Category Archives: coxia central – cinema

A importância do jornalismo cultural

Um acontecimento cultural ou artístico sem eco ou resposta inteligente é um não-acontecimento. Sempre tive o interesse e o gosto de olhar e considerar o trabalho dos outros. Primeiro para meu uso, seguidamente para dar testemunho de opinião e sensibilidade. Julgo que uma sociedade que não responde de forma critico-apreciativa às manifestações culturais e artísticas é uma sociedade pobre, no sentido mais cortante e inconveniente do termo. A inteligência crítica é uma energia produtora de evolução em todos os sentidos. A cultura que não estimula essa atitude, se não está morta, está entregue ao calculismo e à falta de generosidade.

Costa Brites

Eugène Green, Soror Mariana e os azulejos

A RelPort

Publicado no Diário de Coimbra de 12 de Maio de 2010

Interessei-me desde há pouco pela figura de Eugène Green, o realizador de “A Religiosa Portuguesa”, e já li a seu respeito uma quantidade de coisas invulgares.
Por exemplo, os seus filmes incluem sempre cenas filmadas à luz de velas: projectores barrocos, assim chamados por terem detrás um espelho que ajuda a luz a comunicar às cenas uma suave luminosidade nocturna. E esclarece Raphaël O’Byrne, director de fotografia: “Deve ser o único realizador no mundo que filma sem luz eléctrica”.
Outra excentricidade, não menos surpreendente, é tratar-se de um nova-iorquino que não afina pelo diapasão “normal” pró-hollywoodesco. Antes pelo contrário, Eugène considera o seu país como “a barbárie”, abomina a produção fílmica norte-americana, adoptou há longos anos a França como local de residência e, imagine-se, tem uma acentuada fixação simpática pelos portugueses, por Lisboa e pelos mais sensíveis avatares da nossa cultura. Se eu fosse realizador cinematográfico e me encomendassem um filme sobre as qualidades emblemáticas de Portugal e dos portugueses, teria pudor em ser tão sentimentalmente frontal na exaltação da nossa personalidade simbólica.
Uma sequência de “A Religiosa Portuguesa” oferece-nos uma simples viagem de eléctrico e o olhar da câmara extasia-se e detêm-se em cada rosto, revelando a fisionomia meridional, o curioso olhar mourisco e o sorriso suspenso daqueles viajantes sem pressas. Numa cidade tão empedernida pelo cansaço, Eugène avalia os lisboetas com a imagem que deles retém e faz questão em nos mostrar o velho amparado nas canadianas a quem uma rapariga nova, tão solícita, oferece imediatamente o seu lugar. As escadinhas e calçadas tranquilas, os pátios escondidos, as portas antigas com pequenas janelitas, o sol forte por entre as ramagens, as paredes velhas com garatujas, as mais abertas perspectivas sobre a cidade enorme, os seus miradouros e jardins antigos, o dorso das colinas, os fontanários e bancos de pedra: Eugène vê tudo à lupa, explica, regala-se, ostenta como ornamento precioso aquilo que nós porventura desistimos já de ver ou simplesmente confundimos com velhice de alma decadente. Há muitos anos que não via um filme com fados inteiros e gente conhecida sentada, tornando explícita a morena estirpe lusitana de magriços e mouras encantadas.
E os azulejos, meu Deus, os azulejos!… Por todo o lado, detrás de cada vulto, de dia ou de noite, reforçando a solenidade da talha dourada e a convicção dos santos nas igrejas, em palacetes graves ou velhas dependências de casas modestas. Aparece por fim D. Sebastião, como se outra coisa faltasse para retratar o sentimento do inexplicável narrado num tom que explicitamente evoca a linguagem fílmica de Manoel de Oliveira, tão declaradamente presente que a própria protagonista e outras figuras são transferidas dos elencos favoritos do consagradíssimo realizador. Nada de tão fortemente emblemático poderia levar o filme tão longe como tem ido, a festivais e encontros com prémios e referências honrosas. A sua produção foi maioritariamente portuguesa e obteve subsídio do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), o que gerou certa polémica. Não impediu no entanto que tenha sido considerado por certas opiniões como “mais português do que muitos filmes portugueses”, tendo sido rodado em Lisboa por uma equipa técnica maioritariamente portuguesa, com base na que fez outra película de sucesso: “Aquele Querido Mês de Agosto”. “O Som e a Fúria”, entidade produtora do filme, foi criada em Setembro de 1998 e dedica-se em exclusivo à produção cinematográfica, procurando estabelecer um vínculo com o cinema de autor e independente. Já produziu 2 documentários, 23 curtas e 4 longas-metragens. No seu conjunto, estes filmes arrecadaram 53 prémios e 14 menções especiais em Festivais de Cinema. Também participa na distribuição das obras que produz, pelo que convém aos cinéfilos amigos mantê-la sob observação atenta.

Alice no país das maravilhas, o livro de tantos filmes

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DrawAlFoi publicado dia 26 de Março de 2010 no Diário de Coimbra

The Hatter opened his eyes very wide on hearing this; but all he said was ‘Why is a raven like a writing – desk?’

Lewis Carrol, de seu nome Charles Lutwidge Dodgson, foi um clérigo anglicano de muito respeitável família, precoce, sensível, gago, canhoto, cultíssimo, tendo ingressado em 1851 na mesma faculdade onde estudara seu pai, a Christ Church da Universidade de Oxford, onde veio a leccionar matemática. Dele pode dizer-se igualmente que, além de cientista dotado de promissora carreira, também era apreciador das novas tecnologias de então. Dedicou-se à fotografia com particular afinco, produziu em estúdio próprio milhares de originais que documentou de forma exaustiva, facto que – entre outros – justifica a sua inserção no mais elevado estrato cultural e artístico da sociedade inglesa da época victoriana. A sua obra literária deu origem a uma galeria de figuras e de situações de uma originalidade sem par, servidas por uma imensa subtileza de linguagem e um enorme sentido de análise psicológica, tudo envolvido por um halo de irrealidade que em inglês costuma designar-se por “nonsense”, um “não-sentido cheio de conteúdos latentes” de elegante complexidade.
As suas duas obras mais conhecidas “Alice no país das maravilhas” e “Alice do outro lado do espelho” têm fornecido matéria a um sem número de referências analíticas e inúmeras criações artísticas, de que o cinema se tem servido abundantemente. São agora aproveitadas para fazer um filme que, com algumas afinações de enredo “made in Hollywood”, conta a história conjunta mais uma vez, aproveitando o pano de fundo de enorme notoriedade que a obra do sofisticado inglês conseguiu granjear praticamente por todo o mundo.
A novidade essencial desta milionária realização é a de nos trazer a história contada a três dimensões, facto que se arrisca a ser cada vez mais frequente em filmes de grande notoriedade e movimento, de proveniência norte americana já se vê, por ser – fatalmente – a única origem de praticamente todo o cinema visto entre nós, em salas ou mesmo na televisão.
Além do acréscimo das percepções visuais, os animais são todos assustadores e aquele “Jabberwocky” tem qualquer coisa de familiar dos monstros das guerras das estrelas, figuras medonhas que matam tudo que lhes aparece à frente e que têm um rugido que até faz abanar as cadeiras.
Sendo o imaginário de Lewis Carrol uma ferramenta de profundo interesse na interpretação metafórica de uma quantidade de estranhezas e complexidades do nosso espírito e da natureza das coisas, seria talvez proveitoso que da ida a este filme alguma coisa ficasse na mente do espectador médio para além do ruído e dos efeitos especiais que comandam o espectáculo.
Mas receio bem que para isso seja fundamental um mergulho silencioso e delicado na leitura dos seus livros, o que cada um de nós poderá fazer em qualquer altura com o apoio garantido da nossa capacidade imaginativa que entende capazmente as “falas do Inconsciente” e que também fornece, estou seguro, imagens a três dimensões.

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"Prestígio Real" um filme dos anos 50 que adorava ver de novo, presente aos pedacinhos na internet…

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A Internet reserva-nos as maiores surpresas e as mais inesperadas descobertas.
Das memórias cinematográficas dos primeiros anos da minha adolescência faz parte um filme indiano, produzido e realizado por Mehboob Khan que foi exibido em Portugal aí por 1956, mais coisa menos coisa.


O título Indiano é Aan (que quer dizer “orgulho”) o título inglês é “The savage Princess” e em português era intitulado “Prestígio Real”.
Numa entrevista de Fevereiro de 2007 diz-nos Fonseca e Costa que “…marcou uma geração com a opulência dos seus exóticos décors, o pendor desmesurado pelo melodrama romântico, onde a menina pobre casava sempre com o belo filho do marajá depois de vencidas contrariedades aparentemente intransponíveis, tudo acompanhado por canções e músicas de fazer chorar as pedrinhas da calçada…
(nesta película o caso não era bem esse, mas a diferença era apenas de simetria porque era o rapaz pobre que casava com a filha do marajá!…)
O filme foi um sucesso extraordinário e lembro-me ainda de muitas cenas que agora reencontrei, em toda a sua frescura e musicalidade, no YouTube!…
Recordo com a mais viva emoção uma das muitas canções do filme que, naqueles tempos recuados sem televisão (a rádio tenha apenas meia dúzia de frequências audíveis…), era repetida sem cessar pelos altifalantes da Feira de Março, em Leiria!…
Tinha por título: “Dil Mein Chupake Pyar Ka” e era interpretada por Mohammed Rafi.

Algum tempo depois começariam as desavenças entre Portugal e a União Indiana a respeito das crescentes pressões sobre Goa, Damão e Diu, que acabariam com a reocupação daqueles territórios pelas tropas indianas.
Não cabe aqui descrever uma infinidade de peripécias ligadas com esses factos que culminaram, entre outras coisas, com o fim da importação de filmes da India que viria a ser retomado apenas depois das transformações ocasionadas pelo 25 de Abril.

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“O Leitor”, Eros e Thanatos, a celebração da palavra e o labirinto dos tribunais

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De read

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Públicado no Diário de Coimbra de 24 de Fevereiro de 2009

Na abnegada pesquisa que costumo fazer a respeito dos filmes que comento encontro sempre coisas fantásticas. Desta vez foi uma entrevista do próprio Stephen Daldry, realizador do filme, cruzada com um artigo do Los Angeles Times de Setembro de 2008 a respeito das lutas intestinas entre os principais investidores e mandantes da “indústria”, anteriores ao lançamento de “O Leitor” para a competição aos Óscares.
Digamos que essas histórias por detrás do cinema não são menos emocionantes que o próprio conteúdo das ficções, tendo o espectador que reunir coragem para entender a obra como algo derivado do talento criativo de certos artistas envolvidos e não apenas a resultante das catacumbas do negócio e dos seus avatares.
“O Leitor”, como tantos filmes, é baseado num livro, neste caso da autoria de Bernhard Schlink, escritor alemão que analisa factos ligados ao sentimento de culpa derivado das atrocidades cometidas no decurso da segunda guerra mundial. Investigações posteriores identificaram a figura feminina que teria dado lugar ao perfil de Anna Schmitz, protagonista do drama em causa e que seria nem mais nem menos que uma odiosa carcereira do campo de concentração de Buchenwald.
Quer o livro, quer o filme, oferecem-nos contudo uma personagem muito menos forte e determinada de que apenas ficamos a conhecer o lado da sensibilidade vulnerável e da precariedade de recursos de carácter.
Um julgamento casual muito depois do fim da guerra levam-na a depor perante um soleníssimo tribunal e é com aparente facilidade que um grupo de outras carcereiras muito mais astutas conseguem atirar com ela para uma terrível condenação de prisão perpétua.
É condenada por ter escrito de seu próprio punho uma elaborada nota de culpa, ela, que nem sabia ler nem escrever.

O filme é muito complexo, muito bem construído, foca diversos assuntos de mão cheia: o remorso por omissões, a questão do holocausto, a consciência colectiva da culpa, a tenacidade fria dos vencedores endinheirados, o ensino das leis, as trágicas contingências da Justiça e dos seus “funcionamentos”, etc.
É-me impossível por isso abordar aqui tudo o que poderia ser dito a respeito e irei ficar-me por um ponto que me pareceu magistralmente sugestivo.
Num contexto finamente erótico (qual é o filme de bilheteira mundial que poderá esquivar-se a esse primordial argumento de sucesso? …) uma mulher de rosto assustado e perdido encontra um rapaz na fina-flor da sua adolescência, o qual consegue conduzir aos encantos do leito sem nenhuma resistência. Prendado estudante de ensino médio (que na Alemanha não é campo de batalhas inglórias…) domina com finesse e voz bem timbrada textos clássicos, dramas consagrados e outras peças literárias de precioso encantamento.
O principal acessório desse convívio apaixonado organiza-se por conseguinte em torno da celebração da palavra sentimental e dramática, sentida, ouvida e sonhada.
Por razões que o enredo não clarifica totalmente a protagonista suicida-se ao fim da história. E é intelectualmente cruel e teatralmente alemão que tenha escolhido uma pilha desses livros clássicos como alçapão do seu cadafalso.

Num filme que não resolve nenhuma das suas contradições maiores mas é farto de sugestões problemáticas, este é mais um enigma com que Hollywood responsabiliza a consciência crítica do espectador. E não é pouca coisa nem elogio de somenos a cento e vinte e três minutos de cinema sem pacote de pipocas e com tampões bem postos nos ouvidos por causa do barulho infernal das projecções fílmicas dos dias de hoje.

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O “Ensaio sobre a Cegueira” em adaptação cinematográfica de Fernando Meirelles, a não perder

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Publicado no Diário de Coimbra de 31 de Dezembro de 2008 (Feliz Ano Novo!…)

O “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago é uma portentosa alegoria da condição humana e do mundo tal e qual se encontram, entregues a uma cegueira muito mais que simplesmente metafórica, revelando os humanos uma incapacidade quase natural de encarar problemas colectivos com alguma generosidade, altruísmo ou até o mais elementar bom senso.
O filme “Blindness” do realizador brasileiro Fernando Meirelles é uma versão cinematográfica da obra do escritor português, motivo que tem imenso interesse para todos aqueles que têm seguido o auspicioso devir do seu notável trabalho literário.
O filme é de uma qualidade fora do comum, segue de muito perto o espírito e a letra da obra em que se baseia e enfrentou de forma criativa as não poucas dificuldades que um tal enredo certamente apresenta.

A notável co-produção do Brasil, Japão e Canadá permitiu ao realizador brasileiro a adopção de soluções cenográficas muito avançadas com níveis de extraordinário realismo, grande número de figurantes e contextualização visual impecável.
A história trata da eclosão de uma inexplicável “cegueira branca” que surge como disparador duma situação limite como aquelas que as artes narrativas frequentemente utilizam para desencadear o drama. Coloca em questão a dificuldade que os homens têm de se organizar de forma pacífica e benévola face às situações de crise, que tendem a ser constantes por essa mesma razão. Demonstra também a extrema vulnerabilidade da espécie humana face a catástrofes gerais, de que a cegueira aqui é um mero exemplo simbólico.
Ao que parece, não basta ao Homem estar por natureza condenado à morte, não bastam todas as suas limitações e relativismos: fora do seu núcleo pessoal mais estreito, e logo que tenha de repartir o seu destino, acorda em si o impulso egoísta e a lamentável incompreensão.
Na refrega de todas essas contradições surgem sempre os actos de heroísmo isolado, as demonstrações de corajosa lucidez e de comovente generosidade que tão importante lugar conquistam na literatura, no teatro e nos outros testemunhos que o homem está condenado a escrever com sangue e lágrimas. Pena é que nem todas essas histórias estejam destinadas a um fim feliz.

15-pUma grande virtude do filme de Meirelles é a de estimular a revisitação da notável obra que lhe dá origem, efectuando o espectador interessado a ponte entre ambas, no pleno usufruto do melhor de cada uma.
É com essa a coabitação de valores positivos que as artes presenteiam os homens, numa clara demonstração de que todos ganhariam se nos comportássemos como irmãos solidários. E para que não fosse tão frequente termos de repetir, com amargura atravessada na garganta que “estamos cegos porque estamos mortos” ou que “estamos mortos porque estamos cegos”, envolvidos pela teia de um dilema sem resolução por não passarmos, muitas vezes, de “cegos que vendo, não vêem”.

O bom hábito de ficar ao fim do filme lendo a lista de todos as pessoas e organizações que colaboraram na sua produção tem o mérito de revelar que o cinema, como muitas outras formas de intervenção artística, resulta da sobreposição de esforços inteligentes entre pessoas e organismos distintos.
O genérico de “Blindness”, dada a sua extensão, é um caso superlativo e exemplo positivo de colaborações que podem contrabalançar o cepticismo que a mensagem do livro e do filme podem semear no nosso espírito.
Nem tudo está perdido e a paz construtiva é possível sempre que os homens quiserem.

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“A Turma” – uma batalha difícil entre rebeldes intuitivos e seus únicos aliados possíveis

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Foi publicado no Diário de Coimbra de 17 de Dezembro de 2008

É pena que este filme, com argumento escrito por um professor que se interpreta a si próprio (François Bégaudeau), não seja constituído como tema intensivo de trabalho para todos aqueles que estão implicados no ensino e, ao dizê-lo, estou a pensar literalmente em toda a gente. Principalmente os pais de filhos que frequentam o ensino secundário, aparentemente o único dono de todas as problemáticas e controvérsias, como se os outros níveis de ensino não fossem, também eles, território de complicadas contradições.
“A Turma”, de Laurent Cantet, é um pedaço de cinema duma raríssima qualidade comunicativa. Oferece-nos uma peça de ficção tão meticulosamente construída no seu todo e nas partes que a constituem, que parece um naco de vida arrancado no seu estado puro à experiência vivida algures por professores, alunos e respectivas famílias.
Quem assistir ao filme é transportado para dentro da escola duma tal forma que esquece a sua condição de espectador, tornando-se quase testemunha de factos realmente ocorridos com pessoas que, um dia destes, iriam cruzar-se connosco caso vivêssemos lá, naquele complicado subúrbio de Paris. Não nos iludamos, contudo: a nossa realidade é cada vez mais semelhante àquela, numa sociedade cada vez mais confusa, assimétrica e problematizada.
O espaço exíguo da sala e o recreio igualmente atravancado são os cenários principais que nos são mostrados numa escola francesa onde não falta, apesar de tudo, um conjunto razoável de recursos técnicos e respeitáveis princípios de organização disciplinar.
Os momentos mais intensos do filme são os que documentam a argumentação cerrada entre professor e alunos, em pleno decurso das lições de língua francesa. O exercício da palavra, os seus mistérios, tesouros e artifícios são a reserva de subjectividades sempre candentes que revelam toda a complexidade da natureza humana.
E é aqui que se demonstra que a um professor não basta conhecer todo o conjunto de matérias que lecciona. Tem também que ser pedagogo no sentido mais lato do termo, psicólogo, sociólogo, pastor de almas solitárias, cúmplice de dramas ocultos, advogado de defesa em julgamentos de salomónica transcendência. Isto para além dos horizontes de certo desespero, do cansaço e daquilo que um outro importante filme francês de 1967 de André Cayatte designava como “Les Risques du Métier” ou seja, “Os Ossos do Ofício”.

O professor: o único aliado possível

A dignidade fechada daquela mãe africana que mal saberá, mas não ousa, falar em francês, defende o seu filho com as razões mais concretas da sua experiência particular. Expulso da escola o filho caminha atrás dela, silenciosamente confuso na revolta impotente contra coisas de que apenas intuitivamente se apercebe. O nosso coração comprime-se porque sabemos que o professor que deixou atrás de si poderá ter sido, sem que ele o saiba, o único aliado possível que a sociedade lhe terá oferecido num combate que mal começa e que ninguém imagina como irá terminar. A riqueza expressiva desta notável realização cinematográfica está no vastíssimo leque de questões que levanta e no modo como nos deixa a pensar no assunto.
Infelizmente, como acontece com uma larga quantidade de obras exemplares, também este filme – apesar do seu enorme êxito – acabará por ser visto essencialmente por gente que necessitaria menos de vê-lo que os seus mais legítimos destinatários. Mais do que tudo será um erro considerá-lo um espectáculo “para professores”, dado que para estes – no que tem de mais pungentemente chocante – nada mostra para além daquilo que já abundantemente conhecem, na tempestuosa batalha que travam, dia a dia, por detrás das portas fechadas das aulas que dão aos filhos de toda a gente.

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“Aquele Querido Mês de Agosto”, presença de um povo e de paisagens que Portugal não conhece ou faz por esquecer

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Publicado no Diário de Coimbra de 30 de Setembro de 2008

.As imagens estavam a decorrer, as primeiras canções já tinham soado com a envolvente rítmico-erótica que lhe é típica e os desfiles de motards e procissões de fiéis em romaria não enganavam ninguém quanto ao pano de fundo da película. No entanto o realizador, com voz envergonhada, escusava-se perante o produtor (e porque é que tudo o que vem de Lisboa há-se ser sempre assim, fatalmente severo?) dizendo que o dinheiro não tinha sido enviado para nada do que estava combinado e que as imagens tinham começado a rodar assim mesmo. Assim mesmo, tirando partido do universo de casualidades de que é feita a esplêndida paisagem, o povo que nela habita e as ritualidades episódicas do Verão mais intenso que traz as visitas do costume envolvidas em dramas e sonhos sempre diferentes, sempre iguais.
Um conjunto mínimo de trabalhadores do cinema, largados aqui perto, mesmo na “nossa” Beira, aquela que se estende por montes e vales que apontamos com a mão aberta para os lados de onde o Sol nasce: Arganil, Góis, Coja, Serra do Açor e cercanias envolventes. A apreciação de um trabalho feito assim não pode ser sujeito ao mesmo rigor com que se apreciam filmes vindos da tal Lisboa dos subsidiados ou de mais longe, de Hollywood e dos seus estúdios que produzem tudo. Como obra de arte tem, contudo, uma responsabilidade equivalente e tem de justificar a atenção que se lhe dá. Não tendo ido ao cinema nestes últimos tempos, não hesitei em ir ver este isolado filme português que concorre com grandes êxitos do omnipresente cinema americano, e não me arrependi.
Toda uma sequência inicial de imagens não foge à categoria de reportagem entregue à espontânea liberdade de quem está ali para filmar o que vê à sua volta, o que resulta numa intensa viagem a zonas remotas de uma sociedade que realmente ignoramos, ou que fazemos intencionalmente por ignorar.
A marca de rudimentarismos atávicos está ali, a mal disfarçada pobreza e os casos limite de miséria mais evidente também, embrulhados no papel celofane do casticismo turístico de efeito cómico, por vezes, e trágico, não poucas. Apesar de não ter havido dinheiro para “castings” os personagens lá vão desfilando numa variedade de perfis que não deixa de ser apetitosamente merecedor de análise.

O músico do conjunto que canta um “playback” quase pasoliniano; o administrador de condomínios que fala das suas chatices de fato e gravata à varanda da paisagem, de costas viradas para a câmara e que acredita no milagre da Senhora das Dores; a senhora idosa que toma parte numa cena espontânea e não hesita em cumprimentar a própria equipa de filmagem; os cantadores no improviso ensaiado que denunciam crimes de envenenamento e incesto por entre gargalhadas e remoques; o pobre homem que se atira todos os carnavais da ponte abaixo e as letras pimba das canções que reeditam o mesmo drama dos antigos livros de cordel.
Um filme que contém todas estas coisas numa paisagem e com pessoas a que a maioria dos portugueses finos continua a virar as costas, não pode deixar de ter interesse. Ao fim ao cabo deve ter chegado algum dinheiro de Lisboa e o realizador lá mete as peripécias dum pretenso melodrama, com amor e ódio, sexo e incesto (o vulgar, em suma…) e quanto a mim fez mal.
O verdadeiro filme era outro, o da realidade íntima de um povo que parece fazer por esquecer aquilo que tem de tragicamente verdadeiro.

Este comentário será também publicado pelo jornal TREVIM, da Lousã, com o seguinte esclarecimento:

Quando o filme referido em título passou pelo Cine-Teatro da Lousã já o tinha visto há tempo, e a crónica que se segue já tinha sido publicada no Diário de Coimbra. A notoriedade que o mesmo granjeou a variadíssimos níveis, com prémios, menções honrosas e uma emocionada apreciação de muita gente da região e fora dela, justificará porventura a sua publicação no “Trevim”, de cujas páginas tenho estado ausente, com pena minha, devido à multiplicação de afazeres.

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Esta imagem é de gente que fez “Aquele Querido Mês de Agosto”. O segundo a contar da esquerda é o realizador Miguel Gomes e ao centro o jóvem Fábio Oliveira, natural de Oliveira do Hospital, protagonista do filme

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“Duas irmãs e um rei”, versão muito aligeirada de um tempo convulsivo e violento

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foi publicado no Diário de Coimbra em Março de 2008

Já perdi a conta às versões oferecidas do reinado de Henrique VIII e da sua dramática sequência matrimonial. Filmes, livros, documentários, artigos publicados aqui e ali referem as duas esposas que foram repudiadas, as outras duas decapitadas, a que morreu por doença e outra que acabou por sobreviver. Nalguns casos uma infinidades de factos históricos complicadíssimos apaga-se perante os ingredientes passionalmente tempestuosos desses seis casamentos reais. Isto para não falar do inumerável cortejo de amantes, parte dos privilégios banais dos todo-poderosos, cuja conduta estava (e continua a estar…) “naturalmente” isenta das normas aplicáveis às pessoas “vulgares”.
O filme actualmente em cartaz que retoma esse tema ficará, julgo eu, como um superlativo na tendência de isolar a narrativa de toda e qualquer “intromissão” de historicidade. O espectáculo é muito bonitinho e bem configurado, as roupagens são espampanantes e os dentes das actrizes luzidiamente brancos como nunca os houve no sec. XVI. A história é reduzida às peripécias de uma família dirigida por cavalheiros decididamente oportunistas, no intento de usarem as graças de uma filha julgada suficientemente capitosa para seduzir um partido rico, rei de Inglaterra nem mais nem menos, embora sendo este legitimamente casado com Catarina de Aragão, filha dos Reis Católicos. A coisa complica-se devido a certas ocorrências e acaba por ser uma irmã casada, virtuosa e cheia de bom coração, que acaba por ir parar à cama do rei, mau grado o esposo desconsolado de que nunca mais se ouviu falar.
A primeira irmã candidata ao real concubinato não desiste e evidencia uma tenacidade fora do comum e um não menos elaborado sentido estratégico. O rei, de cabeça perdida, não pensa noutra coisa senão em conquistar os seus favores íntimos. Isto sem a mais leve alusão aos debates teológico-diplomáticos, à destruição de monumentos, às sublevações esmagadas, às torturas e a tantas outras violências que atribuem ao reinado de Henrique VIII mais de setenta mil condenações à morte, entre os quais a de Sir Thomas More, “A Man for All Seasons”!…
A realização é anglo-americana e, no dizer de um crítico inglês, parece destinada a adolescentes americanos que não sabem sequer em que ponto do mapa fica a Inglaterra. A escolha das protagonistas não foi nada bem aceite na Grã-Bretanha porque nem são, nem parecem inglesas e ainda por cima falam com sotaque estrangeiro.
As melhores actuações referidas e que salvam a nota geralmente medíocre dos protagonistas, são as do pai e da mãe das irmãs Bolena. O papel reservado ao actor que desempenha a figura do rei é completamente insignificante e o elegante actor escolhido não tem nada do volumoso corpanzil de Henrique VIII.
Ao ver este filme vêm à memória uma enorme quantidade de realizações britânicas de excelentes filmes históricos que fazem saudades e, para um filme cujas atenções estão centradas em peripécias de alcova, à parte meia dúzia de alusões “soft core”, está apesar disso muito longe de ser um filme erótico.

“O Amor nos Tempos de Cólera”, convocatória sugestiva para uma leitura inadiável

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publicado no Diário de Coimbra de 03 de Abril de 2008

Num país cujos nativos se matam impulsivamente pelas estradas na mais irracional indisciplina rodoviária e em que o prato do dia é o de uma desconjuntada professora medindo-se às bulhas com uma raparigota em ambiente vagamente idêntico a um combate de box, tenho uma imensa vergonha de vir falar aqui na falta de respeito pelo silêncio que se observa em certas salas de cinema.
Pequenas coisas assim solicitam o desconforto da intervenção cívica de qualquer de nós porque a construção da disciplina não dispensa a atitude responsável dos cidadãos nem pode simplesmente instaurar-se por decreto.
Peço desculpa por ter roubado este espaço ao comentário deste filme de Mike Newell em que é tratado um dos sempre magníficos livros de Gabriel García Márquez, que não fica prejudicado na sua merecida notoriedade de escritor e nas virtudes que tem de bravíssimo cidadão do mundo.

Uma releitura rápida do livro destinada à elucidação deste comentário esclareceu um facto que não é frequente: a realização do filme segue à risca uma enorme quantidade de dados concretos que o livro nos apresenta.
Podemos não gostar daquele Florentino, podemos ficar desiludidos com aquela Fermina, cujo pai afinal não é gordo como no livro e algumas das inúmeras conquistas do protagonista têm mais do gélido perfil de modelos de passerelle do que da espessura confortante e realista de verdadeiras mulheres do caribe. Não chegando este filme ao nível de excelência das melhores adaptações de obras literárias para o cinema, longe de Franco Zefirelli e longíssimo de Visconti ou Pasolini, oferece não obstante na sua opulência cenográfica e na sensualidade pretensamente equatorial, magníficos pretextos quer para a leitura do livro quer para a visitação do filme, ao qual não faltam recursos afins da literatura tais como o amparo expressivo do narrador.
Excepção feita a algumas perspectivas paisagísticas de grande angular, é todo feito em cenários especialmente fabricados para o efeito, atingindo com isso uma opulência quase barroca, cuja autenticidade relativa ao tempo e aos lugares não é possível certificar de modo algum.
Muitos dos que já leram a obra acusarão fatalmente o afastamento que não está entre livro e filme, mas entre linguagens com vocabulários e virtudes de natureza diferente, motivo que não deve perturbar o nosso amor pelas coisas, mas complementá-lo da forma mais adequada.

Ler um livro de Gabo é uma experiência insubstituível e o tempo da leitura é muito mais antigo que o tempo do cinema, tecnologia ficcional que constitui um diferentíssimo processo de construção de imaginários. Além disso o cinema que nos chega de Hollywood evoluiu para ritmos narrativos forçadamente impressionantes e é apoiado por bandas sonoras duma violência desconfortável que chegam a reduzir a percepção consciente das ideias.
A edição portuguesa que possuo de “O Amor nos Tempos de Cólera”, além duma escusada quantidade de gralhas está, porém, enriquecida com um belíssimo comentário crítico de João de Melo, a não perder.

Já agora, um pequeno desafio: acompanhar a leitura da obra pela compaginação com o seu original em castelhano, deliciosa experiência que incondicionalmente se recomenda.

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“Haverá Sangue”, ou a solidão implacável do poder

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publicado no Diário de Coimbra de 2 de Março de 2008

A leitura dos roteiros de filmes em prospectos induz quase sempre em erro, apontando uma história que não é aquela que de facto vamos ver. A descoberta do que procuramos não é, neste caso, um caminho mais curto entre dois pontos e as versões fáceis nem são esclarecidas, nem compensadoras. Há também a mazela das críticas de serviço que, na dúvida, repetem umas coisas já marteladas noutros sítios, dizendo um bocado mal para evitar correr riscos. É por isso aconselhável procurar informação consistente a respeito das obras que frequentamos, nesta como noutras modalidades artísticas.
Num site enciclopédico de cinema é feita uma eloquente narrativa curricular de Paul Thomas Anderson, realizador de “Haverá Sangue”, designando-o como um verdadeiro cineasta, sendo os expoentes comparativos do melhor que inclui a história da 7ª arte. Os cinéfilos antigos, que já viam cinema muito antes dele ter nascido (1970) podem, pois, continuar a ir ao cinema com a esperança renovada de encontrar, já não digo prata ou petróleo, como Daniel Plainview, mas apreensões do mundo e dos homens que dignificam a arte que pratica.
Deve ter passado em branco a muita gente o facto de o empedernido e tenaz Daniel não passar de um explorador autónomo de oiro negro, a largos anos de distância de uma outra e muito mais implacável versão dos acontecimentos, ou seja, das enormes “multinational oil corporations”. Todos recordarão, até, o enternecedor momento inicial em que Daniel toma a seu cargo a protecção da criança órfã que virá a adoptar como filho. É a encarniçada acumulação de fortuna e de poder que o arrasta para o apodrecimento moral completo, para a misantropia e para a violência.
Já depois de ter visto o filme, foram atribuídos em Hollywood os célebres prémios cinematográficos, um dos quais tocou à interpretação de Daniel Day-Lewis, mais outro actor europeu a ser galardoado numa edição dos “óscares” em que apenas foram premiados actores não americanos. “Haverá Sangue”, despropositadamente considerado nalgumas notícias como derrotado, é um filme de enorme qualidade e uma estatueta para o actor principal não deixa de tocar também ao realizador, dada a superior qualidade da direcção de actores. Em detrimento do filme, o ter feito tábua rasa de grande parte do conteúdo político e sindicalista da obra de Upton Sinclair que lhe dá origem (“Oil”, de 1927), apenas aflorado no caso do trabalhador que morre por acidente de trabalho e na menção de outras óbvias malfeitorias de Daniel Plainview. A seu favor a contundente caricaturização do fundamentalismo religioso, que não deixa de ser um acto difícil na América dos nossos dias, conforme bem acentua a crítica internacional.
No “shopping” onde fui ver este filme a imensa maioria das películas exibidas é de origem norte americana. A atribuição dos “Óscares” da sua academia cada vez mais se torna, pela força de tantos acontecimentos, um episódio “cultural” abrangente por excelência, com enviados especiais a Hollywood e tudo.
Os portugueses que recitavam de cor “Lá vem a nau catrineta” e sabiam os reis de Portugal de enfiada, cada vez mais raros, vão ter de se mentalizar de que as mitologias de uso corrente, agora, são outras. Menos mal se dos USA nos forem chegando filmes de qualidade como este. O que não é sempre o caso, infelizmente.

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“Sedução, Conspiração” – ser ou não ser “thriller” erótico, eis a questão

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“Sedução, Conspiração” – ser ou não ser “thriller” erótico, eis a questão
Publicado no Diário de Coimbra no dia 15 Fevº 2008

NOTA: contrariamente ao habitual, e por qualquer acidente de utilização do ficheiro remetido ao DC por e.mail, o texto publicado continha alguns defeitos, nomeadamente a não inserção do último período, abaixo assinalado em bold.

No interesse imediato de quem vende filmes pode ser perfeitamente justificado classificar este “Sedução, Conspiração” como “thriller” ou “melodrama erótico de espionagem”.
O espectador avisado não pode, porém, abandonar-se a tais vulgarizações, devendo separar o trigo raro das realizações consistentes, do joio abundante das contrafacções.
Dizendo a abrir, com clareza, que se trata de um filme para maiores de dezoito anos, convém não perder de ideia aquilo que sempre repito: vulgares, moralmente inóspitas e até lamentavelmente violentas são certas fitas compradas ao quilo pelas televisões e assiduamente emitidas, em sinal aberto, com enormes intervalos de enfadonha publicidade.

Os países que perdem a memória não perdem apenas o passado, perdem também o futuro

“Sedução, Conspiração” é realizado por um cidadão chinês de Taywan, que assume neste filme a mais legítima memória histórica e política que interessa a todos os povos da Ásia, evocando um período de inenarrável e humilhante decadência da China, no contexto de um épico esforço de recuperação da sua dignidade e independência.
Ang Lee oferece-nos uma obra recheada de percepções de forte densidade, humanamente rica e ideologicamente muito estimulante. A escolha dos locais de filmagem, as composições cénicas e a riqueza dos detalhes de produção acrescentam-lhe, aliás, uma inquestionável credibilidade narrativa.
Realizadores e filmes como este fariam (e fazem) bastante falta a países aparentemente alheados do seu devir histórico, esquecendo aqui, falseando acolá.
Quanto ao panorama da crítica de cinema, mesmo a que desfruta da melhor visibilidade, é geralmente muito sumária e quase omissa no que toca a uma fundamentada contextualização político-histórica.

O teatro e o cinema… no cinema

São de salientar as referências ao teatro e ao cinema como linguagens universais de comunicação e sentimento. A peça de teatro como fórmula deliberada de intervenção e as citações de filmes de época com a protagonista em lágrimas perante uma cena com Ingrid Bergman a preto e branco são disso uma clara demonstração.
As cenas de sexo explícito transcendem em muito o seu teor exclusivamente erótico e reflectem uma parte importante das transformações de carácter que vão sofrendo os personagens ao longo do seu drama, face visível do íntimo segredo que os prende à sua humana contingência. Sem elas seria impossível compreender o enredo do filme e a trama de atitudes surpreendentes, quer da parte de Wong, aliás Wei Tang, quer da parte do senhor Yee, aliás Tony Leung − o Clark Gable de Hong Kong.
Um primeiro acto violento, próximo da tortura, desenvolve-se num complexo aprofundamento passional que se aproxima da sublimação no momento em que Wong canta para Yee, fantasiando-se como geisha, e culmina no acto incontido de traição que conduzirá à sua morte e de todos o grupo de revolucionários, para salvar o execrável agente da paixão.
A feição erótica do entrecho, que em língua portuguesa apenas li em análises muito sucintas, daria para alimentar uma outra história – uma boa história, aliás – em que a complexidade afectiva e a violência do desejo pudessem ser parte central.

O implacável poder elimina sempre as meninas Wong e protege cautelosamente os Senhores Yee

“Sedução, conspiração” é, em variados sentidos, um filme plural, muito rico de forma e de conteúdo. Termina, contrariamente ao que é hábito em muitas facilitadas visões da realidade, com penetrante sentido de responsabilidade estético-narrativa: os mais generosos militantes, aqueles que mergulharam na história sem objectivos de poder ou privilégio, tendo como única arma de combate o seu idealismo, são todos implacavelmente eliminados pelas máquinas políticas, à beira dum fosso de negrume e eternidade.
A forma como o realizador nos poupa ao momento exacto da execução sumária do generoso grupo de colegas de escola e antigos activistas de teatro é de uma preciosidade simbólica muito rara, e liberta o seu trabalho de toda e qualquer suspeição melodramática.
Se o sacrifício anónimo de tão imenso número de militantes reais como os da encantadora protagonista atingiu ou não os seus melhores desígnios, não cabe aqui avaliar.
Contudo, embora Ang Lee não deixe de evocar a amarga recordação de um tempo no qual brigadas de funcionários recolhiam em carroças os cadáveres dos esfomeados pelas ruas de Xangai, não tenhamos dúvidas que continua a haver lugar – na China como em tantos outros países – para algumas meninas Wong e, de certeza, para um bom numero de Senhores Yee.
“Sedução, Conspiração” – ser ou não ser “thriller” erótico, eis a questão
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“I am Legend”, mais um filme com título mal aplicado e pior traduzido, que diferença faz?…

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“I am Legend”, mais um filme com título mal aplicado e pior traduzido, que diferença faz?...
Publicado no Diário de Coimbra no dia 08 de Fevereiro de 2008

O poeta, crítico, ensaísta e homem de cinema Dan Schneider oferece-nos uma detalhada apreciação do livro de Richard Matheson, de 1954, cujo título é o mesmo do filme de Francis Lawrence actualmente a ser exibido em Coimbra.
Refere, entre muitas outras coisas, as duas obras cinematográficas de 1964 e de 1971 (“The Last Man on Earth” e “The Omega Man”) que também nele se basearam, sendo muito clara a sua preferência pela primeira, com interpretação do grande actor que foi Vincent Price.
Do livro diz-nos tratar-se de uma das melhores obras escritas a respeito da solidão humana, ultrapassando Robinson Crusoe de Daniel DeFoe, sendo igualmente uma desmontagem do mito dos vampiros em termos de modernidade.
Não hesita em colocá-lo a par de “Moby-Dick” e das “Aventuras de Huckleberry Finn”. Ultrapassa, a seu ver, as contingências de uma categorização na área da ficção científica ou da novela pós-apocalíptica, constituindo-se como alegoria subtil ao MacCarthismo e ao rígido conformismo dos anos 50, factos percursores das esterilizações político-culturais e ideológicas da contemporaneidade.
Conhecidos os rigores e a intolerância da América de Joseph MacCarthy e J. Edgar Hoover poderemos facilmente imaginar a coragem da obra de Matheson que, apesar de tudo, conseguiu impor-se como notabilíssimo autor de criações para o cinema, sendo um dos principais ficcionistas ao serviço da série de culto “Twilight Zone”.

Ignorar as evidências e aceitar qualquer patranha, eis outra forma de ser “feliz”

É muito difícil esclarecer neste breve espaço todo o conjunto de tropelias que Hollywood (um “bosque sagrado” como há poucos…) efectua sobre a obra original de Richard Matheson, bastando assinalar que a vira completamente de cabeça para baixo.
Nem o princípio, nem o meio, nem o fim, nem o cenário, nem a índole do protagonista e, “last but not the least”, nem o carácter dos implacáveis vagantes nocturnos têm nada a ver com os vampiros da sua obra.
Quanto às incongruências ou exageros ficcionais, ninguém parece ralar-se com isso. Numa Nova York apocalíptica e desértica há vários anos, Robert Neville continua abastecido de energia eléctrica, num apartamento de Washington Square onde continua a dispor de abundante água corrente até para dar banho a Samantha, sua cadela e companhia inseparável.
Não só no cinema, mas também na vida real, as pessoas continuam a acreditar piamente em tudo aquilo que querem, sem olhar às realidades mais objectivas, a toda a lógica evidente e até às suas mais elementares necessidades.
Será essa a receita para uma infalível e antidepressiva felicidade?…
No cinema não, quanto mais na vida.

Para salvar a humanidade, um tenente-coronel da US Army, pois claro

Como frequentemente acontece, é no desempenho dos artistas de renome (como Will Smith no papel de Robert Neville, neste caso) e dos especialistas em efeitos especiais que se baseia a enorme probabilidade de sucesso da grande “máquina dos sonhos”, já para não falar no imenso trabalho desenvolvido e nos milhões de dólares de destemido investimento.
Um dos segredos tem nome e chama-se CGI: “Computer Generated Imagery”, ou “grafismos computorizados a 3 dimensões” ou efeitos especiais por via digital, tanto faz. Da abstracção digital surge um leão, um tigre, um fantasma que mete medo como os diabos, ou trinta, ou trezentos, rugindo esqualidamente e trepando por arranha céus acima para matar o herói, entrincheirado e disposto a salvar a humanidade, já completamente aniquilada pela engenharia genética, entretanto muito na berra!…
A indústria do cinema vai alimentando bichas de frequentadores que, para além do mau hábito estereotipado das pipocas e da beberragem castanha, também de lá trazem reservas de curiosa fantasia, sonhos e combustível de ideias para consumo imediato e posterior.
Essa energia expande-se em todas as direcções, todos e cada dia que passa.

Se já estamos a caminho, saberemos para onde vamos?

Elevado número de crianças consome infinidade de imaginários de que muitas pessoas da minha geração não fazem a mínima ideia, por distracção ou desinteresse perante fenómenos que resolvem ignorar.
Uns evoluem não se sabe para onde, afundando-se os outros em saudosismos sem salvação possível.
Na fila à minha frente, sentavam-se duas crianças certamente com menos de treze anos de idade (barreira que nos EUA é acentuadamente recomendada aos pais e responsáveis para visionamento deste filme), que saíram da crispação do “thriller”, placidamente, para a animação consumista do colorido Mega Centro.
Que sementeira de emoções, que reserva de sonhos ou que recurso de energias da mente terá produzido naquelas cabeças de meninos um tão intenso desfilar de impressões?
Quem poderá adivinhar, se ninguém parece desejar saber?
Que normalidade serena será esta?
Para onde é o caminho, se parecemos saber todos tão bem para onde vamos?…

 

“Call Girl” de António-Pedro Vasconcelos, num cinema perto de si…

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Publicado no Diário de Coimbra de 22 de Janeiro de 2008

Envergonhado por uma ausência pela qual alguns devotados leitores me vão zurzindo a tranquila consciência de quem faz, não o que quer, mas tudo aquilo que pode, aqui estou desta vez para vos falar de cinema. Para um cinéfilo que não vai a todas e já não colecciona, como antigamente, os bilhetes e programas dos filmes que vai ver, as mais gratas referências que me ocorrem a respeito da obra de António-Pedro Vasconcelos são os seus magníficos “O lugar do morto” e “Jaime”.
Realizador com obra feita, embora em descontinuidade acentuada, queixa-se do mesmo que muitos se queixam: de não ter condições para prosseguir uma obra assídua e centrada naquilo que de melhor sabe fazer, ou seja: cinema de qualidade. O autor é também uma voz clara na denúncia de muitas artimanhas com que alguns habilidosos vão conseguindo “orientar-se” na confusa selva dos favores institucionais, o que não lhe deve facilitar a vida.

“Call Girl”, título equívoco para o sucesso

A expressão inglesa em si, que o Cambridge Dictionary me diz ser “a female prostitute who arranges her meetings with men over the telephone”, é traduzida pelos brasileiros com a frescura linguística que lhe é reconhecida, por “garota de programa”. Em português europeu (descendente da clássica latinidade), a tradução de “call girl” é… “call girl”. Dá mais pica, tem outro sabor, caraças!
O filme foi apresentado com certo sensacionalismo que me colocou de pé atrás. Se não fosse a persistência que alimento de ver filmes em português (oxalá esse princípio fosse moda), só o esquema temático que envolveu a sua divulgação me daria razões para ignorá-lo. Recordando contudo a riquíssima humanidade de “Jaime”, lá fui, esperançado como sempre, para um pedaço de tarde passado na “sala escura”. E não me arrependo nada.

A televisão portuguesa mostra obras medíocres porque quer, e ponto final

Pela minha parte, não tenho complexos nenhuns em afirmar que “Call Girl” é um belíssimo filme, de narrativa fluente, luzes e sonoridades expressivas, ritmos cuidados por um profissionalismo amadurecido e actualizado. Algumas vozes queixam-se da abundância das “gros mots”, copiosamente usadas pelos personagens e da exibição sem grandes peias da esplendorosa sensualidade de Soraia. Os críticos que tais fantasmas agitam devem usar umas asinhas brancas e andar muito distraídos. Qualquer adolescente novinha das escolas usa e abusa de tais expressões, na fruição plena duma novidade destravada pela contemporaneidade. Julgo até que, para elas, tais palavras já nem significam o que significaram, nem representam o que representaram para outras gerações. Alguns quilómetros mais a Norte, pertenceram sempre ao léxico mais vulgar e até castiçamente familiar.
Quanto ao erotismo, um dos condimentos evidentes em “Call Girl”, não vi nada que ultrapasse os atrevimentos desatados pela própria televisão e muito longe do que a Internet divulga escancaradamente. Tudo o que este filme nos oferece está dentro dum excelente sentido de medida ou seja, nada é mostrado que vá para além do que procura revelar. Aliás, surpreende o facto de ser apoiado por uma cadeia televisiva que produz obras de ficção sem os mínimos princípios de qualidade que abundam nesta realização de António-Pedro de Vasconcelos. Porque não coloca tal cadeia ao seu serviço uma tal estética ficcional, a mesma qualidade dos textos, a direcção de actores e um tão esclarecido sentido de mensagem?

Polícias assim, não sei se os há: mas apetece acreditar que existem!…

“Call Girl”, e só a repetição do título me causa um certo calafrio é, aliás, um magnífico exemplo de como a ficção pode transportar as contingências da realidade vivida e percebida, sem ser por impulsos traumatizantes ou pela receita da violência como aliciante mediático.
Uma palavra para o excelente desempenho dos actores, que demonstram um leque de recursos cheios de sentido criativo, tornando-se irresistível recordar a “criação” preciosa dum ministro “com sotaque”, como aqueles notáveis da toleima que andam a tentar inventar uma forma só sua de falar português, com “letgas tgocadas umas peuas outgas” para convencerem que são chiques. O filme procura demonstrar, como tantas obras do estilo policial, que há polícias humanizados, idealistas e de elevado teor de honestidade, com os quais o “poder-poder” se não dá bem. A última cena do filme, com dois homens cansados de guerra, saindo pela doce manhã para mais uma tarefa rude de perseguição ao crime, é empolgante e poética. Não sei se há muita gente assim, pronta a lutar com coragem pela verdade e pela rectidão. Mas conforta a alma do espectador pensar que sim.
Se esse instante for repartido por todos aqueles que foram ver o filme, daqui mando o meu abraço a António-Pedro, fazendo votos que continue a fazer filmes com polícias voluntariosos e apaixonados, mulheres bonitas que têm o seu ponto fraco e autarcas quase impossíveis, daqueles que acreditam que não se devem abater sobreiros!…

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O Cinema morreu, Viva o Cinema!…

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Publicado na REVISTA DE INFORMAÇÃO do Sindicato dos Bancários do Centro de Julho/Agosto de 2007

Numa Sexta-feira quente de Agosto a rtp2 presenteia a multidão dos cinéfilos com dois filmes da autoria de dois grandes realizadores recentemente falecidos. Os filmes estavam naturalmente disponíveis e, com pretexto na morte dos respeitáveis criadores, foram entregues aos (escassos?) espectadores a braços com a casualidade triste de não estarem algures, sentados em esplanadas defronte de bebidas loiras ou coloridas, mirando bronzes artificiais envolvidos por tecidos vaporosos.
A minha inclinação de criticar a política cultural das televisões portuguesas em geral e a sua política de difusão cinematográfica em particular − que são duas coisas que praticamente não existem − teve nestes últimos dias duas razões felizes para reservar silêncio: este serão de Sexta-feira e, há dias, a passagem dum extraordinário filme de 1992, de Michael Mann, tratando magnificamente uma das obras predilectas da minha estante: “The Last of the Mohicans” de James Fenimore Cooper.
Entre “Sarabande” de Ingmar Bergman e “Blow-up” de Michelangelo Antonioni (e são estes os dois filmes em referência) existe pelo menos o parentesco respeitável de serem obras de grande qualidade de dois realizadores notáveis, merecendo cada um dos filmes uma contemplação muito atenta e aprofundada, com ligações essenciais a toda a obra restante dos dois cineastas. Pela economia a que me força o pouco espaço disponível, refiro-me principalmente ao primeiro, devido à importância que ocupou o seu autor na geração de apreciadores de cinema de que faço parte.
Quando comecei a ver filmes de Ingmar Bergman a Suécia era um país longínquo, como hoje e sempre será, notabilizado pela ideia de progresso social, avanço cultural e liberdade. Para além das mensagens de ordem estética, da profundidade filosófica e até da densidade dramática que os seus filmes continham, havia neles uma atmosfera austera de reflexões enigmáticas, em branco e negro com meios tons riquíssimos, sob a luz misteriosa e ténue da Escandinávia.
O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, O Rosto, A Fonte da Virgem, Mónica e o Desejo, o Olho do Diabo, entre outros, foram filmes comentadíssimos e, melhor ou pior compreendidos, numa sociedade pouco preparada para a generosidade da circulação das ideias, lá foram construindo um universo de referências a que o decurso dos anos viria a acrescentar uma enorme lista da melhor qualidade: Lágrimas e Suspiros, Sonata de Outono, Fanny e Alexandre e Cenas da Vida Conjugal, para o qual remete a temática desta última obra, Sarabande, protagonizada, aliás, pelos mesmos actores.
Nos últimos filmes da já afirmada maturidade de Ingmar manifesta-se largamente a tendência reflexiva de um cinema de estrutura quase teatral, de grande austeridade, com poucas personagens, rico de longos monólogos ou diálogos de conteúdo muito denso, cuja aparente serenidade de vozes contidas não oculta a acentuada complexidade de conflitos e dramas íntimos.
A transitoriedade da vida, o absurdo da existência, a impossibilidade do amor, as disputas pessoais, a fractura entre as gerações, o dramatismo da morte e a insanável ausência dos que partiram são abordados sempre com grande sobriedade de meios a que o talento do cineasta acrescenta, no entanto, uma solidez estética inultrapassável. A lentidão narrativa de Bergman, a completa indiferença por entrechos rebuscados sem concessões à vulgaridade fazem-nos pensar numa outra cinematografia notável a que devemos alguns dos melhores momentos do cinema português de todos os tempos: a de Manuel de Oliveira. Não será necessário, como é evidente, tentar descortinar as semelhanças e diferenças entre obras igualmente notáveis de artistas muito distintos. Ideal seria, contudo, que a morte recente de grandes figuras da cinematografia europeia pudesse marcar, não o ocaso de uma forma riquíssima de expressão que já garantiu uma absoluta autonomia entre as artes, mas sim o reforço da sua capacidade de intervenção como instrumento de cultura e edificação da sensibilidade de todos os homens de hoje e de amanhã. Oxalá uma crescente disponibilidade do DVD e uma melhoria dos meios de fruição do cinema como obra de arte, possam vir a ser motivo de aprofundamento e expansão de obras não exclusivamente baseadas na violência, em frenéticos efeitos especiais e na vulgaridade de processos estilísticos.
Aqui, como noutras áreas de interesse por valores positivos, a atitude dos cidadãos tem uma virtude fundamental: ver obras de qualidade, fazer o seu comentário inteligente e exercitar a sua divulgação é do interesse não apenas dos cinéfilos e dos espectadores com memória do cinema, é uma ocupação que dá prazer e aproveita a toda a sociedade.

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O trabalho dos mais conhecidos e prestigiados realizadores de cinema depende sempre de grupos de trabalho de grande qualidade. Sven Nyqvist, director fotográfico, aqui à direita de Bergman, é um caso especialíssimo do qual dependeram grandes sucessos do mesmo. Granjeou notoriedade do mais alto nível, sendo-lhe atribuídos dois Óscares na sua especialidade.

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O Mistério da Estrada de Sintra, de Jorge Paixão da Costa

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Inaugurar esta coluna destinada a trazer assuntos da cultura de todos os dias para as páginas da revista do meu sindicato se não é uma atitude que prime pela novidade (sou sócio do SBC, pelas minhas contas, há mais de trinta e seis anos…) é para mim uma oportunidade deveras emocionante. Aliás, fica para uma próxima ocasião descrever o que foi a tentativa, recheada de episódios, de tentar colocar de pé um grupo de animação cultural no seio do nosso sindicato, no princípio dos anos 70, com circulares em papel de cor, ilustrações e projectos mirabolantes que fariam corar certas vereações de cultura nossas conhecidas!…
Com propósitos muito mais modestos que nessa altura e assumindo o perfil baixo de alguém que deseja apenas conversar com os colegas, fica assim dado o tiro de partida para estas linhas que prometem falar de tudo o que seu autor julgue ter interesse, seja nas artes, nas letras ou nos espectáculos.

O cinema visto no Teatro Dona Maria Pia, uma coisa de outro mundo

Os meus hábitos de apreciador de cinema tiveram o seu início num momento mágico para aquela modalidade de produção artística, altura em que ainda não havia televisão, numa pequena cidade de província onde nem havia cinema todos os dias, nem eu podia frequentá-lo as vezes que me apetecia. A sala que melhor conheci era uma preciosidade raríssima, uma das primeiras salas de concertos com palco à italiana construídas em Portugal: o Teatro Dona Maria Pia em Leiria, cuja destruição ímpia foi apenas mais um desses crimes que entre nós vulgarmente são cometidos sem que o chão se abra debaixo dos pés de quem o pisa, ou o céu vomite raios e coriscos de imprecação celeste.
As salas de cinema da actualidade estão para mim, por esse facto, feridas de uma debilidade ambiental clamorosa, que retiram à magia da “sala escura” todo o seu mistério essencial, carente de ritos e de requintes que o tempo não apaga na memória das afinidades electivas, impossíveis de compensar com pacotes de pipocas e bebidas castanho escuro (hábitos dispersivos da atenção cinematográfica, além de lamentavelmente antidietéticos!).

Eça de Queiroz, aluno da Universidade de Coimbra

Tudo isto a propósito do filme de Jorge Paixão da Costa “O mistério da Estrada de Sintra”, recentemente estreado, e que os colegas na nossa área sindical poderão ver – pelo menos – em Coimbra, Guarda Leiria e Viseu. No curto espaço de que disponho é impossível dizer seja o que for de consistente a respeito deste espectáculo, e muito menos acerca das figuras e situações literárias que lhe deram origem. Fica passado o testemunho entretanto de que é sempre uma belíssima oportunidade a não perder ir ver filmes portugueses.
O cinema nacional, na sua variada riqueza e apetrechamento tecnico-cultural encontra-se recheado de valores do mais alto gabarito e merece a atenção (ia a dizer o patrocínio) de todos nós.
Devia, aliás, constituir obrigação cívica ir ver filmes portugueses, tal como deveria dar desconto para o IRS ver teatro em Portugal, ler obras escritas por autores portugueses, e um longo cortejo de “etc.” para toda a cultura nossa, de agora e de antanho, de todos os géneros e de qualquer autoria.
Num país cujos Sábados, Domingos e serões televisivos se encontram juncados de fitas americanas da mais desavergonhada violência (ontem ao deitar lá foi mais outra, com a “sugestiva” bolinha ao canto), ir ver um filme português é uma atitude de higiene cultural magnífica, que abre para o debate de questões que a todos interessam e a todos dizem respeito. Recomendo pois este interessante espectáculo de cinema, bem como a leitura da célebre obra de Eça de Queiroz e de Ramalho Ortigão que lhe serve de tema (sublinhando-se aqui a raridade preciosa de uma tal parceria de criatividades, não isenta de acidentes e paixões, como nos revela o próprio filme!…).
Se sobrar coragem sugiro igualmente um mergulho decidido na temática da notável “Questão Coimbrã”, que rompeu nesta cidade em 1866, ano em que aqui se formou em Direito um rapaz de 21 anos chamado Eça de Queiroz.
Ninguém vai ficar indiferente à substância desses debates e obras literárias, de que “O Conde de Abranhos”, do mesmo Eça, representa um superlativo da mais intensa frescura de actualidade!…

Publicado na REVISTA DE INFORMAÇÃO do Sindicato dos Bancários do Centro de Maio/Junho de 2007