimo e sonhei produzir um dia algo que viesse a suscitar uma observação tão cuidada como aquele quadro, sujeito a um mergulho tão pro­fundo de atenções e a uma “exploração” tão sistemática, só comparáveis às vantagens duma transfusão directa, destinada à reanimar um corpo, sem debilitar o outro.

Depois de assistir a uns minu­tos daquela conversa, cheia de demoras reflexivas e entrecorta­da de silêncios consentidos, pas­sei à visita das galerias, onde numerosos grupos de visitantes desfilavam mais ou menos velozmente por salas repletas de obras saturadas de eternidade, como janelas abertas para um oceano de interrogações/encanta­mentos.

O contraste de atitudes ali patente entre o grupo de estudan­tes e o fluir dos apressados turis­tas, obrigou-me a reflectir um pouco sobre a natureza das coi­sas e a qualidade de tempo que podemos, ou queremos, dedicar-lhe.

O tempo do espírito, o tempo da inteligência, não é como a espera tensa a que nos obriga um engarrafamento de trânsito. A obra que se analisa visualmente, o texto que se lê, os sons que se escutam, o movimento de gestos que perante nós desfilam como arte, desenvolvem-se no plano da eternidade. Devem habituar-nos a olhar para dentro sem receio do que está fora e podem ajudar-nos a compreender o mundo circun­dante sem a vertigem das profun­dezas do nosso interior desco­nhecido. Como quem se reco­nhece em obra feita por si mesmo, descobrindo sempre mais além das fronteiras conhe­cidas os novos mundos sempre disponíveis.

As ajudas e os alicerces

A leitura de qualquer trabalho de crítica que se debruce sobre uma certa mostra constitui um exercício de visitação e decifra­ção de obras de arte, que pode configurar a atitude mais ou menos correcta e documentada para entender não só aquele, mas qualquer outro acontecimento do mesmo género.

Uma pessoa que se habitue a visitar acontecimentos artísticos, ver espectáculos de arte, cinema, teatro, ballet, etc., tendo o cuida­do posterior de compaginar a sua própria versão com as da crítica da especialidade, acaba por ter uma noção das maneiras de abor­dar outros acontecimentos poste­riores.

Daí a poder avaliar comparati­vamente o trabalho do crítico A, com o do crítico B, vai um passo (às vezes largo…). Feito todo esse trabalho, está o sujeito na posse duma aparelhagem crítica razoavelmente autónoma se, entretanto, não se esquecer de ir enriquecendo a sua reserva de referências culturais, que são um alicerce indispensável para uma visão globalizante dos “mundos” que nos cercam.

Dada a limitada extensão des­tas conversas ninguém esperaria que eu fosse esgotar hoje o tema que se sintetiza no título da cróni­ca. Vale a pena, no entanto, pen­sar um pouco nos pontos que são referidos, e dedicar alguma da nossa atenção à “eternidade” interrogante das obras que se nos oferecem como repositório dou­tras visões do mundo, doutras possibilidades de “o” conhecer­mos e doutras capacidades de “nos” descobrirmos.

A grande vantagem da arte é não nos encerrar numa única ver­dade, abrindo para a transcen­dência uma multiplicidade de caminhos que – embora exigen­tes – não cansam, e – embora complexos – não desiludem.

Lugar aos novos, abertura sobre a modernidade

Numa iniciativa original e com fundo de limitada mas inte­ressante generosidade, deu início a Galeria Conimbricense a um concurso de “arte jovem”. O resultado, com exposição subse­quente e artistas premiados, fica para ser consolidado em futuras versões (e adaptado a um novo espaço de que a galeria carece), mas constitui atitude louvável num meio onde o lugar aos novos (e à novidade…) está tão cerceado pela ausência e pelo alheamento. Os participantes (a começar no próprio júri, adequa­damente constituído para o efei­to..) retiraram do acontecimento algum genuíno prazer, esperando que o futuro consolide as suas legítimas esperanças.

Um lápis e um pedaço de papel bastam para dar início a tanta coisa fantástica!

 

Entrevista ao Diário de Coimbra 24 de Setembro de 1997, na abertura da minha exposição na Casa Municipal de Cultura de Coimbra

Costa Brites, ….inaugura hoje às 18h30 a sua exposição de pin­tura e desenhos.

Tendo dado por concluída a fase (extremamente produtiva) com que promoveu a paisagem urbana de Coimbra, o pintor percorre agora novos rumos estéticos e é o resultado dessa mudança que pode­mos apreciar a partir de hoje (e até dia 26 do próximo mês) na Casa Municipal da Cultura.

Na entrevista que se segue, Costa Brites fala-nos do seu trabalho actual.

Diário de Coimbra – Com esta exposição abre-se uma nova etapa no seu percurso artístico. Que motivos operaram esta mutação e quando teve o seu início?

Costa Brites – A sua pergunta tem interesse para esclarecer as pessoas que apenas me conhecem superficial ou recentemente, atra­vés das inúmeras estampas que têm circulado por Coimbra (entre elas alguns milhares em edições pirata e copianços diversos…) e duma ou outra passagem acidental por expo­sições do ciclo chamada «da cida­de de Coimbra».

Quanto às pessoas que me conhecem melhor, que convivem comigo e partilham – já não digo os meus segredos – mas todas aquelas outras partes de mim (ia a dizer dos meus heterónimos…) esses acharão a coisa mais natural deste mundo e não vão ficar nada surpreendidos. Com efeito, este «imaginário» vive comigo desde que me conheço e em fases ante­riores já foi bastante dado a conhe­cer. Tem estado unicamente à espera de novos momentos de revelação sob a forma de obra estruturada e consequente, o que exige pesquisa e desenvolvimento, muito trabalho e dedicação.

DC – Fale-nos das figuras que povoam as suas últimas telas.

CB – Essa questão daria para uma conversa que quase não tem fim… Um pouco como essas pró­prias figuras, saídas não sei bem donde, duma forma quase sempre inesperada e muitas vezes, por assim dizer, torrencial!… Eu não sei se posso qualificar-me, com propriedade, um surrealista. Aliás, se não assumo inteiramente essa filiação, é apenas pelo facto de me sentir também ligado a outras for­mas de ver o mundo e as coisas, e de não querer ficar apegado a nenhum «ismo» em particular o que, neste momento, não faria nenhum sentido. Os surrealistas, no entanto, trataram muito dos fenómenos da imaginação, explo­raram o subconsciente, o sonho, o fantástico, e os mecanismos da sua revelação, através da associação das ideias, da «escrita automática», etc., a par do enorme desejo de mudar o mundo, o que sempre foram coisas que muito me fasci­naram. Por ter tido acesso a esse tipo de cultura, reconheço existir em mim uma espécie de disponibi­lidade ou abertura do espírito a vozes estranhas, a visões instantâ­neas quase automáticas, que qual­quer pessoa que desenha espontâ­nea e livremente bem conhece.

DC – Há dois termos que sur­gem com uma certa frequência no seu discurso. Um, mais entendível, o termo “desenho”. Outro, aparentemente mais deslocado, o dos «heterónimos». Qual a importância dum, e qual a justi­ficação do outro?

CB – Sem ter a pretensão de lhe «passar um sermão» sobre o cha­mado «acto criador», o que é facto é que ele existe, e depende duma «forma», de «meios de expressão», duma certa técnica, em suma. Há pessoas que se exprimem através de gestos largos, de técnicas elabo­radas que exigem escola. Outras são mais simples, ou intuitivas, porque não tiveram acesso a for­mas adequadas de ensino artístico. Na minha qualidade de português não privilegiado, não comecei por ter acesso às formas mais sofistica­das de técnica artística. Um lápis, um pedaço de papel, dois dos «media» mais simples deste mundo, e pronto, tanto basta para dar início a tanta coisa magnífica e fantástica!

Resumindo portanto, e sem ter de passar por razões transcendentes e pretensiosas, foi essa uma das pri­meiras formas de me conhecer e de me descobrir. Passadas não sei quantos milhares de horas, dese­nhar, para mim, é a coisa mais natu­ral que pode haver. E, certamente, uma das que mais prazer me dá.

Quanto aos heterónimos, adop­tei esse expediente com certa moderação. Não queria que fosse julgado oportunismo «colar-me» à grande figura de Pessoa, para justi­ficar uma vocação (e uma enorme necessidade) de encetar permanen­tes metamorfoses na minha lingua­gem. Daí, como já leio Pessoa pra­ticamente há quarenta anos (nessa altura não era ainda grande moda…) e dado que comecei a falar dos «meus heterónimos» aos meus amigos, acabei por me habi­tuar, o que «veste» magnificamen­te quer o meu gosto por Pessoa (que nem sequer é incondicional…) quer uma tendência, que não reprimo, de renovação incessante…

DC – Como é que pode expli­car, nesse contexto, a firmeza de atitude que manteve durante todo o seu ciclo anterior, que dedicou à paisagem urbana?

CB – Essa questão está muito bem posta e é-me difícil responder por poucas palavras. Repare que no momento exacto em que encerrei o chamado «ciclo da cidade de Coimbra» (que passou por muitas cidades portuguesas, e por várias cidades estrangeiras…), confronta­do com a necessidade de conferir coerência a toda essa questão, tive o cuidado de publicar um livro de dimensões diminutas, mas bastante significativo para mim (chamado «Visualidades»).

O livro valia tanto mais pelo próprio prefácio, de autoria do meu amigo António Pedro Pita, uma pessoa que segue o meu trabalho praticamente há trinta anos. Tanto nessa análise, como noutros textos de sua autoria (especialmente o que escreveu para o catálogo desta minha exposição na Casa Muni­cipal da Cultura) o assunto se

encontra visto duma forma muito difícil de sintetizar, mas de um modo que acho exemplar.

Lateralmente, e friso, lateral­mente, posso apenas dizer que esse ciclo envolveu de facto uma atitu­de de imensa disciplina intelectual, e uma dose enorme de dedicação e investigação em diversas áreas, essencialmente as que dizem respeito às paisagens que se observam de olhos fechados, aquelas que mobilam um mundo construído na mente, e que também serve para questionar o real!

Não sei se o ciclo foi devida­mente compreendido, o futuro o dirá. Mas de qualquer forma penso ter sido uma fase de criatividade muito intensa, que teve o seu encerramento, mas de que não abjuro, nem repudio de forma alguma, por maior que seja a mudança aparentemente, e friso, aparentemente efectuada.

DC – Adiante-nos então as suas expectativas quanto a esta exposição.

CB – Uma coisa muitíssimo difí­cil de delinear, como sabe, a expectativa dos artistas. Penso que, no sentido mais adequado, os artis­tas pretendem apenas prosseguir o

seu trabalho de forma eficaz. E coloco o centro de gravidade do termo no íntimo essencial da obra, como coisa revelada/reveladora.

Sobretudo quando se atinge a minha idade, ou antes disso se o juízo ajuda, começa a poder ver­-se o mundo um pouco distante de nós, e nós nele como uma ima­gem transcendente de nós pró­prios.

Tenho às vezes imensas faltas de paciência com a insensibilida­de dos aparelhos sociais, políticos e outros. Encho-me de raiva, o que me desconcerta. Sinto-me como um cachopo a quem roubaram todos os brinquedos. Com o tempo desenvolvi, no entanto, uma certa impassibilidade feita, senão de conformação, de distan­ciamento, iria dizer, filosófico.

E regresso sempre aos meus ami­gos, à minha família, aos meus desenhos, à cultura, às artes, a todas as coisas que irão de facto ficar para sempre, como os melhores sinais da passagem dos homens por esta vida.

Paula Rego e os mistérios insondáveis

Publicado no Diário de Coimbra de 20 de Setembro de 1997

Num breve apontamento que fiz nesta coluna, já há dois meses, chamava a atenção para a permanência em Lisboa duma importante exposição de pintura, patente ao público no Centro Cultural de Belém: uma retrospectiva do trabalho da pintora Paula (Figueiroa) Rego que cobre o período do seu trabalho de 1959 a 1995.

Devem estar com certeza lem­brados dumas perguntas que me ocorreram naquela altura, e que eram mais ou menos do seguinte teor:

– Onde estaria a pintora se tivesse nascido em Coimbra, e se nela tivesse começado a sua vida artística? Que atenção e que oportunidades lhe teriam sido dispensadas?

Teria tido estímulos do meio (e uma família de Coimbra também faz parte do meio…) que dessem crédito à saída para Londres, para estudar e evoluir na pintura?

E – no caso afirma­tivo – já iniciada a sua carreira, por exemplo na sua fase das colagens, alguma das forças vivas desta cidade teria cor­agem de lhe proporcionar uma bolsa, ou – tendo possibilidade de expor – quem iria “investir” no seu talento surpreendente, absurdo e inquietante?

Imagino que vai haver muita gente a achar estas questões duma enorme impertinência, e por isso vou terminar desde já com este pequeno jogo de per­guntas esquisitas.

Há mais de uma vintena de anos que me interesso muito decididamente pela obra de P.R. Penso que a primeira exposição sua que devo ter visto teve lugar na SNBA em 1974. A segunda das mais sig­nificativas que pude visitar deu-se na galeria 111 em 1978

e o primeiro catálogo “grande” que comprei da pintora é o da retrospectiva da Gulbenkian de 1988. De o folhear tantas vezes, já tem uma quantidade de folhas arrancadas.

Desses anos uma coisa há, contudo, que me ficou na memória de forma indelével. Um trabalho de televisão, ainda a preto e branco feito – julgo sem qualquer certeza -no princípio dos anos oitenta, e transmitido pela RTP. É curioso que não se encontra referenciado na lista de filmes das abundantes notas biográfico-documentais de Paula Rego. Uma coisa é certa: o programa foi de facto transmitido (eu vi-o!) e já era a mesma Paula de sempre, navegando com segu­rança pelo oceano proceloso da sua imaginação milagrosamente desregrada, ao leme duma ironia saudavelmente -cruel, trespassante e desmistificadora.

Para lá dos textos que durante estes anos tenho lido sobre P.R. (julgo, aliás, que a artista tem conseguido rodear-se dum conjunto de comentadores críticos e historiadores da sua carreira particularmente sólido e coerente) sempre permanece no meu espírito a impressão desse primeiro testemunho, naquilo que possuía de fecundamente desestabilizador. Outros filmes pude entretanto ver, como testemunho directo da artista, e é do mesmo teor o desplante (ingénuo?), o absurdo (premeditado?) e o humor (negro ou translúcido?).

No “muro dos proles”, onde me encontro com Paula

Mais do que os bem documentados e completíssimos textos que podem apanhar-se nos livros sobre a autora, é esse arrepio de surpresa e instabilidade que me coloca no plano ideal de abordagem dos trabalhos de P.R. de que mais gosto. E se falo assim, não quero dizer que não aprecie praticamente tudo o que tem produzido. O que despretensiosamente declaro é que tudo aquilo que acontece em Paula Rego até ao fim dos anos oitenta, para mim, funciona como uma autêntica injecção nas veias. Se o ciclo de “As criadas” (de 1987) inicia um novo capítulo predominantemente figurativo, de enorme perícia técnica, infunde o respeito e a admiração que toda a obra subsequente merece. O leque de opções da autora tem sempre um toque de imensa originalidade, sem deixar de ser bem documentado, largo e profundo de alusões e relacionações. E a “visão” e execução das obras nunca deixa o observador menos que completamente dominado na curiosidade, no interesse e no desejo de ver.

Será de ter vencido uma duradoura fase da vida repleta de contrariedades e sofrimento?

É em 1987 que a cadeia de galerias “Marlborough Fine Art” firma contrato com Paula Rego, catapultando preços e obras da artista para um nível internacional. Este facto – nat­uralmente auspicioso – faz da artista aquilo que ela hoje é, um expoente de valor (como direi?) absolutamente “consoli­dado”.

Para frisar bem aquilo que penso e acima refiro, aludo apenas (por falta de espaço) às séries do “macaco vermelho”, do “coelho”, das “óperas” e especialmente “o muro dos “proles”, por se tratar duma obra que se encontra em Portugal, na Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, talvez aquela que maior número de portugueses conhece. Nestes ciclos, sem menosprezo para os demais, é despiciendo qualquer comen­tário. Os que tenho lido, muito embora encaminhem o espec­tador no seu desejo de racionalização objectiva, não conseguem resolver o impacto da primeira observação, que permanece crivada de perplexidades e duma estupefacção sem limites. Cada boneco, cada situação, cada interacção, fazem explodir o respectivo comentário para além das suas margens, e a intencionalidade, a truculência, o pitoresco e o acinte de cada imagem nunca é suficientemente contornável, ou definível, seja por que con­ceitos for. A forma como esses personagens se apropri­am do espaço disponível no suporte e a hierarquia de con­figurações em presença são, por si só, um fenómeno tão simples/complexo que bastam, como motivo de delícia/surpre­sa, até à consumação de qual­quer entrecho explicativo.

Todas as figuras ali pre­sentes esgotam pela verdade critica, pela totalidade sensual, pela ironia desapiedada o enorme teatro do mundo, no palco confidencial e restrito da consciência de cada um de nós, ou no tablado poeirento e trepi­dante da sociedade aberta, con­fusa e tremenda.

Duma rapariguinha bonita e dum belo casaco de veludo

Desta última visita que efectuei ao CCB, cometi uma pequena originalidade: meti-me numa visita guiada, com “expli­cações” sobre a obra de Paula Rego. Ao grupo quase numeroso de sorumbáticos portugueses fez frente uma moça nova e bem engraçada, mestranda de História de Arte (explicou-me, como quem pede desculpas, que o seu mestrado “é só do Sec. XIX”).

Nervosíssima, conduziu-nos através do dédalo complexíssimo do trabalho exposto. Afinal o grupo até gostou das falas da moça e fez os possíveis por tran­quilizá-la, no seu desejo de pro­duzir um bom trabalho. Ao fim esperava-nos – na sala dos vídeos – um filme em que a própria Paula Rego, acompanha­da do crítico Alexandre Melo, fazia uma visita guiada à exposição no CCB. Renovou-se em mim, a impressão de con­tentamento do espírito que já experimentara de todas as vezes que pude escutar Paula “herself’. O critico, extremamente elegante num casaco de veludo negro (como eu gostaria de ter um casaco assim para a abertura da minha exposição…) lá ia tentan­do manter em suas margens o rio (acidentalmente?) caudaloso das impressões de Paula.

De explicações-explicações fiquei exactamente na mesma. Também para que queria eu que me explicassem um mistério que vive disso, de não ter explicação possível?!…

A IX Bienal de Vila Nova de Cerveira

Publicado no Diário de Coimbra de 22 de Agosto de 1997

Desejou o Diário de Coimbra, este ano, dedicar especial atenção à ocor­rência da Bienal de Cerveira, através da publicação atempada de notícias a respeito desse signi­ficativo acontecimento. Com o certame ainda em decurso, e a vários dias do seu encerramento, é minha intenção estimular aque­les que ainda possam fazê-lo, a irem até lá acima para experi­mentarem os diversos prazeres que uma tal iniciativa pode envolver.

O passeio ao alto Minho já é por si mesmo aliciante. A auto-estrada que (ainda) não chega a Valença, já chega (quase) a Ponte de Lima. Indo depois à direita, pela serra, são garantidas muitas curvas a subir e a descer. Indo à esquerda (por Viana) é melhor o piso, mas mais comprida a dis­tância, e não se está livre de apa­nhar umas desmoralizantes filas de trânsito.

Vila Nova de Cerveira, peque­na localidade comodamente arru­mada à beira do Rio Minho, evi­dencia já sinais visíveis da “pre­sença das artes”. Por aqui e por ali, são já pertença da paisagem notáveis peças de arte moderna para fruição pública.

A Bienal, que tem a realização de um concurso como fundamentação básica (regulamento, con­correntes, júris, prémios, etc.), desde sempre mostrou uma voca­ção especial para se tornar um espaço de diálogo, de aprendiza­gem e de “festa-nas-artes”, arras­tando um variado leque de inicia­tivas que interessa a quase toda a gente, devido a esse carácter de abertura e entusiasmo quase utó­picos, sem os quais não sobrevi­vem as iniciativas deste género.

Para os jovens e até para as crianças

Para o leitor que estiver a pen­sar ir a Cerveira, não é preciso enumerar todo o tipo de possibili­dades ali presente. A imprensa e a televisão têm vindo a publicar anúncios do certame e eu próprio não consegui, numa primeira visita de um só dia (das 15:00 às 23:00 h) “meter o nariz em tudo”. Para se rentabilizar o potencial do acontecimento, teria que se per­manecer (sem tédio) toda a dura­ção da Bienal. Mas dois ou três dias dão pano para largas mangas e, além da soberba exposição do concurso, acrescentada com dele­gações estrangeiras, artistas con­vidados, etc., existe um conjunto variado de iniciativas que podem interessar e mobilizar qualquer visitante, sem esquecer os jovens, e até as crianças.

No que me toca, lembro com enorme prazer o “mergulho” que efectuei num dos pavilhões onde funcionavam “workshops” de pintura e música (ensaiava nesse momento um interessante con­junto de música clássica). Foi ali à sombra, à vista duma exposição de novas técnicas de registo, olhando para vários artistas que pintavam e escutando música, que primeiro comecei a ler os catálogos do acontecimento. Ia no segundo ou terceiro “fino”, quando me apareceram uns ami­gos galegos de Vigo, que tam­bém tinham vindo à Bienal. Sendo pessoas muito integradas no avançado meio artístico da sua terra, fiquei contente por coinci­direm comigo na magnífica impressão recolhida em Cerveira, quanto à variedade de mensa­gens, à frescura de juventude, ori­ginalidade de propostas e critério estético ali presentes.

Quanto ao futuro da Bienal, apetece desejar que prossiga e ganhe novas dimensões. De há quase 20 anos a esta parte, várias têm sido as vicissitudes enfrenta­das, umas vencidas, outras não… Não me cabendo explicar tudo isso aqui, registo apenas aquilo que ouvi dizer ao próprio Comissário Geral Henrique Silva: desponta a esperança concreta de que a Bienal disponha de instalações próprias, com capaci­dade de levar a cabo uma perma­nência de iniciativas, a par do projecto já muito ventilado de que finalmente se possa constituir um museu de arte moderna com o acervo de obras entretanto acumuladas por Vila Nova de Cerveira no decurso das suas Bienais.

E Coimbra?…

Durante a conversa que manti­ve com o professor Henrique Silva falámos muito de Coimbra. Recordámos a grande artista que foi Túlia Saldanha, amiga comum, e da sua actividade como dirigente do Círculo de Artes Plásticas, onde Henrique Silva também expôs. Grande volta deu a nossa conversa, que chegou para rememorar tentati­vas feitas no passado para trazer até Coimbra ecos substanciais da Bienal de Cerveira, através duma realização adequadamente inte­ressante. Manifestei a minha pena de que tais iniciativas se tenham gorado no passado, fazendo votos que venham a ser possíveis no futuro, já presente.

Aproveitando esta deslocação ao Norte, e atento aos anúncios de iniciativas culturais no âmbito da arte moderna, decidi fazer um desvio até Vila Nova de Famalicão e depois, por convite dos amigos de Vigo, dar um salto àquela cidade galega. Na primeira destas paragens visitei a Fundação Cupertino de Miranda, onde está patente a exposição designada “A arte, o artista e o outro”, com obras do acervo da Caixa Geral de Depósitos. Este acontecimento, servido por um catálogo de muitíssima qualida­de, representa um trabalho de elevada craveira estético-pedagógica, a merecer referência de maior detalhe numa futura “con­versa de pintor”.

Citando estas coisas do univer­so da arte moderna e contempo­rânea, poderá parecer desajustada a pergunta que formulo em subtí­tulo: e Coimbra? Ao fim e ao resto, as distâncias estão reduzi­das pela melhor qualidade das estradas, e tanto se vai a Vigo, como a Cerveira, como às Caldas da Rainha (onde também se reali­zou uma importante bienal de artes) como a tantos outros sítios, mais perto e” mais longe. Portanto, se a questão for despro­positada por ser formulada por mim, e neste mesmo sítio, não deixa de pôr-se com evidência à comunidade cultural coimbrã, com o peso da sua pertinência e o desconforto da sua continuidade.

É evidente que não é a comu­nidade cultural de Vila Nova de Cerveira que põe de pé toda a mecânica da sua bienal. Basta relancear o olhar pelos “curricula” inseridos nos respectivos catá­logos, e ver donde são oriundas as entidades que operam e cola­boram. Mas é um facto que a localidade soube dar o corpo às iniciativas, soube aproveitar os ensejos, e mais do que isso, foi adquirindo um estado de espírito positivo de abertura e receptivi­dade, que tem sido factor de evo­lução, até do ponto de visto sócio-económico.

Quanto a Famalicão, a situação é muito diferente, como diferen­tes são sempre este tipo de uni­versos em mutação, que à arte dizem respeito. Importante é que as coisas aconteçam, aqui por uma razão, ali por outra, e que um número crescente de cons­ciências participe dos fenómenos, possa discuti-los e apropriá-los nas vertentes positivas da criativi­dade e da abertura de espírito.

Esmagou-me a urgência desse passo atravessando as enormes e luminosas salas da antiga alfân­dega de Vigo. Onde outrora se alinhavam emigrantes ansiosos de partida, mostram-se agora os empolgantes testemunhos da pas­sagem dos artistas galegos por todo o mundo, eivados de força e actualidade, nessa soberba mostra chamada a “Galícia exterior”, integrada no vastíssimo programa de iniciativas que se designa como “Galícia terra única”, e que se estende por toda essa comuni­dade autónoma.

António Pimentel na Casa Municipal da Cultura

Publicado no Diário de Coimbra de 1 de Agosto de 1997

Na Casa Municipal da Cultura (aquela casa onde se encon­tra muita gente, se vive muita cultura e é de todos nós) esteve durante o mês de Julho uma exposição do conhecido pintor António Pimentel.

Sendo este o assunto de hoje, não desejaria esquecer que no mesmo período também ali esteve patente uma exposição de arte fotográfica de bastante interesse (“Viagens na minha Terra”, de Paulo Abrantes) que aqui não comento por ser curto todo o espaço de que disponho para abordar aquele outro tema, circunstancial­mente mais adequado a uma “conver­sa de pintor”.

A abrir aquilo que diz respeito à exposição de A.P. aqui se regista, antes de mais, todo o trabalho que foi feito na Casa, no que respeita ao aproveitamento e valorização das áreas disponíveis, na conquista dum “clima” que corresponde ao melhor que ali tem sido feito, em ordem ao que se mostra, à forma como se mostra, cores e materiais envolventes, luz, etc.

Observe-se e leia-se com muita atenção o volumoso catálogo produzi­do e editado sob a chancela da Câmara Municipal, obra que faz entrar este tipo de realizações em Coimbra numa fase qualitativamente distinta, quer no que respeita à forma, quer ao conteúdo.

Apetece fazer votos de que estes factos não sejam uma opção mais ou menos casual ou subjectiva, antes constituam um consolidado salto qualitativo, para exemplo de outros acontecimentos e de outras institu­ições promotoras de arte e cultura.

Carne da mesma carne

Aquilo que mais surpreendia o visi­tante ao entrar nas duas salas onde havia trabalhos expostos, não era a óbvia circunstância de se encontrarem metodicamente arrumados quanto às suas dimensões. Aqui as obras “maiores”, mais relevantes e mais nobres, ali as outras, igualmente relevantes e nobres, mas de qualquer jeito e por fatalidade da sua própria matéria, “mais pequenas” que as anteriores. Ao contrário, julgo que todo o conjunto de trabalhos possuía uma coesão tão sólida, uma densidade tão uniformemente equivalente que, para mim, qualquer que fosse o ângulo da observação, elas me pareciam como uma só obra, quase magicamente con­cebidas no mesmo instante, corpo que é dado à luz repartido, mas carne, da mesma carne.

Para isso contribui a maturação da “ideia” e a administração conjunta de forças diversas, como são todos os elementos plásticos, desde o suporte, ao desenho, à cor. Quanto ao suporte devo dizer que me encanta uma pintu­ra feita assim, permitindo ao observador a capacidade de se aperceber da presença substancial desse elemento, o que aqui é conseguido graças à sub­tileza e parcimónia com que é admin­istrada a substância da cor, ou devido à forma elaborada que o artista utiliza para “abrir”, na tinta já anteriormente aplicada, valores de luminosidade e transparência, graças a uma apropria­da acção mecânica (ou “frottage” como dizem aqueles que estão a par do calão…).

Quanto ao desenho, impressiona-me a forma como António Pimentel, concebendo muito embora a substân­cia essencial da sua mensagem em torno da forma desenhada, consegue posteriormente, com a subtileza e economia de meios que já referi, fazer com que a aplicação das cotes vá reivindicar, ao espaço de signifi­cação pictórica, uma valiosa parcela do discurso total das obras apresen­tadas.

É fácil descobrir, como novidade significativa no arsenal de argumentos do pintor, o momento mágico em que a pintura – aqui e ali – consegue tornar-se independente e reclamar espaço próprio, tal como acontece na abertura de “tramas de luz” que vêm animar certas zonas neutras, con­ferindo-lhes uma significação útil, já distante, de certo modo, da origem temático-figurativa.

Noutros casos, a configuração de certos elementos mecânicos ou de construção, cuja “credibilidade” ou “verismo” tão frequentemente tem sido utilizado pelo artista como um dos seus principais argumentos, pare­cem progressivamente dominados pelo trabalho da cor, que cria transparências, descontinuidades ou

tanto mais importante se colocarmos a nós mesmos a questão que só o tempo esclarecerá, de procurar saber até onde se vai desenrolar o processo, e quais as surpresas que nos reserva no devir da obra do artista.

No contexto assim definido, ape­nas me pareceria dispensável o uso que o artista (ainda) efectua de processos fatalmente derivados da sua anterior experiência de artista gráfico, nomeadamente a inserção de letras. Esta utilização, feita por decalque, como demonstra a memória perfeita dos antigos conjun­tos do “letraset”, escamoteia por vezes a configuração volumétrica dos “organismos” respectivamente subjacentes, pouco acrescentando ao esplendor visual dos mesmos, roubando quiçá ao observador algum que outro espaço vazio, tão necessário e apetecível, numa pintura como esta em que todos os centímet­ros quadrados de tela contam para fascinar o observador.

Vestígios da decadência ou berço dum mundo novo?

À entrada da exposição, um monte de ferros, alusão à decadência de objectos outrora úteis e reluzentes, tão típicos da nossa sociedade que prefere o cimento aos espaços verdes e privi­legia o jipão arrogante em detrimento do homem a pé ou de bicicleta.. Também disso fala o trabalho de António Pimentel, e também esse tem sido, ao longo dos anos, parte signi­ficativa da sua mensagem. Contudo, o olhar que dirijo àquele escasso mon­tículo de “ferraille”, é inteiramente diverso daquele que reservo para as pinturas expostas, como duma antítese se tratasse, ou duma transfig­uração intencionada.

Dentro da sala, nem o fascínio da construção desenhada, nem a vibração envolvente da cor têm directamente a ver com o tema assumido, num movi­mento de metamorfose que constitui, ao que julgo, uma das mais activas alavancas do processo criador: a figu­ração, qualquer que seja o grau de verosimilhança, nunca é senão “uma outra coisa”, entidade autónoma e lib­erta da essência relativa e circunscrita do objecto figurado. Este funciona apenas como pretexto ou argamassa para construção dum outro mundo, senão inteiramente novo, diferente em tudo aquilo que lhe conferiu impulso inicial, catapulta serena das ideias e da afirmação dos signos, a voarem agora livres e sozinhos como os pássaros.

Visita ao Atelier de Mário Silva

 

Publicado no Diário de Coimbra de 18 de Julho de 1997

Um dos amigos que sempre me tem convidado para que o visite é o pin­tor Mário Silva. E não me ficava bem – tendo recomendado já aos meus lei­tores, como prática artisticamente essen­cial, a visita de atelier – deixar de relatar a minha última passagem por Santa Luzia de Lavos.

Há pintores que fazem das visitas ao seu atelier uma tarefa mais ou menos pre­meditada, com certos primores, certa encenação. Não falando nos artistas tími­dos ou secretos, a quem as visitas parecem vulnerabilizar, algures, o seu pudor ofici­nal ou técnico…

Para o Mário Silva, a pintura é uma experiência à flor da pele. Conversamos com o pintor e ei-lo sentado imediatamen­te, frente a uma tela, como um piloto no seu “cockpit” pronto para levantar voo. No atelier onde reina uma liberdade intui­tiva, quase caótica, acumulam-se os inu­meráveis vestígios das mais diversas expe­riências, restos duma pesquisa vivencial incessante, repartida entre a boémia cultu­ral e uma incapacidade de ocultação espi­ritual, que é marca indelével do carácter do artista.

As telas soltas já pintadas, mas ainda sem grade, estendem-se como frágeis pelí­culas ondulantes, por cima dos móveis. Umas por cima das outras, obrigam a uma manipulação difícil, para revelar este ou aquele detalhe.

Nada está oculto, aliás, e todos os ges­tos são esclarecidos pelo artista, que leva as suas sinceridades ao extremo invencível da transparência. Aquela ponta de feltro que serve para abrir os primeiros sinais sobre as telas recentemente iniciadas. As latas do produto usado para dar tons de fundo, e ao qual se vai sobrepor o óleo. Aqueles preciosos detalhes sobre marcas, e aquelas outras tintas que usa para afinar detalhes, acrescentar tons, dar velaturas…

Há dois cães enormes quase negros, o “roque” e o “bêtôvên” que têm carta bran­ca para tudo. Desestabilizam imenso as visitas, mas é preciso contar com os ani­mais, se se quer realmente conhecer o Mário Silva. A natureza tem plenos direi­tos em sua casa. Desde o reino vegetal ao animal, regista-se a presença de diversas espécies, umas mais singelas, outras mais exóticas. Recordo entre outras a presença das “pombas de gola” (aquelas que o Picasso desenhou…) e uma cobra enorme, escondida algures nos quintais ou na horta, e que o pintor tentou afugentar sem êxito…

Neste domingo concorrido há visitas que entram, amigos que batem aporta. Há coleccionadores perplexos com esta ou aquela escolha. É preciso esperar pelo pintor. Apesar disso, com tanto automóvel a estorvar o sol da Figueira, e tanta gente amontoada em ruas estreitas em busca da liberdade que a beira mar promete, sabe bem estar aqui, no silêncio de horizontes abertos de Santa Luzia de Lavos.

No pavilhão lá do fundo é onde o artista guarda a biblioteca de seu pai, o Professor Mário Silva. É sempre com grande admi­ração e enlevo que o Mário fala de seu pai. Sempre condoído pelo injusto tratamento de memória e reconhecimento que ao mesmo tem sido dado, vai folheando obras preciosas, autografadas muitas delas, numa biblioteca rara, de intenso poder evocativo, a requerer um espaço bem mais condigno para ser mantida e resguardada. Esse pavi­lhão do fundo, no primeiro andar, tem uma varanda que parece a proa dum navio. Sobre ela sopra o vento largo e salgado de toda a foz do Mondego. Dali se avistam os verdes próximos, os azuis distantes, e os montículos rebrilhantes das salinas. Dali se sai com a vista a doer de tanta luz.

Fala o pintor

– Umas vezes pinto, outras “despinto”.

O diálogo, entrecortado de uma cumpli­cidade risonha, acaba por esclarecer-me. Pintar, para o Mário, é o trabalho que tem como ponto de partida o traçado gestual, mais elaborado em configurações inten­cionais ou de lançamento intuitivo e casual, que é feito sobre a tela ainda vazia de outros acidentes. O acto de “despintar” é levado a cabo por outra forma. Primeiro, o artista faz descer sobre a tela a cortina densa de tons neutros de fundo, geralmen­te terras bastante diluídas. Essa mancha não tem praticamente nada a ver com o clássico preparo de tons de fundo, tão do conhecimento e do gosto da pintura clássi­ca. É antes pretexto para que nela surjam acidentes diversos, “janelas”, onde o artis­ta – como num “flash back” – vai desco­brir silhuetas, signos, perfis, gestos e atitu­des que irão constituir a figuração do pró­prio quadro. Esta diferenciação – que o próprio artista efectua – não deixa de demonstrar que, quer no domínio do con­ceito, quer no domínio da execução, é sobre o intencionalidade do traço, seja qual for o meio com que é executado, que repousa a estrutura aglutinante da cor, apli­cada de forma tão rápida e eficaz.

A mancha de cor por seu turno, se surge acidentalmente, é depois utilizada para enquadrar, pelo gesto que ao desenho diz respeito, ideias de casualidade significativa pelas mesmas sugeridas. Isto diz o Mário pegando num pedaço de papel manchado de tintas, que sobra da acumulação imensa de vestígios da laboração do artista.

A tarde termina, à larga mesa da sala recheada de objectos díspares, numa casa repleta de colecções, de restos da enorme convivência com outras pessoas e outros artistas. Bebemos vinho do agricultor, santolas do mar da Figueira e queijo bem curado. Há um amigo veterinário que veio cuidar graciosamente dos cães, e que conta histórias de humor negro, de santolas e cadáveres nas praias da Normandia. O vinho é óptimo e o vagar ainda dá tempo para uma discussão sobre cinema que é iniciada pela Zézinha, do modo sere­no e risonho que lhe é peculiar.

Antes dos abraços, o Mário insiste em me dar um quadro seu, por troca com um dos meus. Vou à sala onde guarda os tra­balhos feitos (seguramente a única sala da casa que é fechada à chave) e demoro imenso tempo a decidir-me. A paciência do artista é enorme.

Regresso à paz tranquila do largo ao pé da igreja de Santa Luzia de Lavos, já com o quadro debaixo do braço.

Pouco depois, flanqueado de motores ruidosos estou de novo na estrada, cheio de medo dos apressados viajantes que parecem correr furiosamente, perseguindo um futuro cheio de crispacões. Oxalá este­jam com pressa para irem ler um livro, falar de pintura ou de cinema, ver uma peça de teatro ou – quanto mais não seja – passar um alegre serão a conversar com os amigos.

E vou sorrindo e pensando:

– Obrigado Mário, boa saúde e até à próxima!…

Maria João Franco no Chiado

Nota publicada no Diário de Coimbra de 5 de Julho de 1997

Decorreu há bem pouco tempo, na sala de exposições do Chiado, uma exposição notável que já não foi “apanhada” pelo período de confecção desta colu­na: a de Maria João Franco. Oxalá me seja possível reverter ao assunto, com a atenção neces­sária e merecida. Refiro por hoje, tão somente, o facto do catálogo possuir um excelente texto da própria pintora, a merecer a melhor atenção de todo o visitan­te. Quanto à pintura que ali este­ve exposta, parece-me ter sido seleccionada pela autora para permitir uma viagem aos funda­mentos da sua própria atitude estética. Ou seja, os quadros escolhidos eram duma essencialidade marcada, desde o desenho, à mancha, à cor, Outras obras suas tenho visto, de esplêndida busca e acabamento de valores plásti­cos, onde tal essencialidade já não é tão           dado o fundamento da procura dos resul­tados finais, cheios de requinte, aqui expostas, era possí­vel explicitar bem o desenho, como se referencia no traço a memória do corpo, e como posteriormente asse vão formando, até que o traba­lho de pintura ocupa uma expressão autónoma e afirmativa. Uma óptima oportunidade, por­tanto, para uma interessante con­versa sobre pintura, que oxalá tenha sido aproveitada por mui­tos visitantes. Oxalá possamos vir a falar deste assunto, mais tarde, com mais algum detalhe.

Atenção à pintura!…

 

Publicado no Diário de Coimbra de 5 de Julho de 1997

Conheci há dias uma pessoa jovem, bem colocada numa insti­tuição financeira, com a qual tra­tei dum assunto de interesse artístico-promocional. Pessoa interes­sada e com viagens na memória, devia pertencer à minoria daque­les que podem entender a mensa­gem geral das artes, e da pintura em particular. Chegados à con­versa sobre esse assunto, grave foi o meu desapontamento. Que não, que a pintura sempre lhe tinha passado ao longe, e que toda a experiência cultural de que dispõe não passa por ali, onde se regala o espírito dos pintores.

A confissão dessa inexperiên­cia não me foi atirada com indi­ferença nem com arrogância, antes com um certo envergonha­do desgosto. De tal modo assim, que não deixou de me dizer que já vira com certo encantamento, em Inglaterra, grupos de jovens serem levados à presença da arte e – de diversas maneiras – serem familiarizadas com a prática e o objecto artístico. Desde a discus­são sensibilizada de uma obra até ao mexer nas tintas, tantos são os ensejos para a educação sensível e civilizada das pessoas!…

Uma formação académica (ou sem ser académica…) que ignora as artes, vulnerabiliza o sujeito de forma lamentável. Se o mesmo, por sua própria iniciati­va, não consegue preencher essa lacuna, estaremos perante alguém menos capaz de experimentar um dos mais fecundos prazeres da vida, incapaz – além disso – de se posicionar perante outras face­tas do conhecimento e da expe­riência.

O mundo, como coisa entendível e decifrável, exige as valências que só a sensibilidade artística e a consciência visual podem dar.

A pólvora visual

Os telejornais; os jornais; as revistas; a publicidade; os signos gráficos; as imagens de marca; o “look”; as estratégias da imagem; ah, o “márquetingue’!…

A nossa imagem do mundo e a imagem que nós temos de nós próprios. E o cinema, o teatro, toda a cultura, toda  a experiência da vida repassadas pela. subjectividade impressionante da cor e a expressão viva da figuração, a abarrotar de associações de ideias de automatismos conscientes e inconscientes.

Sem uma capacidade ginasticada de apreciação crítica das imagens no estado densificado que a arte propõe, como poderá sobreviver um cidadão de hoje, sob a pressão esmagadora e prati­camente instantânea das mensa­gens codificadas, sintetizadas, tomadas complexas por especialistas, técnicos e outros sábios manipuladores?

As fábricas de opinião, os pro­dutores de comportamentos, são uma das principais fontes de poder do mundo de hoje. Aos pais, aos professores, aos artistas, a todos os cidadãos responsáveis e conscientes, de aqui se grita:

-Atenção à pintura!…

– Atenção à pintura, atenção às artes em geral!…

Os cegos mais inteligentes (aqueles que o são por imposição da natureza) procuram “ver” o mundo com imenso esforço do espírito sem disporem do privilé­gio que nas outras        é gra­tuitamente simples; a percepção inteligente duma cor, dum traço, ou dum sím­bolo complexo, duma superfície que se anima de profundidade e de sentidos estranhos. Todo o emaranhado dos sinais misterio­sos e   encantadores. Falar nisso, pensar nisso, e depois viver…

Galerias de Arte, espaços que se multiplicam em Coimbra – II

Publicado no Diário de Coimbra de 25 de Junho de 1994

No primeiro escrito que publiquei sob este título, confiei aos leitores algumas interrogações a respeito da proliferação de espaços de comercialização de objectos de arte nesta cidade.

Venho colocar desta vez uma questão semelhante, e complementar:

As vitrinas cheias e os escaparates repletos não são garantia de qualidade. Também as paredes reco­bertas de telas não são garantia de bom gosto.

Desse mal se queixam muitos daqueles que conti­nuam a afirmar que o meio artístico Conimbricense é sub-desenvolvido e provin­ciano, pelo que é fora que têm de ir comprar aquilo que desejam e de que necessitam.

Tal altitude, a generalizar-se, vai dar origem a uma mão cheia de boas colec­ções mais ou menos confi­denciais, mas nada contri­buirá para romper um círcu­lo mais ou menos vicioso: Não há oferta, porque não há procura, e vice-versa.

Por isso, pergunto:

Valerá a pena afirmar a independência e a autono­mia artística das cidades não capitais onde não cho­vem milhões ? Valerá a pena existir em Coimbra uma comunidade artística activa e valorizada? Valerá a pena tentar subsistir à custa das sensações fortes da viagem ao estrangeiro, da importação de peças raras e da pequena especu­lação em circuitos fecha­dos?

Coleccionar ou especular ?

Não tem qualquer signifi­cado duradouro para o nosso futuro cultural colec­tivo, existir um certo núme­ro de pessoas que ilustram a sua intimidade com a aquisição de peças importa­das dos leilões lisboetas ou outros, por muito legítima e gratificante que seja essa atitude no plano individual. O futuro se encarregará de espalhar ao vento os objec­tos assim amorosamente coleccionados, nada restan­do senão a componente “investimento”, e mesmo assim… depende dos netos!

Não tem igualmente qualquer significado para o meio artístico e cultural, que algumas pessoas proce­dam ao investimento e negociação de peças de arte, sem que isso obedeça a um projecto clarividente, complementado com enco­mendas regulares e pros­pectivas, abertas para o nosso próprio meio e seus intervenientes.

Repito a questão: como é que vão subsistir (ou apare­cer…) os valores de autono­mia artística sem encomen­da sustentada ou apoios institucionais, nem públi­cos nem particulares? Como é que vão fazer os novos (e velhos…) artistas, por vezes bastante isolados perante um meio que os olha de soslaio, lhes rega­teia a atenção e lhes inveja os ganhos (quais ganhos?…).

O que digo em relação às artes visuais aplica-se como é evidente a todas as áreas e disciplinas da expressão artística, para não falar noutras áreas da actividade intelectual, onde parece mais assente o inte­resse numa afirmação de valores próprios.

Tais valores e tal autono­mia são os únicos garantes da afirmação genuína de uma independência e origi­nalidade culturais que, para serem válidos, devem ser (também) produzidos, sonhados, discutidos e entendidos aqui, como tes­temunhos universalizáveis da nossa forma de estar no mundo e da nossa capacida­de de o enriquecermos por nós mesmos.

A completar esta série de perguntas, uma atrevida reflexão: o leitor já reparou que Coimbra, em séculos passados, sustentou uma comunidade activa de artis­tas de grande qualidade e que, hoje em dia, a “enco­menda” artística está redu­zida a um mínimo tão míni­mo que nos arriscamos a não deixar nada de vivo atrás de nós, de nossa pró­pria autoria?

A pergunta feita assim é tão legítima como as que costumam colocar-se em relação à defesa do patri­mónio. Ou se defende o património, ou não. Ou se aumenta e enriquece o espólio artístico da socieda­de, ou não. Ou se exercita a independência cultural ou nos escondemos de vez atrás do televisor.

Essas questões têm a ver com a produção, a apreciação, a posse e o respeito pela obra artística original. Sem artistas capazes e acti­vos, tudo isso (e o patrimó­nio…) não passa duma fic­ção, apetece dizer, hipocri­tamente traída.

O medo e o pragmatismo

São as situações de menoridade e dependência cultural e artística que acar­retam um falso mercado de objectos artísticos, abun­dantemente espalhados por expositores, paredes de galerias e outros locais mais ou menos vocaciona­dos, conforme questão colocada no início desta nossa conversa.

E, se foram bem com­preendidas as palavras que inseri no primeiro desta série de artigos, volto a refe­rir a inutilidade ridícula da concorrência não dialogante, numa actividade onde deveria imperar o sentido da participação, e tão depen­dente do que possa ter de qualitativo e convivência!.

O negócio de objectos de arte, para alcançar verda­deira respeitabilidade, criar novos interessados e con­quistar o clima próprio duma actividade enriqueci­da, tem de ser feito com cultura e sensibilidade, não esquecendo as componen­tes humanas, seu principal suporte.

Caberia neste ponto dar uma palavrinha ao número significativo de cidadãos interessados, que passa toda a sua vida a adiar “a tal compra” duma peça de arte lá para casa.

Dada a distância a que se encontra o nosso meio das fontes de apoio real da acti­vidade artística, penso que o aparecimento de novas camadas de interessados activos poderia constituir uma novidade importante. A única que me é possível destrinçar, dado o estado das coisas no interior da nossa sociedade, frequente­mente associável a cenários de “crise”, “recessão”, “vacas magras”, etc.

Menos que a recessão ou outra causa de raiz estrita­mente económica, penso ver em tudo isto a manifes­tação duma certa tristeza, dum certo cepticismo, dum abandono da vitalidade em favor do medo, da indife­rença e do avaro pragmatis­mo.

Comprar obras de arte tem a ver com a sensibili­dade, com a educação, com o espírito de convivência (valores como se sabe um pouco abatidos em presen­ça de outros, de efeito mais musculado e prático…). Mas também tem a ver com o tipo de opções que as pes­soas fazem no seu dia a dia e na qualidade do amor que sustemos por nós mesmos, e pela vida.

1000 cm 3: um quadro!…

Eu já não queria publicar uma lei que obrigasse todas as pessoas que compram carros de grande cilindrada a ter em casa pelo menos um quadro por cada mil centímetros cúbicos (a lei seria aprovada por unani­midade, com carácter de medida ecológica, mas não seria aplicável na prática, como tantas outras…).

A aquisição dum objecto de arte tem a seu favor a superioridade moral de ser uma compra distintamente supérflua, pressupondo uma atitude esclarecida de prazer e de realização pes­soal.

As obras de arte não são o que se chama “um artigo de primeira necessidade”, atingindo por isso uma nobreza rara que vem depois de tudo o que é essencial, conferindo à totalidade uma harmonia profunda e “indispensável”.

A arte é pois tudo o que não é “necessário”, sendo não obstante “indispensá­vel”.

No próximo episódio destas trocas de impressões não falarei para os coleccionadores encartados (que os há na nossa terra) e que sabem muitíssimo do assunto, mas sim para aquelas pessoas que não sabem “por onde começar”.

O próximo tema a abor­dar é o seguinte:

Começar a comprar: o quê, quando e como?