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Publicado no Diário de Coimbra no dia 08 de Fevereiro de 2008
O poeta, crítico, ensaísta e homem de cinema Dan Schneider oferece-nos uma detalhada apreciação do livro de Richard Matheson, de 1954, cujo título é o mesmo do filme de Francis Lawrence actualmente a ser exibido em Coimbra.
Refere, entre muitas outras coisas, as duas obras cinematográficas de 1964 e de 1971 (“The Last Man on Earth” e “The Omega Man”) que também nele se basearam, sendo muito clara a sua preferência pela primeira, com interpretação do grande actor que foi Vincent Price.
Do livro diz-nos tratar-se de uma das melhores obras escritas a respeito da solidão humana, ultrapassando Robinson Crusoe de Daniel DeFoe, sendo igualmente uma desmontagem do mito dos vampiros em termos de modernidade.
Não hesita em colocá-lo a par de “Moby-Dick” e das “Aventuras de Huckleberry Finn”. Ultrapassa, a seu ver, as contingências de uma categorização na área da ficção científica ou da novela pós-apocalíptica, constituindo-se como alegoria subtil ao MacCarthismo e ao rígido conformismo dos anos 50, factos percursores das esterilizações político-culturais e ideológicas da contemporaneidade.
Conhecidos os rigores e a intolerância da América de Joseph MacCarthy e J. Edgar Hoover poderemos facilmente imaginar a coragem da obra de Matheson que, apesar de tudo, conseguiu impor-se como notabilíssimo autor de criações para o cinema, sendo um dos principais ficcionistas ao serviço da série de culto “Twilight Zone”.
Ignorar as evidências e aceitar qualquer patranha, eis outra forma de ser “feliz”
É muito difícil esclarecer neste breve espaço todo o conjunto de tropelias que Hollywood (um “bosque sagrado” como há poucos…) efectua sobre a obra original de Richard Matheson, bastando assinalar que a vira completamente de cabeça para baixo.
Nem o princípio, nem o meio, nem o fim, nem o cenário, nem a índole do protagonista e, “last but not the least”, nem o carácter dos implacáveis vagantes nocturnos têm nada a ver com os vampiros da sua obra.
Quanto às incongruências ou exageros ficcionais, ninguém parece ralar-se com isso. Numa Nova York apocalíptica e desértica há vários anos, Robert Neville continua abastecido de energia eléctrica, num apartamento de Washington Square onde continua a dispor de abundante água corrente até para dar banho a Samantha, sua cadela e companhia inseparável.
Não só no cinema, mas também na vida real, as pessoas continuam a acreditar piamente em tudo aquilo que querem, sem olhar às realidades mais objectivas, a toda a lógica evidente e até às suas mais elementares necessidades.
Será essa a receita para uma infalível e antidepressiva felicidade?…
No cinema não, quanto mais na vida.
Para salvar a humanidade, um tenente-coronel da US Army, pois claro
Como frequentemente acontece, é no desempenho dos artistas de renome (como Will Smith no papel de Robert Neville, neste caso) e dos especialistas em efeitos especiais que se baseia a enorme probabilidade de sucesso da grande “máquina dos sonhos”, já para não falar no imenso trabalho desenvolvido e nos milhões de dólares de destemido investimento.
Um dos segredos tem nome e chama-se CGI: “Computer Generated Imagery”, ou “grafismos computorizados a 3 dimensões” ou efeitos especiais por via digital, tanto faz. Da abstracção digital surge um leão, um tigre, um fantasma que mete medo como os diabos, ou trinta, ou trezentos, rugindo esqualidamente e trepando por arranha céus acima para matar o herói, entrincheirado e disposto a salvar a humanidade, já completamente aniquilada pela engenharia genética, entretanto muito na berra!…
A indústria do cinema vai alimentando bichas de frequentadores que, para além do mau hábito estereotipado das pipocas e da beberragem castanha, também de lá trazem reservas de curiosa fantasia, sonhos e combustível de ideias para consumo imediato e posterior.
Essa energia expande-se em todas as direcções, todos e cada dia que passa.
Se já estamos a caminho, saberemos para onde vamos?
Elevado número de crianças consome infinidade de imaginários de que muitas pessoas da minha geração não fazem a mínima ideia, por distracção ou desinteresse perante fenómenos que resolvem ignorar.
Uns evoluem não se sabe para onde, afundando-se os outros em saudosismos sem salvação possível.
Na fila à minha frente, sentavam-se duas crianças certamente com menos de treze anos de idade (barreira que nos EUA é acentuadamente recomendada aos pais e responsáveis para visionamento deste filme), que saíram da crispação do “thriller”, placidamente, para a animação consumista do colorido Mega Centro.
Que sementeira de emoções, que reserva de sonhos ou que recurso de energias da mente terá produzido naquelas cabeças de meninos um tão intenso desfilar de impressões?
Quem poderá adivinhar, se ninguém parece desejar saber?
Que normalidade serena será esta?
Para onde é o caminho, se parecemos saber todos tão bem para onde vamos?…