Category Archives: coxia central – teatro

A importância do jornalismo cultural

Um acontecimento cultural ou artístico sem eco ou resposta inteligente é um não-acontecimento. Sempre tive o interesse e o gosto de olhar e considerar o trabalho dos outros. Primeiro para meu uso, seguidamente para dar testemunho de opinião e sensibilidade. Julgo que uma sociedade que não responde de forma critico-apreciativa às manifestações culturais e artísticas é uma sociedade pobre, no sentido mais cortante e inconveniente do termo. A inteligência crítica é uma energia produtora de evolução em todos os sentidos. A cultura que não estimula essa atitude, se não está morta, está entregue ao calculismo e à falta de generosidade.

Costa Brites

“Prometeu Agrilhoado” pelo grupo “El Aedo Teatro” de Cádis

“Prometeu Agrilhoado” pelo grupo “El Aedo Teatro” de Cádis

 

Foi publicado no Diário de Coimbra de hoje, 21 de Maio de 2010


Seja o Teatro Grego, seja alto o verbo com que nos fala e cheios de mágico encantamento todas as imagens e seres que coloca diante de nós, as suas principais virtudes – contudo – trazer-nos-hão sempre algo do nosso próprio drama, da nossa privada e pública disputa com os deuses, de como organizamos o nosso combate com o destino dando exemplo vivo de como estão organizadas as contradições do mundo.
Se possível, quando no Teatro se ouvir o ribombar do trovão, que ele seja como o alerta de uma enorme inquietação ou o eco dum entusiasmo jamais sentido antes.
Digo estas coisas porque foi assim que as senti durante todo o espectáculo oferecido por “El Aedo Teatro” de Cádis, com largo número de assistentes juvenis acompanhados pelos seus professores que teve lugar em Coimbra, no pátio do Museu Machado de Castro, em sessão promovida pelo XII Festival Internacional de Teatro de Tema Clássico.
“El Aedo Teatro”
é um grupo formado por jovens que se dedicam ao teatro clássico cujas realizações têm propósitos de interesse didáctico mas que, mais do que ler textos e colocá-los em cena, está vocacionado para pensar o teatro e organizá-lo como encontro de ideias e opções difíceis. Sentados por todo o lado, muitos dos jovens espectadores empunhavam os livrinhos com o texto clássico apropriadamente editado pelo Festival. Notei que estavam atentos e que procuravam um nexo de sequência entre aquilo que se passava no palco e que diziam os actores e o texto clássico, traduzido a preceito do grego por uma especialista na matéria.
Notei alguma perplexidade: a representação não seguia – nem à letra nem de perto – o discurso exacto contido no texto. Mas os questionamentos sobre a necessidade e a existência dos deuses, o fogo roubado a Zeus por Prometeu e oferecido clandestinamente aos homens com generosidade e sentido libertador, a própria liberdade e a sua questionável ou precária condição face aos tiranos ficavam ali vivos e palpitantes como toda a lógica da criação de Ésquilo, os seus personagens e o mesmo encadeamento cénico. A questão ver-se-ia esclarecida mais tarde, no fim da peça, quando a larga audiência de espectadores teve a oportunidade de dialogar com a totalidade do grupo, em pleno pátio do Museu.
Como se sugere acima a companhia faz uma leitura dinâmica de cada peça, utiliza obras de autores diversos sobre o mesmo assunto, e adapta aquilo que julga mais adequado para traduzir as ideias do próprio original em função do efeito dramático, da claridade da mensagem ou da sua eficácia em cena. Neste caso foi-nos dito que foram tratados textos de Eugénio d’Ors e Goethe, em obras dedicadas ao mesmo tema de Ésquilo.
“O que importa é sabermos o que queremos contar”, esclarece um dos actores.
“A liberdade não existe se o homem não a busca” parece ter sido o mais forte motivo condutor ao longo de várias cenas, ficando a pairar como um grito de angústia a denúncia terrível das vozes da negação enfrentadas em debate: “A liberdade não existe” e “Zeus é o único fogo”, ao que responde Prometeu, o encarcerado: “Zeus não existe se o homem dele não necessita, Zeus não escuta, só castiga”.
Na empolgante cena final Prometeu falou, aos homens assustados, de uma nova vida, garantindo que a liberdade existe e que devem procurá-la numa nova dignidade, em futuro que se fará presente. Um bom final embalado pela terra que treme e pelo ribombar do trovão, eco das convictas palavras de Prometeu que, embora perseguido e agrilhoado, não parece arrependido de ter oferecido aos homens o fogo, símbolo da sua libertação e pai de todas as artes.
O XII Festival Internacional de Tema Clássico assim prossegue, sugerindo-se a todos os interessados que procurem seguir a sua realização, que tem todo o interesse.

Nota sobre a ilustração:

Kylix lacónica con Prometeo y Atlas
(Museo Gregoriano Etrusco) Cerveteri. 560-550 a.C. Cerámica figurada. Alto 14 cm – diám. 20,2 cm;


Entre las demás producciones de cerámica griega figurada, destaca la cerámica lacónica, testimoniada por una famosa kylix (copa) fabricada en Esparta poco antes de mediados del s. VI a.C. y atribuida al Pintor de Arquesilas II. En ella se puede admirar una de las primeras representaciones del mito de Atlante que hayan llegado hasta nosotros. Atlas, con barba, dobla las rodillas debido al peso de la masa que tienen que sostener sobre sus hombros, al haber sido condenado por Zeus a mantener separado el cielo de la tierra. Además de su castigo se añade el de un segundo Titán, su hermano Prometeo, culpable de haber dado el fuego a la humanidad, atado a un poste y sometido al suplicio perpetuo del águila que le roe el hígado, el cual cada noche vuelve a crecer para ser nuevamente comido. La asociación de ambos episodios ha hecho suponer que este pintor se haya inspirado directamente en la Teogonía de Hesíodo, en la que los dos Titanes se describen uno después del otro.

As telenovelas, o plano fechado e o campo-contracampo

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Esta crónica foi publicada este mês no Diário de Coimbra

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Já falei aqui a respeito da insanidade ficcional da telenovela, das disputas e da má educação que é sua vocação propagandear.
Um dia destes, na paz do lar, fui de novo surpreendido pela cena de uma das telenovelas portuguesas mais em evidência na actualidade: uma mãe e uma filha travavam um combate do mais aceso ódio em que o sorriso nervoso e crispado de uma e as lágrimas da outra eram a fronteira mais longínqua de um país escarninho de danação e amargura.
Depois disso já houve novos “rounds” desse combate de azedumes recalcados como se tal exercício necessitasse de treino ou fosse indispensável renovar em nós a lástima da aversão sem tréguas.
Cabe hoje falar aqui a respeito de alguns dos esquemas técnicos mais frequentes na confecção desse produto televisivo que é, antes de mais, uma indústria que movimenta recursos elevados e custos de produção caríssimos, o que demonstra o seu interesse na fixação de públicos dóceis, receptivos ao contexto publicitário abundantemente envolvente.
A colheita de imagens de uma telenovela é geralmente feita em cenários integralmente construídos para o efeito, com som directo, seguida de uma técnica de montagem que obedece a regras muito estritas, caracterizadas por uma trivialidade estética facilmente observável.

Termos chave são o “plano fechado” e a técnica do “campo-contracampo”

Quanto ao “plano fechado” basta dizer que ele é, como metáfora, a própria essência do processo narrativo da telenovela por insistir em concentrar a imagem num ângulo de visão sem espaço livre para a libertação do olhar, da curiosidade e da imaginação.
Para além de algumas imagens de abertura e de fecho que nos dão a conhecer o ambiente em que se desenrolam os episódios (com muito poucos exteriores e escassas cenas de acção) os diálogos (geralmente muito despojados, sintéticos e até rudimentares) são filmados por duas câmaras que revelam alternadamente o rosto de cada um dos intervenientes, não permitindo muito mais do que a articulação da fala, sem grande espaço concedido para a caracterização dramática. É o “campo-contracampo”.
Numa telenovela o vazio do discurso não convida a pensar e o realizador brinca com o espectador dando-lhe continuadamente pistas duvidosas para que com isso alimente a única curiosidade possível: saber quem foi o culpado da trama de confusos equívocos e esperar que tudo se resolva da forma mais previsível.
Os comportamentos são pouco edificantes, a inveja e a disputa não obedecem a regras e o desmascarar dos criminosos e dos oportunistas é quase tão difícil como na vida real, o que leva certos espíritos complacentes a julgar que a telenovela é “realista” porque se limita a reproduzir aquilo que se passa na realidade.
O encadeamento das cenas processa-se sem pausas ou acentuações que concedam ao espectador a faculdade de olhar e o privilégio de ver, pensando naquilo que está a acontecer, distanciando-se o suficiente para formular juízos críticos.
Na leitura de um livro podemos fazer uma pausa, voltar atrás para ler de novo e pensar no assunto. Na telenovela pode perder-se um episódio inteiro, os dados estão lançados desde o início e não há espaço algum para o imprevisto, o fenomenal e a excepção edificante.
Se houver duas telenovelas simultâneas em dois canais diferentes, temos uma vantagem: podem dar-se dez minutos a cada uma alternadamente, e nada se perderá com isso. Ou dormir uma soneca lá pelo meio. Deixa de ver-se uma cena de ódio, ganha-se uma de inveja ou de má criação e ao fim, casam todos na mesma uns com os outros.

As telenovelas, companheiras das tardes sem fim e das vésperas do cansaço

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Sónia Braga

Quando no dia 16 de Maio de 1977 foi apresentado o primeiro episódio da telenovela “Gabriela Cravo e Canela” os portugueses estavam bem longe de poder imaginar que esse iria ser, durante muitos anos, o horizonte mais duradouro dos seus passatempos televisivos, companhia de almas solitárias por tardes sem fim e testemunha das fadigas do fim do dia de tanta gente sequiosa de um momento diferente de escape, evasão e alguma curiosidade insatisfeita.
Das crianças aos adolescentes, das donas de casa aos elementos mais velhos das famílias, pessoas enfim de todas as qualidades e feitios carentes de melhor alternativa de utilização do tempo vazio antes do sono, todos procuram na fonte de águas pouco minerais dos episódios das telenovelas matar alguma sede de vidas novas e diferentes, noutro cenário e noutras companhias.
Que coisas levam tais pessoas consigo para o sono reparador? Que coisas aprendem esses jovens? Que imagem da vida compõem? Que sonhos sonham? Que desejos acalentam?
Alguma coisa fica, certamente, nos espíritos de quem vê e ouve. A linguagem, por exemplo. Mas não só isso. Há nas telenovelas uma escola de atitudes, uma ideologia para a disputa do quotidiano, uma lógica de moralidades e uma justificação de necessidades que não podem deixar de imprimir as suas marcas.
Os nossos avós antigos aprenderam a construir seus usos no rigor da família, na austeridade do trabalho e no temor das igrejas. Algumas gerações mais recentes conseguiram acesso a um universo mais aberto de horizontes mais largos, em locais de trabalho, escolas e instituições de todo o tipo.
Hoje é também o mercado de consumos que dita as suas leis e conforma as consciências. E o mercado das imagens, aquele que nos entra pela casa dentro com a nossa complacência e até um indisfarçável entusiasmo consumista. Não é a telenovela que vem até às pessoas. As pessoas é que lhe abrem as portas aceitando o universo de valores que lhes propõe.
Será bom que tenhamos consciência desses factos e que aprendamos a organizar em torno de nós próprios um círculo de defesas naturais. Ideal será estabelecer um processo de conviver com realidades mais positivas, se possível com gente dentro e valores humanos à mistura. Entre-se no site de uma das telenovelas portuguesas mais “badaladas” dos últimos tempos e consulte-se uma sinopse do enredo:
“…fulano e beltrano são dois irmãos gémeos, ambiciosos e sem escrúpulos que competiram entre si durante toda a vida. Em miúdos disputavam os brinquedos, em adolescentes as namoradas e em adultos a própria vida numa luta pela ascensão social”.
Melhor mesmo do que isto só o critério abertamente enunciado que sustenta a historieta:
“Uma novela é tão boa quanto o seu vilão. Nesta telenovela o vilão é servido em dose dupla: fulano e beltrano são dois irmãos gémeos. Mas esta não é a história clássica do gémeo bom versus o gémeo mau. Ambos são a maldade em pessoa. Nestes gémeos o laço que os une é o ódio…”
Um universo ficcional destes não o reservo nem para o meu pior inimigo.
Quantos milhões de olhos e quantas cabeças predispostas terá inundado de curiosidade absorta? Em quantas consciências terá ficado a morar essa indesejável galeria de fantasmas?
Eu não a vi. E o leitor (ou leitora), lembra-se da história?

Reflexão em torno do monólogo “coisa pública”

Reflexão em torno do monólogo “coisa pública”

Custódia Gallego em “Vulcão” de Abel Neves.

Diário de Coimbra de 9 de Março de 2010

A especialização do teatro conduz a diversíssimas variantes que fazem parte integrante da sua imensa riqueza. Algumas chegam a constituir modalidades suficientemente caracterizadas, com públicos certos e determinados para serem vistos em lugares próprios e dependem da riqueza de patrimónios colectivos sedimentados, consoante o caso, ao longo de gerações. Entre elas as que se estruturam em torno da ideia do monólogo.
Tudo de novo, pois, sob o sol, tendo este tipo de aberturas sempre um interesse muito legítimo, no caso da sociedade portuguesa, face à consolidação de públicos e à valorização que este sector da cultura tem vindo a registar, com a vantagem acrescida de afirmar uma saudável tendência descentralizante. A XII semana cultural da Universidade de Coimbra integrou, no âmbito do teatro, um conjunto de realizações sob o tema do monólogo “coisa pública”, que agregou, além de vários acontecimentos de reflexão e estudo, um conjunto de espectáculos de teatro concebidos sob o signo dessa modalidade específica. Os acontecimentos mais especializados desta iniciativa foram – como é habitual – dirigidos a sectores estrategicamente situados, sendo de acesso mais geral os que foram levados à cena no Teatro Académico de Gil Vicente e no Teatro da Cerca de São Bernardo. Poucas pessoas terão podido acompanhar todos os espectáculos do ciclo, tendo-me tocado a mim ver, no TCSB, dois dos cinco que foram apresentados: “Vulcão” de Abel Neves, com Custódia Gallego (encenação de João Grosso, ACE Teatro do Bulhão) e “Calendário da Pedra”, texto, encenação e interpretação da brasileira Denise Stoklos.
Ambos os espectáculos são notabilíssimos devido desde logo à presença de artistas que – sozinhas em palco – têm a capacidade hercúlea de concentrar numa só voz e num só corpo todo os conteúdos expressivos de uma construção narrativa, por mais específica que ela seja.
Custódia Gallego faz um trabalho mais próximo do teatro habitual, com uma história com diversos figurantes, um drama, em suma com suporte essencial no texto de que decorre e Denise Stoklos assume a pose de um “performer essencial” mais centrada na mímica, na coreografia, no exercício vocal, viajando em torno de si própria e do íntimo colectivo.
“…A estratégia aqui do performer é não ter estratégia. Diferente do ficcionista que segue uma linha pré-desenhada, ele busca o tónus da cena no seu ego, no seu âmago. Melhor dizendo o seu próprio tónus é a cena…” afirma Denise no texto em que apresenta, mais que a sua actuação particular, o contexto programático da sua forma de estar em palco.
Sem poder trazer aqui uma análise detalhada de ambos os espectáculos, de elevada qualidade e muitíssimo diferentes na sua génese e desenvolvimento cénico, terei que afirmar que ambos dependem de uma coisa que me parece um pouco contingente no teatro como veículo de transmissão de ideias, sentimentos e percepções do mundo: a vitalidade essencial e a resistência psíquica e física dos intérpretes respectivos, para além do seu talento genuíno. Apetece-me dizer que o espectador deixa de poder ver o tema, de atender apenas à palavra e ao gesto como produtores de uma certa ideia das pessoas e dos sentimentos que as animam, para passar a assistir a uma espécie de competição extremada do artista consigo mesmo. O espectáculo, de construção dramática, passa de certo modo à categoria de ultrapassagem emocional na qual o espectador sai esmagadoramente vencido pela extenuante energia posta em marcha pela actuação do solista.
Devastado pelo talento evidente, o espectador rende-se. Mas será que fica convencido ao nível do exercício quotidiano do pensamento sensível?
Será que da imensa energia dispendida e do elenco de recursos histriónicos, da ciência do dizer e da capacidade da construção gestual sobra alguma coisa para seu próprio consumo íntimo?
Esperemos que sim, dada a dinâmica de pluralismos de que o teatro é capaz e do merecido incremento de interesse que tem vindo a registar entre nós.

Reflexão em torno do monólogo “coisa pública”
Denise Stoklos, “performer essencial” de “Calendário da Pedra”
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O “Single Singers Bar” do Teatrão, o tal espectáculo que seria impossível noutros tempos

O “Single Singers Bar” do Teatrão, o tal espectáculo que seria impossível noutros tempos

Na fotografia de Paulo Abrantes: Margarida Antunes de Sousa, João Castro Gomes, Isabel Craveiro, Nuno Carvalho e Inês Mourão


O culto da noite e as estratégias do prazer têm séculos de tradições e correspondem a necessidades que não desaguam necessariamente no desconcerto do deboche nem na alienação licenciosa. Infelizmente, ousarão sussurrar algumas almas cinzentas e solitárias, a cuja porta bate com certa teimosia a fria mão de desencanto e o desconforto do coração incompreendido. A “má vida”, assim se tem chamado ao apelo secreto dos serões inundados por uma dose de licença e de sensualidade vital, na suspeita de que tudo aquilo que pressupõe se encontra fatalmente ligado ao conceito de “pecado”.
As propostas explícitas que nos trouxe o espectáculo para piano e canto apresentado pelo Teatrão, na Oficina Municipal do Teatro, o “Single Singers Bar”, se fosse apresentado “no meu tempo” neste mesmíssimo país e cidade em que nos encontramos, seria um caso de desaforo, de escândalo e constituiria por isso mesmo, um autêntico “caso de polícia”!…
Isto para entendermos o quanto mudou a sociedade em que vivemos no decurso de algumas décadas e para que se compreenda que as máscaras que entretanto caíram não escondiam monstros nem maldições fatais mais do que todos aqueles que a liberdade e o pluralismo conseguem resolver na complexidade de uma sociedade em permanente mutação.
A mistura de um bar/tabacaria com a de cabaret/teatro produz um “cocktail” do mais saboroso efeito, agora nestes tempos que – não nos iludamos – não são de licenciosidade mais desenfreada do que a de outros de antes por razões que nem cabem aqui, nem vale a pena explicar.
As inúmeras programações que têm sido apresentadas neste espaço (a tabacaria do OMT, um café/teatro) acusam essa vocação específica de associar o clima de convívio à fruição do teatro ao som da música e às artes da declamação e do canto.
Têm variadíssimos antecedentes entre os quais recordo como particularmente interessante “O Cabaret da Santa”, de Setembro de 2008, do brasileiro Reinaldo Maia e do português Jorge Louraço, também encenada – como o “Single Singers Bar” – por Dagoberto Feliz e que resultou de uma frutuosa parceria com o grupo Folias d’Arte de S. Paulo. Saliente-se que Dagoberto Feliz é fundador, actor e director musical da companhia paulista.
Neste espectáculo de agora, sem desprimor para nenhum dos outros intervenientes que com valor desempenharam os seus respectivos papéis, seja-me permitido salientar os dois belíssimos quadros do “casamento” e da “Lorelei” (nome estereotípico de mulher comum que também evoca o das ninfas das águas do romântico rio Reno…) protagonizados por Inês Mourão. O suporte pianístico fornecido por Jorge Marinheiro teve a máxima dignidade artística e o naipe de actores/cantores cumpriu de forma sugestiva e convincente o projecto que, mais do que um simples acto de teatro, configura um “espectáculo total ao vivo”, tão raro porque tão difícil.
Há que acrescentar que este trabalho se pode considerar um acto de coragem por todas estas razões e também pelo facto acima vagamente sugerido de constituir um desafio relativo aos fantasmas e temores tão frequentemente dissimulados por detrás de uma aparente e concertada moderação de gestos e de atitudes que pinta de cinzento muito do nosso quotidiano, cansado de tanta briga inútil e de tanta frustração envergonhada.

O “Single Singers Bar” do Teatrão, o tal espectáculo que seria impossível noutros tempos


Ficha Técnica e Artística:
Encenação: Dagoberto Feliz
Elenco:

Inês Mourão,
Isabel Craveiro,
João Castro Gomes,
Jorge Marinheiro (Pianista),
Margarida Sousa e
Nuno Carvalho

Figurinos e Adereços: O Teatrão
Desenho de luz: Alexandre Mestre
Montagem e Operação de luz: Alexandre Mestre, João Castro Gomes, Jonathan Azevedo e Rui Capitão
Cabeleireiro: Carlos Gago (Ilídio Design)
Fotografia: Paulo Abrantes
Grafismo: Sofia Frazão
Costureira: Fernanda Tomás
Direcção de Produção: Inês Mourão
Produção Executiva: Isabel Craveiro, Margarida Sousa e Nuno Carvalho
Direcção Técnica: João Castro Gomes
Produção: O Teatrão 2010

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“Saloon yé-yé” pelo Teatro Regional da Serra do Montemuro no TCSB, em Coimbra

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Publicado hoje, 12 de Fevereiro de 2010 no Diário de Coimbra


O Teatro Regional da Serra do Montemuro tem um sugestivo e bem organizado site na Internet que nos transmite, desde o texto de abertura “Convívios Comunitários”, a entusiástica sensação de que é perfeitamente possível fazer do teatro uma plataforma sem par de convívio e de abrangência cultural, com sede – imagine-se – na pequena aldeia de Campo Benfeito.
Em mais uma apresentação levada a efeito no Teatro da Cerca de São Bernardo, onde tem sede activa A Escola da Noite, esteve de visita aquele agrupamento de teatro com o seu castiço “Saloon yé-yé”, ou “paraíso à espera”.
Catt Pingado, Kid Mocas, Débora Boy, Xerife Olívia, Susy Carioca, Teclas Man, Lulu Quem-me-dera, Speedy Meu, FredySnif e Lucas Rosinha, além de Cavaca, o cavalo com cornos de vaca, são designações desopilantes de uma encenação de Graeme Pulleyn, com um soberbo texto de Abel Neves, companheiro e amigo d’A Escola da Noite, onde os seus textos já estiveram na origem de três espectáculos:
“Além as estrelas são a nossa casa”, “Além do Infinito” e “Este Oeste Éden”, apresentado no ano passado no TCSB.
Tive o grato prazer de assistir ao “Saloon yé-yé” sentado muito perto duma criança acompanhada de seu pai (belíssima acção de amor pela renovação da cultura) e ir apreciando uma variedade de atitudes, perguntas, interjeições e estados de ânimo que valeram, além do mais, para dar credenciais à vitalidade contagiante do Teatro neste espectáculo (de sala literalmente cheia, diga-se de passagem).
A peça, cheia de cor, movimento, música e “mistérios” dignos de uma activa mescla de cinema, banda desenhada e “music-hall”, tem um texto cuja construção e desenvolvimento potencia o espectáculo muito para além da frivolidade aparente do menu acima descrito.
Num país onde as famílias adormecem atormentadas pela dramaturgia inconcreta de telenovelas que são autênticos “workshops” para a malvadez e a má criação, com direcções de actores mais que questionáveis e textos para mentes conformadas à mediocridade, impressiona ver assim um trabalho bem feito onde a palavra toma o lugar que lhe compete, trazendo à tona temas sérios e concretos da vida real, pleno de plasticidade semântica, riqueza de intertexto e neologismos cheios de graça e intenção irónica.
Nesse sentido o espectáculo, servido por um excelente grupo de actores plenos de qualidade e polivalência expressiva, permite uma diversidade de leituras verdadeiramente intergeracional, em que as eventuais cenas de “violência” são sublimadas por um adequado processo de “câmara lenta” em fundo de música condizente, que enche de gáudio os mais jovens espectadores sem descomprometer os mais maduros pela verdade escondida por detrás do expediente cénico.


O Teatro Regional da Serra do Montemuro tem também uma clara vocação para intervir na área educacional e formativa e um programa de digressões que levam longe a sua actividade. Parabéns e continuação do bom trabalho!

FICHA ARTÍSTICA
Texto: Abel Neves
Encenação: Graeme Pulleyn
Direcção Musical: Carlos Clara Gomes
Cenografia e Figurinos: Ana Brum
Construção de Cenários: Carlos Cal
Direcção Técnica: Paulo Duarte
Design Gráfico: Zé Tavares
Direcção de Produção: Paula Teixeira
Assistência de Produção. Susana Duarte

Interpretação
Abel Duarte,
Eduardo Correia,
Paulo Duarte,
Daniela Vieitas,
Neusa Fangueiro.

O trigésimo aniversário da Cooperativa Bonifrates, de Coimbra, com a peça “Estilhaços”

Foi publicado hoje, dia 5 de Fevereiro de 2010 no Diário de Coimbra


O aniversário da Cooperativa de Teatro Bonifrates não teve lugar ao fundo daquele húmido corredor de garagens onde humildemente vamos ver os belíssimos espectáculos que desenvolve e apresenta. Foi acolhida, sim, no Cine-Teatro de Condeixa, numa magnífica infra-estrutura cultural onde todos desejariam se centrasse uma mais continuada actividade da sua inerente vocação de palco de artes, actualizadas algumas depreciações originadas pela própria descontinuidade no seu uso.
A peça “Estilhaços” (aquilo que resulta de qualquer coisa que ameaça por ter explodido sem apelo) já foi vista antes e apreciada na rigorosa metodologia (pode dizer-se científica) com que foi elaborada, no contexto que ela própria descreve: os horizontes fechados da violência doméstica, os verdadeiros protagonistas e gente ligada às instituições especializadas no seu tratamento sociológico e humanitário.
O texto da peça adopta uma versão literária sem diálogo interactivo entre os personagens, apresentando-os, ainda por cima, predominantemente confinados ao casulo de uma solidão muito menos que simbólica: uma espécie de gaiola ou célula cujo significado metafórico cruza de modo eficaz o sentido de um guichet de repartição, de toca de um esconderijo ou de célula de uma prisão.
É uma terrível “invenção cénica” que ampara um dinamismo de mutações permanentes na geometria do espectáculo e de que raramente se liberta a maior parte dos intervenientes.
Alguns deles “parecem” mais soltos, numa pose de intrusos aparentemente livres da lógica imediata do espectáculo. Puro engano, essa diferenciação resulta simplesmente de um artifício perfeitamente conseguido para diferir no tempo ou no espaço a “continuidade” lógica de planos narrativos.
No encadeado de monólogos intimamente trágicos a que se entregam todas e cada uma das “almas aprisionadas” existe, contudo, um intervalo de tolerante espírito de sacrifício, uma necessidade de justificar o injustificável e a ingénua alusão aos instantes fugazes de paz ou felicidade. O que não nos liberta a todos nós, actores e espectadores, é o estampido final que nos remete subitamente para o plano irrecusável da responsabilidade cívica e da noção inequívoca das realidades.
“Estilhaços” não é seguramente um espectáculo vocacionado para substituir um serão de sofá e telenovela. Ele é, mais propriamente dito, uma espécie de anti-telenovela, pelo rigor inflexível com que nos obriga a ver a sociedade despida dos subterfúgios duma aparente facilidade em espreitar pelo buraco da fechadura do sofrimento alheio, longe de todos os cenários da sociedade consumista do sucesso e dos finais felizes.
O único final feliz que pode descortinar-se em “Estilhaços” é olhar de frente a verdade completa, sem bónus de concorrente vencido ou prémio de consolação de participante ingénuo.
A continuidade da apresentação da peça está felizmente garantida por um protocolo estabelecido com a CIG (Comissão para a Igualdade de Género). Parabéns a ambas as instituições.

A fuga de Wang-fô no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra

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Publicado no Diário de Coimbra de hoje, 29 de Janeiro de 2010

Enquanto nós, corpulentos e laboriosos caucasianos ensaiávamos a nossa titânica descoberta científica do mundo, outros grupos de povos há muito tempo voavam alto na senda de todas as possíveis aventuras do Homem, inventando tantas coisas que não cabe aqui serem sequer resumidas.
O TCSB teve a feliz ideia de nos vir mostrar um desses outros exemplares da raça humana, de tez lunar e estatura frágil, que nos conta a história felizmente recuperada das águas tempestuosas da distância intercontinental por Marguerite Yourcenar, escritora de um dos maiores livros da minha vida: “As Memórias de Adriano”.
Joana Pupo
(e a respectiva talentosa equipa de trabalho) dá corpo ao subtil contador de histórias que trata com gestos de vaporosa imaterialidade a enorme saga de um pintor e de seu leal ajudante e dedicado companheiro, através de aventuras que eu gostava de ter vivido, por transportar também comigo esse sonho sem nome que é o de dar vida a telas pintadas com poderes milagrosos e irradiante lucidez. Com secretas pretensões também eu gostaria de ter os meus trabalhos coleccionados pelos trágicos imperadores do Reino dos Han!…
O espectáculo é de uma sumptuosa simplicidade e resolve o problema central da arte de todos os tempos: fazer o máximo com o mínimo. Desenrola-se envolvido pela cor predilecta da liberdade do corpo enquanto dorme e é no seio desse negro que Joana o povoa de uma narrativa que exige esforço de atenção, é certo, para todos aqueles que estão habituados a querer elevar-se da insignificância da vulgaridade.
Não vou contar aqui a história adaptada nas suas simples complexidades nem vou aborrecer o leitor apressado que lerá (?) algures esta minha confissão de espanto: Houve na China um pintor chamado Wang-fô que ressuscitou o seu discípulo Ling do lenço vermelho da decapitação; o tal companheiro que o ajudava a transportar por vales e caminhos duas caixas vazias de bagagem, mas que levavam dentro de si tudo aquilo que queira a tenacidade imaginária dos privilegiados espectadores carentes de sortilégios, tal como aqueles que vi aquela noite na sala do TCSB.

Acabo com duas auspiciosas anotações:

Primeiro, a de que a verdadeira história de “Comment Wang fô fut sauvé” tal como a versão simplificada (?) de Marguerite Yourcenar, estão ao alcance de todos na internet, e bem assim uma infinidade de preciosos acompanhamentos pedagógico-literários da obra em questão.
A história original é – em extensão e complexidades de enredo – diferentíssima da excelente versão de Marguerite.
Segundo, foi um prazer sentar-me para ver este espectáculo numa sala povoada por pessoas de todas as idades, a maiora das quais podiam ser meus filhos ou netos.

ficha técnica

ideia e interpretação Joana Pupo colaboração criativa Tiago Hespanha apoio contador de histórias Cristina Cartaxo apoio interpretação e figurino Inês de Carvalho apoio movimento Ana Borges apoio técnico Mafalda Soares de Oliveira design gráfico Joana Pinho Neves fotografia Iuri Albarran operação de luz e som Rui Capitão assistente produção Carla Carreira produção Vagão, Assoc. Para Viagens Culturais e Artísticas

 

Dom Quixote (de Coimbra) pelo Teatrão, na Oficina Municipal do Teatro

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Publicado no Diário de Coimbra de 31 de Dezembro de 2009

Quando vi o anúncio do espectáculo do Teatrão, senti um ligeiro arrepio devido à indicação de que se trataria de um “Dom Quixote”, sim, mas “de Coimbra”.
A seriedade do trabalho que a companhia costuma apresentar dava-me as melhores garantias, mas não pude evitar aquele sentimento de temor perante uma aventurosa efabulação romântico-evocativa das virtudes mais usualmente celebradas da eterna Lusa Atenas.
A verdade dos factos veio tranquilizar-me dado que até a sóbria referência à paisagem que nos cerca é traduzida por um gesto poético da mais categórica eficácia teatral.
Um Dom Quixote pujante e juvenil (e que melhor metáfora poderia desejar-se para o que Coimbra gosta de ser) puxa do cantil de Sancho Pança e desenha no mapa imaginário que cada espectador transporta no seu olhar benevolente, por entre as árvores plantadas no instante, um rio Mondego, líquida sinuosidade em cujos recônditos ecoam os odores e sonoridades que nos têm embalado durante séculos. A plateia, plena de juventude, entende e vibra com essa forma subtil de dizer as coisas, tais como podem ser ditas mediante os melhores mecanismos da inteligência do Teatro.
É curto aqui o espaço para referir todas as implicações do trabalho construtivo desta iniciativa teatral, feita para ser, mais do que uma “simples” peça de teatro, um autêntico e variado projecto de intervenção e criatividade cultural. Comece-se por dizer que a peça em apreço é tudo menos simples e encaixa num universo cenográfico repleto de artimanhas e artefactos aparentemente “improváveis” para as fadigas e paixões “del ingenioso hidalgo de La Mancha”.
Com a parafernália envolvente de um decadente pátio das traseiras da sociedade consumista (ao qual não falta um avelhentado ecran por onde desfilam alusões ao entrecho e seus heroísmos) organiza-se no cenário um surpreendente “espelho do mundo”.
Há ali de tudo porém, para surpresa do espectador, para que ganhe credibilidade a narrativa fabulosa do Cavaleiro da Triste Figura e de alguns dos seus celebrados e dramáticos contendores, desde o Cavaleiro da Branca Lua aos maximamente simbólicos moinhos de vento de todas as visões às quais faz falta a consistência das duras realidades da vida.
O burro de Sancho vai aparecendo aqui e acolá, pitorescamente travestido pelos mais ingénuos e decadentes disfarces, marcando presença de que se não duvida porque impera no olhar de quem vê a receptividade franca que só o Teatro concede.
O final da peça é outra das surpresas que faz com que a história de Alonso Quijano e seu prosaico escudeiro possa entrar, aqui e agora, num imaginário a que queiramos chamar nosso.
As “dramatis personae” ascendem para o alto, lá onde no céu se alumia um cosmos de fantasiosas estrelas e cavalgam inesgotáveis instantes da fugacidade que lhes dá vida, pela via láctea da esperança; a tal reserva de energias que dá à juventude a tenacidade de continuar a ser o que é, continuando o Teatro a fermentar nas almas a lúcida compreensão da complexidade da vida.

Com peças como esta, com encenação e actores como estes, não podem queixar-se todos aqueles que se manifestam enfadados pela invasão do tédio e da trivialidade. Uma vez por semana, pelo menos, saiam da frente dos seus televisores e, TODOS AO TEATRO, que é atitude sempre nova e de urgente utilidade!…

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Ficha técnica e artística:
Dramaturgia: Jorge Louraço Figueira /
Encenação: Isabel Craveiro /

Elenco:

  • Inês Mourão,
  • João Castro Gomes,
  • Luís Campos Eiras e
  • Margarida Sousa / 

Música Original: Afonso Rodrigues e Filipe da Costa /
Apoio ao Movimento: Leonor Barata /
Desenho de Luz: Jonathan de Azevedo /
Dispositico Cénico e Figurinos: Helena Guerreiro /
Adereços, Construção e Montagem do Cenário: José Baltazar /
Vídeo: Alexandre Mestre / Sonoplastia: Rui Capitão /
Fotografia: Paulo Abrantes /
Grafismo: Sofia Frazão /
Costureira: Fernanda Tomás /
Produção Executiva: Isabel Craveiro, Inês Mourão, Leonor Barata e Margarida Sousa /
Equipa técnica: Alexandre Mestre, João Castro Gomes, Jonathan de Azevedo e Rui Capitão Contactos com as escolas: Nuno Carvalho /

Produção: O TEATRÃO 2009.

“Sabina Freire” de Manuel Teixeira-Gomes, pela Companhia de Teatro de Braga e pela Escola da Noite, no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra

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Publicado no Diário de Coimbra de 4 de Dezembro de 2009

“Sabina Freire” é uma “comédia” pesada que acaba com um retrato de morte ao som de um achado de Tony de Matos, assim qualquer coisa muito mais saborosa e muito menos terrível que “o nosso fado”…
Ir ver esta peça é o melhor conselho que posso dar a qualquer espectador que tenha interesse por espectáculos construídos com paixão e a melhor cultura teatral. A cenografia é fluida e esteticamente eficaz, a direcção de actores e as respectivas interpretações são intensas, criativas e perfeitamente equilibradas, e não falta à encenação um conjunto de subtilezas que desafiam o sentido de observação do espectador avisado, adereço imprescindível para que uma apresentação cénica seja aquilo que deve ser: uma heróica empresa para quem a faz e um inteligente desafio para quem a desfruta.
Sem desprimor para detalhes mais sérios das profundidades da peça, agrada-me referir uma variedade de tipos que vão aparecendo do princípio ao fim e que se aproximam de forma quase literal de figuras carismáticas da banda desenhada.
Entretanto o espectáculo não se justifica apenas por si próprio, dado que se destina a fazer parte das comemorações do centenário da República e, ainda por cima, lança mão de um texto escrito por um intelectual finíssimo, homem de muitas artes e saberes, que muitos anos depois viria a ser presidente desta mesma República.
A obra, cuja qualidade nos faz pensar que melhor seria ter-se ganho um bom dramaturgo do que perder-se um desenganado presidente de república, traça da sociedade circundante uma análise perspicaz, irónica e quase trágica. Hesito em escrever o “quase” porque, à parte ter o próprio considerado a sua obra uma “comédia”, não lhe falta uma dimensão tão vasta de implicações sociais e psico-analíticas que, mais de cem anos depois (foi escrita em 1905) ainda se oferece como um retrato praticamente impiedoso de circunstâncias e fenómenos que o tempo não lavou e que todas as arquivoltas do devir histórico não têm conseguido senão aprimorar (e oxalá esteja eu bem enganado!…)
O desamor da injustiça social, as convenientes acrobacias da “gente fina”, a organização metódica das negociatas, o salamaleque jeitoso, o poder volúvel, a ambição desmedida que não recua nem perante o crime e (oh, céus!) o crime em que a própria vítima é o agente de ilibação do criminoso são metáforas sim, mas suficientemente realistas para cidadãos cansados disso no palco permanente da vida.
Homenagear uma república não está nada mal mas fazê-lo com uma obra-mestra de um seu presidente que se viu obrigado a renunciar ao cargo às vésperas de uma longuíssima ditadura, auto-exilando-se na Argélia, e que só pôde regressar ao seu país depois de morto e até assim com incómodos da polícia política, já é uma atitude problematizante que baste.

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Manuel Teixeira-Gomes aos 20 anos (1881), visto pelo pintor Marques de Oliveira


Por todas as razões e mais uma, “Sabina Freire”, da autoria de Manuel Teixeira-Gomes e encenação de Rui Madeira, em proveitosa parceria de companhias, no Teatro da Cerca de São Bernardo, em COIMBRA ou em qualquer outro palco, a não perder.

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Ficha Técnica:

Sabina Freire
de Manoel Teixeira-Gomes

Theatro Circo (Braga)
Teatro da Cerca de São Bernardo (Coimbra)

Encenação: Rui Madeira


Elenco:
Actores da CTB:
Solange Sá (Sabina Freire),
André Laires (Júlio Freire),
Jaime Soares (Dr. Fino),
Carlos Feio (Padre Correia e Procurador Ferreira).


Actores d’A Escola da Noite:
Sílvia Brito (Maria Freire),
António Jorge (Augusto César e Ministro),
Ricardo Kalash (Epifânio),
Miguel Magalhães (Josezinho Soares),
Lina Nóbrega (Josefina).


Cenografia: Rui Anahory
Figurinos: Sílvia Alves
Desenho de Luz: Fred Rompante
Criação de Som e Imagem: Luís Lopes
Criação Gráfica: Carlos Sampaio

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Rei Édipo de Sófocles pela ESAD de Málaga, ou o XI Festival de Teatro de Tema Clássico no Museu Machado de Castro

Museo Gregoriano Etrusco, Edipo e a Esfíngie de Tebas, Kylix, c. 470 AC

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Publicado no Diário de Coimbra de 15 de Julho de 2009

As imensas diferenças que nos separam da sociedade grega e a funesta erosão da história (as guerras fratricidas e a insensatez tão trágica da humanidade em preservar a paz, a justiça e a concórdia) fazem com que as prodigiosas realizações helénicas nos apareçam sempre como visões de um mundo crivado de complexidades, mas fascinante.
Sabemos que o teatro na Grécia antiga não era um simples divertimento ocasional e representava, outrossim, uma série ordenada de celebrações que tinham tudo a ver com o civismo da polis, a sua religiosidade e toda a vasta gama de padrões morais e sociais do seu tempo. No caso da tragédia conduziam o espectador pelos itinerários da sua emoção profunda até às culminâncias da katharsis, no “alinhamento ético entre as emoções e a razão”, ou na “harmonização das mesmas emoções com as percepções e juízos do mundo”.
Mais perto de nós, e na actualidade, a mesma sociedade que é capaz de reunir em Madrid 85 mil adoradores dum pobre (???) rapaz da Ilha da Madeira, dono duma inteligência muscular de sonho, escutando em apoteoses de delírio inútil o seu próprio espanto de discurso vazio, traz-nos de Málaga um grupo de estudantes de arte dramática encenando o Rei Édipo de Sófocles.
Os espectadores presentes seriam cerca de mil vezes menos mas emocionaram-se muito mais profundamente, tendo desfrutado das vantagens de uma noite mágica e muito mais fresca que a tarde das confusas paixões de Santiago Bernabeu.
O espectáculo decorreu no belíssimo enquadramento do pátio do Museu Machado de Castro, cercado pelo clima quase ateniense de uma colina ornada pelo “horizonte de perros” e de sinos que pela noite entrante vieram dizer-nos a seu modo que a hora e o drama estavam de visita e que nos tocava a nós vivê-los em toda a sua intensidade.
O grupo de estudantes malaguenhos da Escuela Superior de Arte Dramático teve uma prestação notabilíssima pelo seu rigor e, essencialmente, pela paixão de visceral entrega ao labor de representação teatral.
Estiveram presentes um conjunto magnífico de vozes em cuja solidez expressiva não será despropositado reconhecer a pujança genética das grandes tradições do cante andaluz e a intensidade sanguinolenta das celebrações da Paixão, recheando de contradições e complexidades o bem proporcionado recinto e o esplêndido pórtico.
O prólogo desde logo nos confronta com exigências de castigo justo por crimes infamantes, e que motivação mais actual do que essa, mais tremendamente adequada para justificar que nos debrucemos sobre suas causas e efeitos?
Não fugindo a um enquadramento próximo do imaginário clássico, sem interferências de “actualidade” provocante, a impressionante encenação que nos veio de Málaga tão vigorosamente interpretada pelos seus jovens não deixa de rematar com uma silenciosa cena de “apropriação” sorrateira do poder por um personagem que – como todos os políticos de sucesso – consegue sobreviver às tragédias de todos os outros homens e cingir de forma “oportuna” a sua testa com os seus símbolos máximos.
É um apontamento subtil, já fora do texto e depois de consumada toda a tragédia, que nos dá a entender que estes estudantes e seus mestres não são apenas académicos conformados, mas cidadãos preparados para abordar criticamente a essência da realidade, deixando disso um testemunho precioso e eloquente.

Oedipus Rex. 1922. Oil on canvas. 93 x 102 cm. Max Ernst

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O Cabaré da Santa do Teatrão, ou os melting pots que falam português na Casa Municipal do Teatro

foi publicado no Diário de Coimbra


Estamos de facto num tempo de prodígios nem todos funestos, felizmente. Estive agora mesmo de visita ao blogspot.com do Teatrão e, imagine-se, tenho ao meu alcance trailers alojados no YouTube de algumas das suas realizações teatrais e acesso à asa brasileira deste enérgico condomínio artístico, o Folias de Arte, de São Paulo. O trailer, que era exclusivo do universo cinematográfico está agora ao serviço do teatro. Os meus sinceros parabéns!
O universo de significados especializados de que o parágrafo anterior é prova evidente é expressão elementar das mutações culturais que a actualidade nos oferece com toda a vastidão de consequências fracturantemente férteis que o fenómeno envolve.
O Cabaré da Santa é um notável trabalho de teatro que também trata, a seu modo, desse estado de coisas e representa para os privilegiados espectadores de teatro de Coimbra uma oportunidade a não perder de passarem um belíssimo serão na companhia de jovens que nos apresentam um espectáculo poderosamente inoculado por uma elaborada teia de ilusões que dá o braço a uma forte componente musicológica em contexto de propícias complexidades linguísticas e interculturais.
Rica de intertexto, vibrante e imprevisível, a peça desestabiliza o espectador mais composto através dum excitante e excitado percurso com variedade de facetas e abordagens culturais e artísticas que podem ser apropriadas ao gosto de cada um.
Este Cabaré poderá, desejavelmente, ser visto e apreciado mais do que uma vez. Não só porque é uma complicada teia de enredos difíceis de descodificar plenamente numa primeira abordagem, mas também porque pode ser apreciado com mimos de chá, vinho do Porto ou bom tinto (eu sou testemunha…). Na minha modesta opinião esta última componente devia estar mais assiduamente presente em certo número de eventos culturais, et pour cause…
Se esta terra ainda vai cumprir seu ideal, se o Amazonas desagua de facto no Tejo numa pororoca ou se vamos de ter de rever o nosso perfil são coisas que não me dão muito cuidado. O mundo muda com tal rapidez que vaticínios, neste como noutros casos, é melhor esperar pelo fluir deste jogo que não acaba nunca. Fundamentais serão de facto, além das inevitáveis razões da elaboração intelectual, o humor e o sexo, essas duas artes tão necessárias como difíceis no que envolvem de sensibilidade, subtileza e a sempre indispensável inteligência.
A peça evolui também nesses terrenos, não abusa nem exagera, mas sempre ventila um pouco o clima aparentemente árido da fleuma nacional. Vendo as fotografias da versão brasileira da peça publicadas na internet, ficam comprovadas nesse sentido as vantagens da miscigenação cultural entre Portugal e o Brasil e… a distância enorme que nos separa do “impávido colosso” que é o país do Carnaval.
Depois das inenarráveis negociatas de todas as épocas entre Portugal e Brasil, de que a peça também se faz eco e metáfora, depois da “invenção da mulata” – a atitude dita mais genial dos portugueses além mar – e da telenovela, cabe agora ao vulgar de todos nós descobrir e desbravar já não as veredas do sertão, mas esse privilégio sem fim que representa para nós a desconhecida genuína cultura daquele país. A sua variedade, o seu colorido, os atrevimentos que não conhecem fronteiras de raça e de preconceito, a excitante enormidade do seu espaço físico e dos intermináveis horizontes do seu espírito esperam por todos nós de braços abertos.
A peça acaba com a concepção luminar de um certo Brasil descobridor de um certo Portugal. Certo, não tem problema, meu irmão.
Quanto a mim mais me inspira, para já, um sempre novo e prodigioso oiro do Brasil com pele de todas as cores, revestido de todos os aromas da terra de que podemos e devemos, por todas as razões imagináveis, lançar mão aberta. E fazê-lo decididamente, com toda a magnífica legitimidade de usarmos a mesma língua, recompensa merecida de séculos de labutas dolorosas e viagens arriscadas.
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“Orgia” de Pier Paolo Pasolini, pelos Artistas Unidos, no TAGV

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Publicado no Diário de Coimbra de 23 de Fevereiro de 2006

Ir ver uma peça como “Orgia” de Pier Paolo Pasolini sem fazer um certo trabalho de contextualização ou sem dispor de referências sobre o critério estético e cultural que correspondeu à sua origem, pode largar o espectador no labirinto de uma perplexidade indesejável.
Menos mal que desta vez ainda tivemos a oportunidade de adquirir, a um preço módico, por adequada iniciativa dos Artistas Unidos e dos Livros Cotovia, uma tradução de dois originais de Pier Paolo, entre os quais o desta peça.
Quem tenha uma memória alongada da obra do autor, cujo “Evangelho segundo S. Mateus” de 1964 produziu no Portugal desses tempos uma impressão avassaladora, e se disponha a compulsar alguns textos de sua própria autoria sobre teatro, o suicídio, a “diferença” e muitas outras coisas, ficará mais à vontade perante esta anunciada “crónica das pobres emoções sadomasoquistas de dois cônjuges pequeno-burgueses”.
Como fazê-lo? Indo à Internet, é claro, bastando consultar a sempre enorme quantidade de “sítios”, entre os quais um que me embarcou directo num depoimento do próprio artista sobre “Orgia” e duma breve mas explícita entrevista dada na altura em que a peça se estreou em Torino, Setembro de 1968.
O endereço desse documento é compridíssimo e a sua publicação sob forma escrita seria improdutiva. Para os interessados, como é hábito, publico esta crónica no blogue acima indicado, onde ficará uma ligação directa para esse precioso documento, com o qual deixo os meus leitores, o que me poupa a exercícios de inútil erudição.
Quanto à peça foi uma magnífica oportunidade para conhecer o soberbo texto de PPP, à qual se fez ausente a plateia de interessados espectadores do TAGV, frequentemente numerosa quando se trata de peças “estreladas” por nomes apetecíveis do universo mediático.
Muita coisa poderia dizer-se sobre ela e sobre os inesgotáveis temas de que trata.
Ainda na qualidade de espectador fiel dos filmes de Pasolini, senti-me um pouco “arrefecido” pela carência de actores cuja figura, cuja voz e cujo estar fosse compatível com a habitual “paisagem humana” das suas obras de cineasta. Ninguém aqui deseja comparar evidentemente o elenco de uma peça feita na Lisboa dos nossos dias, e o de um filme original do autor, frequentemente confiado a actores arrancados por ele mesmo à vida vivida naquela margem mais intensa e radical em que ele próprio se movia.

“E agora divirtam-se”, disse o enforcado

É com esta frase, de uma ironia desapiedada, lançada pelo protagonista de Orgia aos espectadores – “seus inimigos” – que termina o prólogo desta peça, escrita por um autor que considerava o monólogo como o mais teatral dos acontecimentos, critério em que assentava a sua noção de “teatro de palavras”.
E já agora, venha ou não a propósito, sobre sexo:
Numa sociedade como a nossa, onde tão assiduamente se papagueia a legitimidade do “diálogo abertíssimo” e da “informação a 360 graus” sobre as questões da sexualidade, nem por isso a peça declamada no TAGV pôde ter concitado a curiosidade sobre este tema raro numa sociedade secularmente “letrada” e “culta” na qual, ou eu me engano muito, ou muita gente anda por aí a fazer de conta que não faz parte da paisagem.
A propósito dos incompreensíveis ausentes, a menos que já saibam tudo sobre a matéria ou estejam cem por cento enfadados pela estética pasolineana, poderia talvez concluir-se que sobre o assunto pesa ainda a aversão do medo, ou a indiferença amassada na hipocrisia, estigmas iguaizinhos àqueles contra os quais Pier Paolo esgrimiu a sua trágica e contundente mensagem.
Esta coluna, que fala apenas de teatro (ou seja, da matéria de que é feita a vida toda) não quer deixar de lançar este confidencial alarme, referindo muito de passagem um silêncio equívoco que persiste ou uma fome que, adiada, pode cavar na alma o poço frio duma indiferença problemática por nós mesmos.

“Domingo”, pelo Curso de Teatro e Educação da ESEC

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Publicado no Diário de Coimbra de 17 de Fevereiro de 2006

Resultante dum complexo exercício curricular é-nos apresentado este trabalho de análise teatral que todos fariam bem ir ver, dando-se ao trabalho de o discutir depois.
Antes do próprio espectáculo tive a grata ocasião de falar com um distinto protagonista das causas e das coisas do Teatro, detectando mais uma vez a gritante carência da ventilação crítica da cultura de Coimbra em geral, e do Teatro em particular, debate esse que é o elo fraco duma cadeia onde o trabalho e a dedicação abundam, mas que claudica contudo nessa vertente final de aprofundamento e reflexão.
O espectáculo visto depois demonstra à saciedade que estes estudantes de teatro dominam abundantemente as suas ferramentas de expressão, não havendo dúvidas quanto à profundidade da experiência pedagógica realizada.
O tema não pode ser mais actual e trata da mudança meteórica dos hábitos e cenários do consumo de bens de primeira necessidade, fenómeno que se cruza com muitos outros do domínio sociocultural.
O mínimo que poderá dizer-se é que estes futuros agentes de teatro entranharam já, de forma consistente, uma imensidade de epifenómenos do universo consumista (o Centro Comercial Vida Estável!…) de que eles próprios serão, como todos nós, sujeito e objecto de uma atroz vulgaridade de hábitos que se afunda não no seu próprio mistério ou no seu mágico fascínio: as pessoas que ali vão em chusma, não têm pura e simplesmente alternativas!…
Se as tivessem, ou se lhes fosse dado espaço público e estímulo cultural para as construir, faltar-lhes-ia talvez o espavento das cada vez maiores superfícies, onde o efeito hipnótico das luzes dilui a fleuma taciturna dos inúmeros visitantes, mais espectadores passivos do que habitantes do país pantagruélico das compras sem freio, a crédito ou sem ele.
Ao retrato que nos traçam não falta a sofisticada componente multimediática, as vozes “off “ ao capricho dos telecomandos, os persistentes ópios do povo e até o submundo da criminalidade, com aproveitamento inteligente do sugestivo espaço do Museu, sendo de efeito especialmente eficaz a movimentação trepidante de entradas e saídas sugerindo o bulício sem freio de espaços que se abrem e se fecham por sobre multidões saturadas de expectativa.
A raiz da questão, ai de nós, não se resolve porém nessa visão tangente à fenomenologia proposta. Perante a magnitude de um problema tão intenso seria necessário, pelo menos, beliscar um tudo nada as bases do processo, aludindo à natureza e aos mecanismos do sistema, para que a evidente ironia e imensa graça com que certas figuras são traçadas não passe pela consagração castiça de caricaturizações gratuitas, e para que se não resolva numa gargalhada toda a insatisfeita frustração.
Quando uma forma de arte nos apresenta a visão de qualquer coisa, mas de forma tão literal que se perde por inteiro a notação da subjectividade ou acentuação observativa, arriscamo-nos a não saber o que está em causa nessa realidade: se o retrato ou a figura retratada, se a forma ou o conteúdo, que neste caso pode ser a nossa própria circunstância.
A figura muito certa do encarregado de limpeza, por exemplo, cuja presença é tão serena e cuja voz tão bem timbrada, atravessa todo o espectáculo como figura de certo modo transversal, corporizando uma certa irrealidade complacente, oscilando entre nostalgia poética, brio profissional e um projecto de anti-utopias reclicantes que só ele entende.
Ao fim da sua tarefa vem até nós, aparentemente em paz com o dia de amanhã, e aperta bem sentado os atacadores das suas botinas de fino calfe, valendo mais o gesto, a média luz e a serena tranquilidade com que faz isso, do que quaisquer palavras que diga.
A próxima vez que for a um hiper-macro-centro promocional hei-de estar bem atento aos encarregados de limpeza, para ver se lobrigo algum assim, tão compenetrado e sereno, tão poético e cheio do fulgor do teatro.

Peça de José Sanchis Sinisterra, pelo Teatro das Beiras, na Oficina Municipal do Teatro

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Publicado no Diário de Coimbra no dia 07 de Fevereiro de 2006
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Na enérgica sociedade multicultural que Espanha é, José Sanchis Sinisterra ocupa o lugar distintíssimo de um artista que, ao mesmo tempo que se ocupa com raro talento de temas muito fortes de multifacetada concepção, vê os seus trabalhos abundantemente solicitados por teatros oficiais, pelo teatro comercial e por salas alternativas.
De referir, apenas como apontamento de interesse particular, a sua adaptação do “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago, representado no teatro Fígaro de Madrid, um dos muito abundantes momentos da sua obra, a qual se afirma como das mais comprometidas com o teatro do seu tempo. Criador de teatros e de Teatro, director desde 1958 do Teatro Espanhol Universitário de Valência, foi nomeado recentemente director artístico do prestigiante Teatro Metastasio Stabile della Toscana em Prato, perto de Florença, entre muitas outras distinções mencionáveis.

Conquistar público não é fácil e o verdadeiro humor também é difícil

Numa cidade como Coimbra, frequentemente visitada por companhias de “grande sucesso”, que reduzem tudo à acessibilidade num afã de “conquistar público” sem olhar a meios, José Sanchis Sinisterra representa um exemplo de exigência autocrítica que recusa a tendência “espectacular” de certa prática teatral, as convenções e os códigos do êxito “garantido” e o pós-moderno esplendor cénico, tão espectacular como vazio.
“Perdida nos Apalaches” é uma comédia de contornos filosóficos apresentada pelo Teatro das Beiras, com encenação de Gil Salgueiro, que nos poupa a uma abordagem demasiado hermética dos segredos da matéria, da energia, do espaço e do tempo que o texto possibilitaria, optando por uma ilustração sugestiva dos usos que governam a sociedade e por uma revisão das regras convencionais que regem a tradição narrativa.
Aludindo às teorias da relatividade e da física quântica, com uma incursão substancial no universo absurdo configurado na obra de Franz Kafka, o grupo da Covilhã compatibiliza humor e complexidade de níveis de narração com eficácia dramatúrgica e clareza de propósitos estéticos.
A cenografia é muito simples, mas tem o privilégio de trazer consigo um daqueles apetrechos mágicos que o verdadeiro teatro tantas vezes produz, para proveito de quem assiste: um espelho ondulado onde se reflectem adereços vulgares, transfígurados em seres sinuosos e pinturescos, cheio de contornos luminosos e deformações de requintado efeito.
Nos momentos mais altos em que a trama se desenvolve ao nível duma “twilight zone” ou quinta dimensão, que compatibiliza espaços e tempos distintos em aproximação romanesca da maior candura, a luz azul varre lá atrás planos de indeterminação, tornando-se evidente que não são os mais requintados meios que produzem milagres de efeito, mas sim a imaginação pura condimentada com talento.
A figura do “Segundo Vice-secretário”, invulgarmente bem caracterizado por Miguel Telmo, tem a virtude de conferir unidade e substância a todo o espectáculo, pelas intervenções bem colocadas no entrecho como elemento de ligação e, principalmente, ao abrir e encerrar da peça.
Define, com imensa graça, a postura formalista e insidiosa do candidato permanente, do carreirista sem remédio e do elo mais persistente e viciante do “sistema”, cuja truculência ridícula a sociedade tantas vezes impinge como combustível certificado (inevitável?…) do protagonismo político-institucional.
Infelizmente, o desvio burlesco que a figura evidencia nalguns dos seus mais hilariantes apontamentos não fica nada a dever ao amaneirado de certas figuretas da vida real, com a vantagem evidente que não nos mete a mão nos bolsos nem se candidata a figurar na galeria dos príncipes privilegiados deste nosso mundo pouco cómico, mas frequentemente dum absurdo sem limites.

“Uma história A Penas”, pelo Trigo Limpo Teatro ACERT, no TAGV

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Publicado no Diário de Coimbra de 28 de Janeiro de 2006

Em horário diurno e como espectáculo para as escolas foi apresentado este magnífico trabalho de teatro, que em programa é adequadamente classificado como “espectáculo para todos”.
Depois de o ter visto em contexto próprio (na sala onde os únicos adultos seria eu e as professoras dos jovens ali presentes) fiquei mais uma vez ciente das preciosidades do Teatro, mas preocupado com uma certa displicência, ou desacerto, ou falta de preparação com que são vistas e atendidas as realidades da cultura, da sensibilidade e da educação. Sendo excelente a peça, muito bem desempenhada pelos três actores em palco que deram vida a uma multidão de seres; sendo a cenografia fundamentada numa máquina poética engenhosíssima que sofria metamorfoses sem conta e segregava prodigiosa variedade de expedientes cénicos, sempre inesperados e magníficos; sendo tudo isto um facto e ficando muito por dizer da substância do enredo… o milagre da entrega não se processou da forma mais serena e desejável.

Um grupo indeterminado de jovens assistentes, parte significativa já pré-universitários, implantaram insidiosamente um anti-teatro de interferências que nem era resposta inteligente ao trabalho dos actores, nem demonstrava entendimento do que se passava em cena, nem revelava gosto nem respeito pela cultura. Pior do que isso, formaram uma barreira de inquietação malcriada entre o espectáculo e todos aqueles que estavam ali para beneficiar dele, no que tinha de tão inteligentemente construído.
Merece louvor a corajosa impassibilidade mantida pelos actores durante o espectáculo e a alocução comedida, esclarecedora e moralizante feita por um dos mesmos no fim do mesmo, para todos os assistentes. Se este tipo de coisas é frequente, parece ser de bom conselho que o discurso possa ser feito sempre, já agora, antes do espectáculo. E que os professores que tiverem a iniciativa e a generosidade de acompanhar alunos a acontecimentos, muito certamente fora do seu horário de trabalho, gastem um pouco mais do seu talento instruindo antes da hora, para não terem de recriminar depois.
Esta peça, seja dito com verdade, não era nada simples de conteúdos e solicitava também uma introdução explicativa, que não sei se teria sido possível. Seja-me permitido, já não como comentador de actos cénicos, mas como cidadão, sair do drama vivido às avessas naquela sala, para ir dar um passeio breve ao país da utopia:

Suponhamos que entre as escolas e o mundo exterior o diálogo é fluido e metódico, que aquelas recebem os artistas e que visitam regularmente os ateliers e recintos da arte e do teatro.
Sonhemos que as instituições próprias, desde os ministérios às autarquias até à própria família, vivem de mãos dadas e alimentam intensamente essa poderosa sinergia de sinais construtivos da inteligência.
Imaginemos que os professores têm condições nas escolas para organizar esse trabalho com a maturidade, o tempo e a continuidade que o valor da tarefa exige e merece.
Cenas tristes como aquelas que se observaram jamais aconteceriam, porque estariam uns muito bem prontos para dar e outros muito desejosos de receber.
De pouco valerá a pena erguer dedos acusadores e dizer que são aqueles ali que têm a culpa, porque assim e porque assado. Fazê-lo não passa de vingança abstracta e não conduz a soluções.

Certo é que, amanhã de manhã, milhares de professores de turmas espalhadas por todo o país lá vão encontrar aquela minoria de teimosos activistas irrequietos, dispostos ao anti-teatro, à sabotagem hiper-activa, ou mesmo, quem sabe, à delinquência agressiva. Porque terá de ser assim?
Que conceitos de pedagogia, que razões sociais, que solidariedade dos poderes e das forças organizadas será possível mobilizar para que certas comédias de hoje se não transformem em tragédias do amanhã?

Romeu e Julieta com encenação de John Retallack, no Teatro Académico de Gil Vicente

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Gravura de Claes Van Visschen (Londres 1616) que mostra o edifício do velho Globe Theater

Gravura de Claes Van Visschen (Londres 1616) que mostra o edifício do velho Globe Theater

Publicado no Diário de Coimbra de 21 de Janeiro de 2006

O teatro, para um sem número de gerações, foi encarado com a convicta gravidade que aproximava o espectador do sentimento de ter encontro marcado com destino, ficando as lendas, os mitos, as referências sentimentais e romanescas marcados a fogo na área indelével da sua memória. Dentre tais referências sobressaem Romeu e Julieta pela candura intensa da paixão que os atraiu e pela crueldade do destino que os separou.
Romeu e Julieta de Shakespeare e do Globe Theater ninguém deve saber ao certo como foram, mas as lembranças que ficaram de tantíssimas suas variantes do passado, de Prokofiev a Tchaikovsky, passando por muitas outras, não parecem receita fácil para as indústrias do espectáculo da actualidade.
O espectáculo que se refere em título teve sala cheia, apresentou elementos de valorização artística de muito bom nível, servindo-se de uma arquitectura cenográfica de boa concepção estética e muito funcional para uma grande variedade de efeitos. A marcação das cenas foi sempre muito fluente, servindo a luminotecnia para acentuar cromaticamente o clima psicológico de cada momento do drama, a que se somava a sóbria e inspiradora presença da guitarra (Vasco Abranches). As cenas de animosidade entre os clãs de Capuletos e Montéquios foram condimentadas com agressividade convincente, “animados” pela agilidade felina dos confrontos de espadachins.
A encenação tem assinatura dum nome muito conceituado e premiado, ainda por cima inglês (John Retallack), e é ele próprio que nos diz, no modesto folheto de apresentação do espectáculo que nos oferece o TAGV, desejar compatibilizar sobre o mesmo palco a tragédia e a comédia, culminando esta última vertente numa sequência “haut en couleurs” protagonizada por um dos mais mediáticos actores em cena (Diogo Infante), que não consigo definir com rigor em termos Shakespereanos nem sei se teria sido a melhor forma de aproveitar o talento e a presença em palco do referido actor.
A própria figura do velho Capuleto (João Lagarto), já perto das cenas mais pungentes da tragédia, entre esposa e ama (figura bem delineada por Custódia Gallego), quer no modo de falar quer no talante de actor, foi acentuando a faceta humorística da parte que lhe coube, com a eficácia expressiva que a sua longa experiência em palco permite, pouco ficando do seu trabalho que nos remeta para o perfil grave de um fidalgo de Verona em sérios cuidados de paternidade.
Receio que estas atitudes tenham contaminado um pouco o estado de espírito de um vasto número de espectadores que assim perdeu a concentração que o espectáculo solicita na área do sentimento e prejudicando-o, sobretudo, no plano do discurso poético, tão inigualavelmente rico nas obras do autor isabelino. Penso que esta mesma orientação pode ter retirado aos próprios protagonistas amantes um certo espaço de afirmação do seu drama grave e heróico, ao morrerem um pelo outro.
Remetidos para a área mais elevada do cenário, ganham em altitude mas perdem na proximidade, rarefazendo-se a emoção que instilam no coração do espectador e deixando-o sem aquele aperto na garganta, aquela lágrima tonta, aquela credulidade artificial na história da morte provisória de Julieta que convence tão pouco, mas que comoveu radicalmente gerações e gerações, porque era essa a sua vontade, a sua ilusão e, quem sabe, a sua necessidade de sentimento.

“Profundo” de José Ignacio Cabrujas, pel’A Escola da Noite

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.Publicado no Diário de Coimbra de 19 de Dezembro de 2005

A acção da peça de José Ignacio Cabrujas que nos traz mais esta realização d’A Escola da Noite tem enquadramentos histórico-culturais próprios da sociedade em que ocorre, a venezuelana, num período temporal específico, habitado por mitos bem elucidados na documentação com que a companhia continua – felizmente – a enriquecer adequadamente os seus espectáculos.
A família descrita, inserida em meio suburbano duma sociedade em transformação, reage de forma expressivamente coesa, facto revelador dum comunitarismo próprio das suas raízes rurais, marcadas pela vocação da festa ritual, pelos velhos mitos indígenas e pela colectividade dos espiritismos coloridos de componente afro-americana. Se digo isto não é para ajudar o espectador (que disso não precisa) a destrinçar os itinerários ou contrastes da “cultura do milagre”, as vicissitudes do pecado judaico-cristão ou a frustração e desmembramento de certo quotidiano bem próximo da nossa realidade.
Os actores deste “Profundo”, cujo talento e dedicação não passam despercebidos a ninguém, mergulham frequentemente as mãos no chão térreo daquele palco, o que estabelece com esse plano simbólico uma relação de proximidade que vai do gesto de escutar a “voz” dos mortos sepultados à atitude de semear, palpar, cheirar e revolver. Decididamente, os subúrbios de Caracas estão muito mais perto da floresta mágico-ancestral que os arrabaldes branco e negro da cidade eterna (lembrar Pier Paolo Pasolini…) e o sentido de humor insinua-se a cada instante nesta desmontagem da ingenuidade patética ou necessária da carnal família Álamo. Quanto a esta, é surpreendida na cruzada de desenterrar a chave decisiva das suas “incumbências”: tesouro, relíquia ou sonho providencial que tantíssimos portugueses “escavam” nos totolotos da esperança fugaz, ou nas exaustivas peregrinações em busca de figuras tão místicas e propiciatórias como as do virtuoso padre Olegário.
As personagens desta peça de Cabrujas, aliás, não são tão “feios, porcos e maus” como seria possível numa observação contundente à maneira de Ettore Scola da suburbanidade carente e problemática, embora “o Boi”, nalguns acessos de moderada truculência, faça pensar nesse outro pai zarolho do realizador italiano. O tesouro não é descoberto, mas tanto faz.
O talante místico-imaginário tem o dom de transfigurar tudo na matéria inabalável da própria crença de que é feito, processo de assimilação ao qual nem escapa o cheiro nauseabundo da fossa encontrada no sítio onde devia estar aquele. Inteligentemente tratado pelo óptimo trabalho de toda a companhia, o espectáculo tem muita coisa a observar, em registo próprio de costumada sobriedade.
O “drama erótico” de Manganão, por exemplo (dado com subtileza tal que toda a gente percebe…) e a cena final, repassada dum simbolismo atroz, mediante a qual a pá das “escavações místicas” é elevada à condição de símbolo processional, transposição paródico-transcendental eivada de “profundidade” que aquele mesmo personagem entende inspiradamente conferir-lhe. Nada que não faça pensar maduramente uns quantos autores de frases definidoras do conceito de “profundo”, em repto participativo que A Escola da Noite lançou em gesto inovador, e que foram elevadas à dignidade do texto do catálogo com todos os riscos inerentes dos seus “desvios de subjectividade”…

António Jorge (Manganão) e Maria João Robalo (Lucrécia), numa cena de "Profundo"

António Jorge (Manganão) e Maria João Robalo (Lucrécia), numa cena de “Profundo”

Pinter de antes do Nobel, no Centro Norton de Matos

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Harold Pinter ao proferir, em vídeo, o discurso de aceitação do prémio Nobel de Literatura

Harold Pinter ao proferir, em vídeo, o discurso de aceitação do prémio Nobel de Literatura

publicado no Diário de Coimbra de 9 Novembro 2005

Não sou ainda sócio do Centro Norton de Matos, e talvez devesse sê-lo pelo acumulado de impressões positivas colhidas de amigos, visitas, variedade de acontecimentos e recordações que tenho duma já antiga colaboração artística no domínio da cenografia para o balett.
Desta vez fui a uma peça de teatro que representa o arranque de uma nova secção ancorada no tecido ricamente sedimentado das actividades do Centro.
O amigo que me convida, António José Alves, é encenador, desenha as aplicações de luz e, como se fosse pouco, é ainda actor (no papel de Devlin) desta peça de Harold Pinter, significativamente escolhida para ser levada à cena, antes do autor ter sido designado prémio Nobel da literatura. Esta polivalência de atitudes assinala bem a disponibilidade fértil de quem abre caminhos novos. E tampouco a escolha da peça representa a atitude cómoda de quem queira fazer obra a partir do êxito fácil.
O texto de Pinter é duma objectividade sem adornos nem alusões pitorescas e apresenta-se concentrado num diálogo tenso, recheado de incertezas, alusões a um erotismo crispado e visões aterradoras de bébés arrancados aos braços das suas mães, em alucinadas estações de caminhos de ferro.
O cenário é coerentemente singelo, a acção restringe-se ao mínimo, e quanto às conclusões daquilo que é dito em palco é o próprio espectador que terá, entre alusões simbólicas, alegorias complexas e certo clima de pesadelo, de encontrar as chaves que para si resolvam a trama da peça.

A convivência natural e a tradição festiva do teatro

Algo de especialmente sensibilizante rodeia todo o trabalho feito, digno evidentemente de aplauso e atenção. Refiro-me ao clima humano que é património duma agremiação como esta, que apresenta uma peça de teatro ao fim da qual as pessoas podem ficar discreteando com velhos amigos aquilo que foi dito e vivido no palco cénico.
Nestas cidades, de prédios onde impera um certo anonimato e onde as pessoas se esgueiram pelas escadas com medo de encarar vizinhos cujo nome mal se conhece ao fim de anos e anos, é com um sentimento de renovada confiança que se entra numa casa onde o teatro não é apenas uma cerimonial de palavras congeladas, rodeado de silêncios por todos os lados.
A actriz, Celeste Maria Rafael (Rebeca), confidencia-me que viveu sempre ali, a dois passos do Centro, o que me faz lembrar com imensa nostalgia as casas e ruas da minha infância até à primeira idade adulta, pura recordação feita de ausências e de um insatisfeito sentimento do irrecuperável.
Numa sala de teatro que também é ginásio e sala de danças de salão, o aviso de apagar telemóveis não é dado pela ressonância metálica dum altofalante escondido detrás do segredo da sala escura. É uma pessoa que vem ali falar com todos e que, além de outras coisas, também nos diz que a aventura do teatro vai prosseguir no Centro Norton de Matos, assim o queira a generosa vontade dos associados.
Por mim vou estar atento e não ficarei ausente. Pode ser que entre nomes e faces conhecidas possa de igual maneira beber um pouco dessa quase utopia que é viver civilizadamente, em comunidade de interesses e de valores humanos, artísticos e sociais.
E que o hábito das palavras, antes e depois de cada peça, possa tornar-se uma atitude natural, uma vivência autêntica de cultura e da tradição festiva do teatro.

Bonifrates no TAGV, em celebração de maturidades

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publicado no Diário de Coimbra de 31 Outubro 2005

A Cooperativa Bonifrates celebra 25 anos. Um quarto de século de valiosas actuações, um itinerário recheado de momentos fortes.
Levou à cena mais uma vez, agora no TAGV, uma peça “de cuyo nombre no quiero acordarme”, com o seu cortejo de palavras pesadas que nos recorda, com particular sentido de exaltação humanizada e elegância estética, que o mundo é mundo, campo de batalhas perdidas e sonhos pueris, de desejos desmedidos e, tantas vezes, de uma dura e intolerável desesperança.
A. Kowalsky e João Maria André constroem esta peça sobre o tema da mais velha profissão do mundo, libertando-o do oportunismo “voyeurista” com que tantas vezes é tratado, construindo uma obra de conteúdo universal e sensível, liberta de moralismos hipócritas, plena de todas as contradições e potencialidades da vida, desde as mais vulgares às mais absorventes. O texto, apoiado muito embora num honesto estudo da matéria de que trata a peça, parece-me ultrapassar em muito os referenciais sociológicos de que é oriundo, mergulhando progressivamente numa esfera de apreciação da fenomenologia dos afectos, da desmontagem da violência nas suas motivações mais primárias, da injustiça e do precário destino dos homens. Amplamente documentado a respeito do submundo transtornado das “mulheres da vida”, demonstra a secreta vulnerabilidade dessas criaturas singelas e vulgares, cativas e exploradas pela via do seu mais delicado préstimo natural, para efeito de sobrevivência própria e amparo familiar.
Depois de um prólogo ou “divertissement” inicial que a peça, desde o seu mais breve começo, fez recuar para o nosso completo esquecimento é, entre realismo sem complexos e expressionismo de invulgar efeito que se desata a construção dramatúrgica; à qual, apenas a caminho do seu desenlace, se vem juntar algo como um bosquejo de enredo personalizado. O expediente é utilizado de forma sagaz para introduzir o sentido de tragédia e defrontar o espectador com a imensa sombra da morte.
O corpo franzino da pequena prostituta drogada é então recoberto por uma das suas colegas de destino e profissão com um mágico “velo de oiro”, luz purificadora ou porta derradeira aberta para a libertação.
Eurídice Rocha, com um perfil que sai directamente dos cadernos de desenhos e das pinturas de Otto Dix, oferece-nos uma actuação inesquecível traçada nos limites do corpo, como tão frequentemente acontece nos palcos alemães, assumindo frontalmente esse risco, não ignorando certamente que um milímetro a mais ou um milímetro a menos poderiam colocar em risco toda a sua intensa atitude de verdade teatral.
Sozinha em palco executa dilaceradamente a “dança ritual do trabalho”, metáfora engenhosa do mais subtil efeito cénico já antes praticada noutro registo pelo colectivo das raparigas, que vai conduzindo ao desfecho do espectáculo que os seus construtores transpõem com invulgar talento para um outro espaço da mente, outros continentes e outras culturas, saída sem portas para o único horizonte possível da alma ou seja, a sua inalcançável transcendência.
A minha crónica termina aqui, lamento não poder alongar-me mais, mas não termina felizmente com esta peça o percurso riquíssimo dos Bonifrates, ou “bons irmãos” do Teatro.
Parabéns e louvor a todos os seus colaboradores e, para já, votos de outros 25 anos de profícuo labor artístico em benefício de toda a comunidade cultural!…

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60 minutos com Brecht, no TAGV, em produção invulgar

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publicado no Diário de Coimbra de 23 de Setembro de 2005
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O potencial activo da produtora Margarida Mendes Silva e os critérios de encenação de Clóvis Levi podem repousar de consciência tranquila: a evidência das imagens multimediáticas que precedem o entrecho deste Galileu Galilei não permitirão ao espectador mais distraído olvidar o estado geral do mundo entregue, como mais ou menos sempre esteve, à barbaridade atroz da violência e da injustiça.
As hordas organizadíssimas dos exércitos, os cadáveres desmembrados despejados sem dó para as valas comuns, a criança em chagas, tremente de pavor e desamparo, e a maldita eficácia dos angulosos “Stealth airplanes” prontos a despejar “bombas inteligentes” em qualquer parte do mundo, tudo por ali passa, não esquecendo o demoníaco apocalipse duma bomba termonuclear em plena demonstração de “realismo” incontestável. O testemunho de Brecht e as suas mais legítimas preocupações não poderiam estar melhor acautelados!

Peças de teatro há muitas

Que me perdoem contudo os meus mais assíduos leitores, mas não foi uma peça de teatro “qualquer” que me levou ontem ao Gil Vicente.
O que eu lá fui ver foi três rapazes de Coimbra, artistas de mão cheia, daqueles raros a quem o destino parece não regatear o instante fugaz da merecida consagração, um dos quais leva tão a sério a servidão da arte que pratica ao ponto de se ter dado ao luxo de ressuscitar (sem aspas) para retomar a peça no ponto em que a havia deixado, alguns meses atrás. O médico dele lá estava, camuflado entre os assistentes, à cautela…
Elencos assim talvez os tenha apresentado o Globe Theater de Shakespeare, a coruscante Broadway, quem sabe o próprio Berliner Ensemble de Brecht!… Mas desta feita, por vida minha, e com assistentes mais que curiosos e expectantes, literalmente suspensos da fala do Actor, esta foi uma vez rara e excelente.

“A verdade é filha do tempo, não da autoridade”

Dizia alguém que sabe das coisas que Fernando Taborda amanhã vai estar mais seguro e que vai fazer muito melhor (“…o problema dele era saber se aguentava a peça… “).
Eu sou do parecer contrário: melhor que ontem nunca mais faz na vida, por ter representado com bravura no fio da navalha, essse espaço exíguo em que cada passo dado é uma conquista e chegar ao fim uma vitória irrepetível.
As suas mãos frágeis de dedos flutuantemente finos, a sua voz ora aveludadamente insegura ora convictamente afirmativa, e o sorrir de quem canta uma canção de Kurt Weil sabiamente ausente incorporaram tão bem a personagem que, a partir de certa altura, já ninguém dava conta de onde acabava Fernando ou começava Galileu.
De Rui Damasceno e Victor Torres poderá dizer-se que criam uma abundante galeria de figuras espirituosamente credíveis, esboçadas com verve e invenção num registo optimista, coerente com a “visão clara” da ciência redentora que a versão dramatúrgica coloca em palco, a par da comédia de contradições que o “império da autoridade” impõe à sempre fugidia e contingente “ânsia da verdade”.
Seria curioso e interessante desfiar alguns dos mais bem conseguidos momentos de criatividade cénica, mas não desejo roubar ao leitor que ainda não viu a peça a oportunidade de descobrir por si mesmo este nobre momento de teatro, numa peça que finalmente dá início a uma carreira que se configura longa e plena de sucesso.
Longa vida e óptima saúde a actores e agentes de teatro de que nós, silenciosos e devotados espectadores, também honrosamente fazemos parte!

“Ao partir palavras” pel’A Escola da Noite, sobre textos de Ruy Duarte de Carvalho

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Publicado pelo Diário de Coimbra em 5 de Março de 2005

O melhor a fazer perante mais este magnífico trabalho de teatro seria tentar percorrer os mesmos caminhos que os seus criadores e dedicar às obras de Ruy Duarte de Carvalho a generosidade de atenção que está em olhar-se a obra de outros como se fosse nossa, reinventando-a para transmitir o que tem de lucidamente universal.
Fujo, por uma vez, da consideração merecida do espectáculo no seu todo, incluindo as alusões que fariam justiça às suas principais facetas de construção cenografico-dramatúrgica: um capricho de comentador sem compromissos, que tenho o raro privilégio de ser, permite-me pegar num detalhe desta preciosa encenação, elegendo-o à condição de instante eleito para guardar na minha memória de espectador.
Refiro-me ao que chamarei o “desencantar do gavião”, ou achado de um “mecanismo poético” com implicações visuais e simbólicas de teor especialmente raro.
Com efeito, o personagem João Carlos empreende a sua viagem através de plainos e matas africanas para ir tratar de um assunto de vacas, preocupação central da sua vida de homem pobre, projecto de velhice e herança única de seus filhos. A partir de certa altura é um gavião que o acompanha na jornada. “Vigiam-se os dois, o velho em baixo e o gavião em cima, para um paisagens e para o outro espinhos”.
Tudo isto é da literatura elegante e fácil de Ruy Duarte de Carvalho, mas é aqui que nos aparece a alegoria encontrada para o pássaro, aparição de duas atrizes jovens, esplendidamente claras e loiras, com uma veste juvenil sem alusões imediatas ao mundo da vulgaridade quotidiana.
Empunham, cada uma de seu lado, um singelo apetrecho feito de hastes finas de madeira que simula de forma mínima a leveza esquemática de uma asa.
Explico melhor: elas estão ao centro, movimentando-se a gosto da marcação cenográfica, como alma-grupo duma entidade alada, e as asas atrás descritas abrem-se para fora, servindo depois, à transparência dum enorme ecrã, para representar o gavião suspenso na altura quente e pesada de África, da forma tão rica como o descreve o autor do texto.
A parceria imaginária dos dois viajantes, tão diversos no destino como no elemento em que se movimentam, acentua-se de modo tão expressivo que, a partir de certo momento, é o gavião que nos conta a história do velho João Carlos.
Falta referir um outro adereço ou coisa fabulosa: duas cordas pendem da escuridão invisivelmente misteriosa do teatro, como suspensas da cúpula dum circo da minha infância. No extremo de cada uma dessas cordas, uma daquelas argolas redondas que seguravam os equilibristas, que as jovens “asas de gavião” cingem, cada uma em seu braço, traço de união entre elas e a transcendência do céu ignoto.
A conjugação destes detalhes e a alegre evolução das artistas até ao proscénio, donde nos falam subidas a um praticável, tudo isso entrou por mim dentro de tal forma que mal consegui aperceber-me do que diziam, tanto foi o entusiasmo de vê-las feitas um pássaro que plaina nas alturas para depois “…abalar em direcção ao sol, o que é dizer, para o alto, para a vertical do mundo que é onde o sol se encontra quando faz meio-dia…”.
A afirmação que a arte frequentemente nos traz das coisas de África tende sempre a apresentar-nos uma visão de um mundo mágico de dimensões e horizontes insondáveis, sendo as criaturas dali originárias portadoras duma sabedoria ingénua, mas tão providencial, que horizonte e sabedoria e dimensões inexplicáveis se fundem num mesmo todo que nem é deste mundo, nem destes tempos, nem de tempo algum que tenha visto vivo homem.
Esta encenação escapa magnificamente a esta tentação e, se digo pouco, com isso me acabo até um próximo espectáculo de vida, que é dizer: de teatro!…

Teatro do brasileiro Plínio Marcos pel’A Escola da Noite

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 4 de Novembro de 2004

A primeira virtude de mais esta realização d’A Escola da Noite, com versão e encenação de Sílvia Brito e as magníficas actuações de dois bravos actores, Carlos Marques (Paco) e Ricardo Correia (Tonho) é a de trazer ao palco a obra de um brasileiro, Plínio Marcos, presença forte e interventiva da sociedade problemática e da época conturbada em que viveu.
A cultura da pressa e da falta de tempo tomaram de assalto o quotidiano, mesmo que insignificantemente improdutivo, e é raro encontrar quem se dê conta da riqueza imensa do inexplorado universo da autêntica cultura brasileira.
Chão vasto como um continente, mescla de povos vários e cadinho de culturas confluentes, o Brasil é esse outro lado do mundo que escassamente nos atrevemos a (re)descobrir, para mal dos pecados da nossa lusitanidade.
A estética da peça, afinada por um saber fazer e por uma sensibilidade requintada que são a marca distintiva dos trabalhos da casa, traz-nos mais uma vez o eterno tema da violência sob uma das suas inumeráveis roupagens.
Sobre a plataforma forrada de branco, como qualquer ring de box, saltam de tantos em tantos minutos dois lutadores acossados pelo rigor de carências duma sociedade impiedosa e madrasta.
Na sucessão de quadros que se organizam como autênticos “assaltos” dum combate muito menos que simbólico, nem faltam, a cada canto, o lugar do alucinado repouso dos contendores, a toalha que limpa o seu suor azedo e a água com que se dessedentam.
Interessará considerar a forma como termina o enredo? Valerá a pena debater a melhor ou pior justeza da solução encontrada para desenlace dos amargos conflitos daquelas duas almas errantes, irmãos gémeos de outros tantos homens a braços com a sua própria angústia, filhos doutras misérias e doutras injustiças?
É evidente que sim e bem o sabe a cultura desta Companhia de Teatro que sempre nos traz, dignificada, a arte do gesto e da palavra dramatúrgica.
Sensibilidades oriundas de um século que foi indelevelmente marcado pelos vícios e virtudes da “hollywoodesca” fábrica dos sonhos, bem sabemos de que maneira é que uma obra “contra” a violência pode fazê-la passar como razoável ou até indispensável.
Relembremos, a título meramente simbólico, um clássico de clássicos, ainda a preto e branco: “O homem que matou Liberty Valance” de John Ford. Para que James Stewart, o democrático e delicado protagonista pudesse fazer reinar a lei e a ordem e tornar-se prestigiado senador, lá teve que puxar o gatilho na sombra John Wayne, carisma vivo da mesma América profunda que apoia tão visceralmente invasões e bombardeamentos.
Longe do artificial tratamento das imagens e dos avassaladores ritmos de narração do cinema e da televisão, o teatro conserva, ainda felizmente e sempre, o metal fino da voz tremente, o claro escuro da autenticidade, as pausas, os ritmos à nossa medida e a face descoberta do actor, eco e reflexo do nosso próprio rosto.
Na peça de ontem houve uma cena que todos viram e que não fazia parte do entrecho, que não foi escrita pelo dramaturgo nem fora sonhada pela delicada encenadora.
Os dois rapazes, actores de mão cheia, cairam ao fim nos braços um do outro empolgados pela emoção do recado entregue de corpo e alma inteiros.
À espontaneidade irreprimível do abraço não terá faltado o brilho diamantino de uma lágrima. Se foi deles ou se foi minha, não sei bem. Mas coisas destas, francamente, nunca as vi nos filmes de Holywood!…

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O Cerejal, de Anton Tchekhov pel’A Escola da Noite

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 15 de Junho de 2004

Ir a um espectáculo de teatro continua a ser uma das formas sociais mais inteligentes e interessantes de passar o tempo. Ali o espectador não é objecto de emoções injectadas pela paixão incontrolável ou pela excitação desabrida. A pessoa que vá ao teatro é sujeito principal duma acção estimulante do espírito e nada há numa peça, por mais excelente, que não tenha de ser arquitectado na mente de quem vê, de forma sensível e perceptiva. Mesmo que já se tenha visto antes, mesmo que se conheça o autor e o texto esteja bem presente na memória, a representação traz sempre consigo uma novidade, um desafio, uma renovação da nossa capacidade de ver. Que coisas poderá trazer-nos esta obra, cem anos depois de ter sido estreada no contexto específico do colosso cultural da Rússia de Tchekhov? Fixemo-nos apenas numa ideia que opressivamente condiciona todo o entrecho e que para mim é o personagem principal, sem ser actor nem figura material visível. A ideia de mudança, de princípio e de fim, de transitoriedade fatal de tudo aquilo que se agita sobre o palco cénico tal como no mundo e na vida.

A vida, palco infinito de miragens sobrepostas

No terceiro acto, enquanto Pétia e Liuba Ranevsky travam um diálogo absorvente e esta se confessa perdida e desorietada como num mar revolto, temerosa perante o desastre eminente, lá atrás no salão, decorrem festejos ao ritmo duma música excitante. O interessantíssimo e eficaz dispositivo cénico dá ao espectador essa simultaneidade de mundos que entre si se confundem, dizendo uma coisa as palavras e anunciando outra os sentidos, tal como nas contradições universais da vida.
O que é a verdade? pergunta Liuba a Pétia, discorrendo sobre todas as coisas graves do envelhecimento, da perda, do sofrimento e da dureza da vida: o filho morto no rio, a casa mãe à beira do abismo, longínqua e perdida já a doirada tradição da abundância e a certeza num mundo seguro e imutável. A intervalos regulares invadem todo o espaço a irrequieta música que não se cala, o bulício circense e a vitalidade sensual dos corpos que bailam. Exactamente como na vida de todos os dias, há cem anos como agora, o amor e a morte dão-se as mãos num encadeado de contradições sem freio, de miragens sobrepostas, de breves feixes de luz colorida que a obscuridade triste da realidade envolve, pesadamente.
Ermolai Alexeevitch Lopakhin é o novo rico que está ali, cheio dos argumentos indestronáveis do poder e do sucesso, para demonstrar que a vida prossegue, implacável, dando razão a quem pode enfrentá-la com imensa energia, rudeza e uma indispensável fortuna rara e casual. Ania, criança virginal de amor, acaba por fugir com Pétia depois de o ter simbolicamente armado com as suas perdidas polainas, frágil garantia de longa e proveitosa jornada direitos ao coração do futuro. Para a nobre família a catástrofre inevitável consuma-se entre preparos e arrumações diversas, árvores que se abatem e servos para sempre fiéis, até no inevitável instante da morte.

Mil janelas, mil bandeiras verde rubras

Pateticamente ausentes já, olhar ansioso fixo num ponto indistinto do horizonte, os velhos aristocratas despedem-se ao sair para um Paris simbólico que não existe para eles, porque não existe, pura e simplesmente.
Fazem-me pensar nas varandas e janelas do meu país ilusório e festivo, inundadas de bandeiras nacionais, conclamando as gentes a uma estranha unanimidade de entusiasmos galvanizantes. Será que os optimistas que assim se exprimem ignoram que o estandarte republicano, em seu contraste dramático de cores elementares, simboliza mais as dores e o sofrimento que a frescura da esperança? Quem há aí, dentre vós, que tenha reparado que o vermelho é muito mais que o verde, e apela à determinação, ao espírito de sacrifício e à aceitação do destino trágico?
Ou será que cem anos depois d’O Cerejal, a música fácil e a tontura das danças continua a iludir a palavra reflectida e o discurso incómodo da verdade?

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Daquel Abrente, o Centro Dramático Galego na Oficina Municipal do Teatro

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 4 de Junho de 2004

O Teatro é um acontecimento para se festejar de pé, ombro a ombro, com alegria e lágrimas que fazem tremer os lábios por se ter soltado nas veias o sangue espesso da verdade. Se isso for em praças de gente madura, tanto melhor, para que não ecoe solitariamente a voz que deve ser de muitos, para toda a gente.

“Daquel Abrente”, memória de uma alvorada

Em visita de qualidade veio da Galiza a proposta cenográfica citada, em intercâmbio organizado pel’A Escola da Noite que também se apresentou em Santiago de Compostela com trabalhos sobre Gil Vicente, para trazer testemunho do corajoso acontecimento, há vinte e cinco anos, da fundação do teatro profissional naquele país.
Se digo país penso na vontade de afirmação cultural e na capacidade de organizar essa e outras modalidades de intervenção, das quais se salientam hoje as peças escritas por dois notáveis autores galegos : “Laudamuco, señor de ningures” , de Roberto Vidal Bolaño e “O velorio” de Francisco Taxes.
Obras escritas nos anos setenta, num momento de transformações importantes na Península Ibérica em geral e na sociedade galega em particular, recorrem a uma estética de clareza e frontalidade emocional onde é possível descortinar raízes da expressão artístico-literária vincadamente autóctones umas, e de perfil universalista, outras.
Inevitável é mencionar a qualidade de amadurecimentos acumulados neste quarto de século por alguns dos actores em cena. A figura imensa de Rouco, por exemplo, feita por Rodrigo Roel, encarna a figura do servo e sustentáculo único da paranóia de um rei que já não é, no plano de descolocação patética de uma farsa que abre caminho à mais certeira ironia e ao mais devastador retrato dos poderes absurdos, das proeminências ridículas e das dignidades putrefeitas.
“O Velório”, que foi na época em que estreou uma obra revolucionária e que já em 1978 arrastou uma multidão de entusiasmo ao FITEI do Porto, ao qual regressa este ano, é o traço expressionista a branco e negro de uma explosão de indignações recalcadas perante o ocaso do poder, simbolizado pela morte da figura opressora e tutelar. A acção desenrola-se no clima de excesso e destemperança das festas e ritualidades parateatrais, apetecendo ainda mencionar o “esperpento”: género teatral que surge com “Luces de Bohemia” de Ramón del Valle-Inclán, em 1924, e no qual se fundem de modo particular o sentido da farsa e da tragédia.
Na continuidade que estes espectáculos evidenciam há que referir também o conjunto musical dos irmãos Morán, protagonistas do roque galego dos anos setenta e que actuam ao vivo ao longo das duas peças com sublinhados e intervenções de efeito surpreendente.

A fala galega, só deles ou também nossa?

Se há razões que a noite húmida e quente deste fim de Maio oculta em seu segredo, não deixa de ser impressionante que tenhamos podido assistir a todo um serão de teatro em fala estrangeira que todos nós fomos percebendo de maneira intuitiva. Assim à maneira de uma coisa antiga que perfeitamente reconhecemos, sem termossido obrigados a ter de estudá-la na escola.

Rappaport pela Bonifrates sobre a velhice com graça sem mentir

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 19 de Maio de 2004

Como é que é possível falar da velhice sem desmoralizar as pessoas que tenham mais de trinta anos, colocando na mensagem suficiente ardor de clareza e a dose certeira de verdade? Como é que é possível falar da velhice sem aborrecer as pessoas com menos de trinta anos, essa magnífica porção das nossas vidas durante a qual a perda da juventude, sem ser por lampejos vagos ou fatalidades casuais, parece ser um país tão longe, tão para lá dum oceano de sonhos magníficos, ainda por atravessar? Por uma vez na vida, caro leitor, à fé de quem sou, faça o que lhe digo: vá ver a peça que a Bonifrates leva à cena no teatro de bolso da Casa Municipal da Cultura, e não terá que se arrepender. As tarefas de dramaturgia e a encenação são de João Maria André, ficando eu triste por não poder detalhar toda a equipa de trabalho, tão eficaz e acertada que tudo na peça parece fácil.
A realização reflecte simplicidade sem falta de requintes: uma entrada através do cenário, ao fim dum amplo corredor atapetado com cascas de pinheiro a estalar debaixo dos pés que sugerem as coisas antigas e fundamentais da natureza; uma música de fundo composta para o efeito, sinalizando de forma inspirada as circunstâncias que viajam pela peça dentro; um lote de actores secundários perfeitamente credíveis que entram a tempo e fazem bem o que lhes toca sem vacilar e, para finalizar, como se fosse coisa simples, um par de actores principais dispostos a enfrentar denodadamente um texto que atravessou o Atlântico fazendo grandes sucessos em ambas as suas margens e tendo ganho esse raro e difícil galardão que é chegar a ser cinema, interpretado por actores mundialmente conhecidos.

A realidade maior também pode ser inventada

O entrecho desenrola-se num banco de jardim duma grande cidade em que a visita de intrusos maldosos parece ser coisa fatal e inevitável. Os protagonistas são dois velhos que fazem do glaucoma, das cataratas e dos acidentes ortopédicos histórias contáveis a par de muitas outras coisas vividas, arduamente sofridas, risonhamente sonhadas ou simplesmente… inventadas. Isso, inventadas, porque a invenção é um navio sempre pronto a largar, tenha o piloto um coração forte e sejam largas e generosas as velas da imaginação!… Ambas as figuras evidenciam a problemática universal das pessoas de idade avançada enquadradas, para mais, em contextos sociais desumanizados, indiferentes aos direitos dos cidadãos mais isolados e desvalidos. Victor Torres e Fernando Taborda são “Nat” e “Midge”, duas figuras cujas caracterizações dicotómicas tocam extremos tão frequentes no romance e no teatro (um “D. Quixote” e um “Sancho Pança”). Se o primeiro se exalta na exuberância idealista e na bravata destemida e vulnerável o outro rasteja, terra a terra, em obediência ao mais pragmático conformismo. Conseguem isso, aliás, operando essa coisa simples e tão natural em grandes actores de teatro que é o prodígio da transfiguração. Um é o cegueta assustado e escapista, o outro um impulsivo sonhador que ergue o braço frágil e a mão tremente como se fosse um desfraldado estandarte combativo, inebriado pelas palavras, como quem se olha ao espelho dos mais calorosos ideais.
Como acontece no discurso literário, além da acontecer na própria realidade, são duas figuras que se fundem numa amálgama de contradições produtivas, numa abundante percepção da vida, feita de uma imensidade de gestos com sentido e de raros momentos felizes com lágrimas ou sorrisos, em que a vontade coloca o destino nas mãos dos homens como uma flor gentil, demasiado frágil para que dure, demasiado preciosa para que desistamos dela.
Vá leitor, faça o que lhe digo: vá ao teatro! Vá, que é com isso que pode dar à vida um dos seus sentidos principais. Vá, enquanto é tempo, não venha a velhice um dia por aí apanhá-lo irremediavelmente desprevenido.

Ridiculum Vitae, solos para duas atrizes em noite de sonhos e de sombras


Publicado Pelo Diário de Coimbra em 14 de Maio de 2004

Helena Faria e Alexandra Silva são duas atrizes excelentes, cuja persistência nas artes de palco já granjeou um abundante lote de recursos expressivos de que dá testemunho abundante a peça que tem ido à cena no Inatel, depois dum largo percurso de representações noutros locais.
A peça é constituída por diversos quadros que fazem desfilar perante nós um variado grupo de casos femininos, criaturas situadas naquela margem da vida em que os desencontros e a caracterização problemática se cruzam com essa debilidade a que chamamos ridículo, e que tão mais frequentemente abunda do que à primeira vista pode querer parecer-nos.
A densidade de conteúdos e o primoroso desempenho ficam na memória de quem tenha visto a peça, como segredo e privilégio bem guardados.
Com efeito, numa noite de festas estudantis como há tantas, em que milhares de jovens saturam a cidade de ânsias naturais e alguma sofreguidão incerta de futuro, entra o espectador na sala enorme de espaços vazios e assusta-se, transido pela solidão que rodeia o culto excelente das palavras sentidas.
Leio o modesto folheto editado pela Associação Cultural Camaleão e reparo que a ficha técnica do cuidadoso espectáculo pede meças ao número de espectadores presentes.
E não é por ser esta a peça, nem por serem estas as actrizes (que já sublinhei serem excelentes), nem por ser esta a sala (que até está situada no caminho de toda a gente que atravessa Coimbra numa noite de sombras e sonhos!…)

A falta de meios, uma história mal contada

Cada sociedade elege os ídolos que quer e que entende, e as suas maiorias estão atentas a tudo aquilo que comporte uma compensação imediata, uma facilidade, um estímulo gratuito, mas nem sempre inóquo, partilhado pelos ecrãs da notoriedade.
Estar na crista duma onda iluminada, tonitroante de fama e de sucessos, eis o que cativa e reune multidões. E os pastores de entusiasmos sem sentido não regateiam os meios, os milhões estão ali, palpitantes, que não me deixam mentir.
Daí que me canse, e ofenda até, ouvir a cantilena roufenha da falta de meios para tudo o que seja um esforço semeador e inteligente.
O futebol é a mais milionária das encenações, a que agita mais dramas vazios e anima mais conflitos, a que está mais à mão de toda a gente para alívio de tensões diárias, de entusiasmos que sufocam sob a pressão de carências sem nome.
No Inatel, com as mesmas velhas roupagens que lhe conheço de há um ror de anos, um par de fervorosas beatas em delírio de idolatria folclórica, uma atriz porno remoendo no seu íntimo medos e desejos desordenados, uma feirante de língua de prata em fuga com filhos nos braços e várias outras figuras de vivo recorte cénico, desfilam perante nós com toda a eloquência de trajectos difíceis, verdadeiros, pungentes ou complexamente ridículos!
Na rua, a caminho da festa maior, vários grupos de estudantes caminham duvidosamente alegres (ou quase tristes…) alguns demasiado ébrios para darem bom nome ao vinho que beberam.
O teatro fica à espera deles. Um dia, quem sabe, talvez com ele se cruzem, em sua ilusão e ânsia de futuro.

O Teatro de Marionetas do Porto, sobre Magritte, no TAGV

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 21 de Março de 2003


A projecção universal do sucesso serve mal o génio dos verdadeiros artistas criadores, aqueles que implantam no cenário do mundo o rosto mais apreensível das suas contradições e perplexidades. Particularmente a publicidade, como praga invasora de vulgaridades parasitárias, capaz de tudo para cativar o olhar incauto do consumidor potencial, é um dos processos mais fatigantes do esvasiamento e até da falsificação da imagem como factor de encantamento sensível ou de descoberta reflectida.
O espectáculo de teatro que apresentou a companhia de Teatro de Marionetas do Porto defronta-se com a sobre-utilização a que a obra de Magritte tem sido sujeita , por ser um escaparate fortemente sugestivo de paradoxos e surpresas. A leitura da peça tal como foi explicitamente anunciada tem que contar, preferencialmente, com a familiaridade da obra do famoso artista belga, nacionalidade de criadores surrealistas de inquestionável talento e nem por isso tão universalmente aceites, como é, entre outros, o caso de Paul Delvaux.
Isto como resposta aos meus amigos que questionavam, à saída do teatro, a impenetrabilidade duma grande extensão do espectáculo, de cuja linguagem só escassamente se haviam apropriado, e aos quais fui dizendo que me parece que o trabalho das Marionetas do Porto trouxe até nós um ensejo generosamente abundante de interessantes alusões Magritteanas.
Acontece que na transmutação de reinos que vai da pintura ao teatro, a mediação que nos oferece a  propensão literária e filosófica da obra do pintor, não é fácil nem é imediata. Uma peça desta natureza não conta com nenhuma espécie de enredo, foge ao convencionalismo de um entrecho, cabendo à nossa disponibilidade a aceitação de alusões subtis, o entendimento do jogo cénico como tal e, por acréscimo, como veículo dum certo tipo de universo comunicativo.
De muito bom efeito me pareceu a sonoplastia, reforçada por uma acordeonista em palco que até a partir de simples toques mecânicos nas chaves do instrumento ia acentuando efeitos e sublinhando ruídos. O misterioso silvo marítimo que varre incessantemente o “plat pays”; o tic-tac dum relógio de sala, quinta-essência de todos os mistérios e de todas as contradições que o pintor incansavelmente glosou, assumindo com certa volúpia o convencionalismo burguês e urbano que a própria obra contradiz e o rumorejar da água nocturna que amortalha a mais dolorosa ausência, a mãe, a dona do rosto oculto pela “écharpe”.
Vieram até nós igualmente a surda respiração íntima, os sinos e as gargalhadas, e um sem número de palavras/aforismos que na obra em apreço são tão abundantes e essenciais. Para matizar um pouco o sentido de apreciação positiva que suscita este espectáculo, como tantos outros que nos visitam, uma pequena confidência lateral, em jeito de pergunta:
será possível que algum dia irrompa do palco, sem que ninguém espere, algo de verdadeiramente provocante e inovador, que desafie o sentido de medida da tal trivialidade balofa e burguesa de que Magritte foi tido como provocador e sabotador tranquilo?
Será que a linearidade intelectual, o humor comedido e a reincidência poética serão os únicos destinos possíveis das nossas timoratas pretensões e que “ceci n’est pas …”?

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R. MAGRITTE, A traição das imagens, 1928-29

Estreia de Fuenteovejuna pelo CENDREV, no TAGV, no Dia Mundial do Teatro


Publicado Pelo Diário de Coimbra em 19 de Março de 2003

A estreia nacional de uma obra tão fecunda como Fuenteovejuna de um dramaturgo tão enorme como foi Lope de Vega honraria uma cidade capital de cultura que fosse capaz de encher uma sala de teatro como o TAGV, no Dia Mundial do Teatro.
Porque assim não foi, uso o modo condicional, na fé de que, mais por ignorância simples ou por simples cansaço de tantas inaugurações e cerimónias, haja muita gente que ali não veio para dar fé da palavra clara de Lope, “ poeta máximo del cielo y de la tierra”, génio imenso, figura vibrante e quase indescritível, protagonista sem margens do bem chamado Século de Ouro de Espanha.
O primeiro utensílio notável usado pelo encenador Pedro Alvarez-Ossório foi a talentosa versão textual de Natália Correia que, escrito em 1973, “exalta e justifica a rebelião de um povo” pelas razões de opressão, prepotência e abuso que em qualquer parte ou em qualquer momento possam, infelizmente, verificar-se.
À elegância poética que o vigor de Natália soube associar qualidade dramatúrgica, acrescentou a concepção do espectáculo uma estética de claridade e de explicitude que é raro ver-se.
Séria e replena de sentidos históricos e literários, a peça de Lope é apresentada em registo de festiva exaltação do gesto e da palavra, sendo criteriosa a utilização que é feita do potencial de razões contraditórias que o entrecho disponibiliza.
Se digo criteriosa não quero dizer enfraquecida, pelos motivos que levam Laurência a invectivar, olhos nos olhos dos espectadores, a cobardia cívica, o escapismo e a moleza indiferente dos que se deixam afundar no abandono da sua própria honra.
Se digo criteriosa, repito, não é porque a configuração do inimigo não esteja bem explícita, no Comendador e nos partidários da sua laia, sem rodeios ou complexos de dúbia complacência.
Lope de Vega deu um sentido de utilidade política à sua obra, como um dos mais distintos criadores do barroco espanhol face ao fim da Idade Média e à ascensão do poder central do estado no dealbar da época moderna. Nesta encenação de Fuenteovejuna, porém, o ódio da colectividade pelos seus opressores é temperado por uma facilidade evidente na mudança de registo que da revolta vingativa por imperiosa necessidade se transforma em alegria ingénua. Para não falar da forma explicitamente irónica com que é tratada a figura dos monarcas, a rainha prepotente e sem escrúpulos e o rei amorfo e sem carácter.
A abrir o espectáculo veio ao proscénio uma atriz que leu o discurso de Tankred Dorst para o dia Mundial do Teatro. Entre muitas coisas interessantes ali foi referenciado o seu carácter de “arte impura”, por lançar mão abertamente de tudo o que se atravessa à frente do homem e à frente da vida. Parece-me aliás que posso utilizar essa ideia para elogiar esta peça que o Centro Dramático de Évora (CENDREV) estreou no TAGV, para honrar Coimbra, com a galhardia e talento duma pequena multidão de artistas de teatro.
Se não eram tantos assim e não chegavam a ser multidão, tanto lidaram e viveram em cena que, pelo menos, foi essa a ideia com que fiquei.

Baal de Brecht, pelos Artistas Unidos, no TAGV

Publicado Pelo Diário de Coimbra em 13 de Março de 2003

Por efeito da ideologia de crise há uma série de hábitos culturais que se vão perdendo, fingindo todos que é natural que assim seja, e que não há nada a fazer.
Lembra-se o leitor duns libretozinhos que se davam ou se vendiam antes de qualquer peça de teatro? Para agravo da minha ignorância noto que rareiam nos vestíbulos teatrais. Os que sobrevivem, ganham por vezes em aparato gráfico, mas limitam-se a ser a lapela de curricula que ninguém lê ou das notabilidades patrocinantes.
Baal, Brecht, os pavores da guerra de catorze, o expressionismo alemão, todos os seus antecedentes e contemporaneidades, abrem para um universo tão imenso, que eu não sei ao certo que parcela do estar, do dizer e do sentir daquelas figuras teatrais poderá habitar entre nós como aquisição da nossa sensibilidade ou do nosso saber. Parece-me óbvio que este tipo de acontecimentos corre o risco do equívoco se ao processo faltar uma indispensável aquisição de cultura, ficando apenas como figuras de estatística, alimento curricular para quem organiza, promove e patrocina, e pouco mais…
Abre o espectáculo o grande coro de Baal, poeta com nome de deus bíblico, tremendo em seu desespero de rupturas elementares, transitário insatisfeito da vereda incómoda que do desejo cego conduz ao embotamento e que deste leva à morte. Ficamos sabendo, pois, que é no território da expressão poética que se situará mais essencialmente a condução do espectáculo.
Nem a vertente cabaretística, nem a contextualização histórico-política, nem as notações erotizantes (é evidente o pudor no desenvolvimento das figuras femininas, tão ousadas noutras encenações) virão a assumir espaço equivalente ao mito de Baal, poeta associal, devastado pelo seu radical sentido do prazer e pelo seu egocentrismo sem margens, mais do que pelo álcool, cuja fruição é um combate permanente e obsessivo, como se dum símbolo ou dum destino se tratasse.
O cenário da peça é constituído por uma volumosa estrutura multifuncional produtiva de perspectivas artificiais, onde escassos elementos de diferenciação, nomeadamente a luz e os efeitos de fumo, vão introduzindo as necessárias alternâncias ao desenrolar da acção dramática.
A música é, como vulgarmente em Brecht, um poderoso mediador, para o que muito contribui a capacidade expressiva do protagonista (Miguel Borges) no traçar duma figura musculada, impiedosa e destemida. Declamando envolto pela neblina nocturna ou cantando de guitarra eléctrica em punho como um autêntico “rock and roller”, oferece-nos uma alusão a  mitologias doutras gerações, sustentando o texto de Brecht o espectáculo, a um nível de inconfundivel caracterização.

Finda a representação, que no conjunto pode caracterizar-se como uma impressionante e notável realização de teatro, atardei-me mais um pouco pelo vestíbulo, francamente emocionado, circulando por entre os grupos de presentes, procurando sem excessiva subtileza escutar uma ou outra ressonância ou comentário apreciativo.

As vozes, moderadamente colocadas, davam-me conta duma escassa paixão interpretativa, sendo evidente que o rio de gente que ali estava se ia esgueirando, como fresca água corrente, sem estremecimentos de exaltação poética, para dentro dum quotidiano cheio do pipilar dos telemóveis e de outras imperiosas necessidades e acertos dum descuidado porvir.

A Barca do Inferno no TAGV

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 2 de Dezembro de 2002

A Mostra de Teatro Vicentino prossegue com prazer e proveito. Dia 18 teve lugar mais um prólogo com apresentação de Joaquim Correia, ilustrado por intervenção do actor Nuno Pinto. A seguir esteve em cena a co-produção ENTREtanto Teatro, Trigo Limpo e Teatro ACERT, com uma Barca do Inferno que não vai esquecer facilmente. A apresentação, com multiplicidade de participações estético-teatrais que não é possível referir em tão breve espaço, quase dispensa uma apreciação crítica pelo facto de atingir aquele objectivo primordial em qualquer realização deste tipo, mas raramente conseguido: é um verdadeiro espectáculo, prodigalizando tudo o que é desejável num serão destinado à fruição do teatro, “escaparate de todas as artes” como diria José de Almada Negreiros.
A distribuição dos papéis, repartidos por apenas três actores, como pode ter acontecido na companhia de Gil Vicente, é apoiado por um registo musical expressamente composto para o efeito que chega a transportar-nos ao clima sumptuoso duma encenação operática.

O artefacto cenográfico principal, a barca, foge completamente ao convencionalismo da verosimilhança, conjugando a funcionalidade dum brinquedo de montar e desmontar com o fascínio que a sua concepção estrutural transmite, a qual um simples efeito de luzes transforma, ao bel-prazer do enredo Vicentino, de barca do inferno em barca do paraíso. Tal ambivalência estende-se à consideração que nos é proposta para as pessoas do drama. O diabo, representado por uma insinuante presença feminina, transfigura-se em anjo, pela simples adjunção dum lenço branco, translúcido e angelical. Iria jurar, contudo, que é diminuta a convicção posta nessa transmutação milagrosa. Com efeito, nem o anjo assume a transparência ingénua dos tripulantes do seu Batel Divinal, nem o diabo, tratado com evidente sobranceria por alguns dos condenados à Ilha Perdida, é tão assustador assim. Essa sobreposição de contrários, esse claro-escuro, enriquecem de complexidade a projecção produtiva do entrecho, na mente dos espectadores de uma outra época.

A predilecção de Gil Vicente vai claramente no sentido da provocação e da crítica,  e eu pergunto qual é a capacidade que poderá existir nos dias de hoje para trazer à luz da ribalta um tão completo elenco de figurões, traficantes e oportunistas como os que são ali desmascarados pelo julgamento explícito e clarificador da sátira.
Mais pergunto se é possível descortinar por aí, na actualidade, patrocínios tão abertos e tolerantes como foi, no seu tempo, o da Rainha Dona Leonor para com a produção vicentina.
Terminada a peça tive o privilégio de falar com um actor brasileiro, director artístico do ENTREtanto, que vive e trabalha em Portugal, na cidade de Valongo, cujas cinco freguesias possuem, cada uma delas, um teatro equipado em actividade devidamente apoiada.
Gostava de comentar também o excelente trabalho dos actores e mais a circunstância de todos os papéis do artista que menciono terem sido falados com sotaque brasileiro, mas o meu tempo de antena acabou e por isso me despeço, até um dia destes, numa sala de teatro perto de si!…

“O Clérigo da Beira”, no TAGV, pelo Teatro das Beiras

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 21 de Novembro de 2002

A Praça da República, descontando o urbanismo duvidoso que a tornou pequena, é um local enobrecido pelas memórias dos que por ali têm passado e pela merecida convivência que se deseja cheia de cultura e de paz.
Mesmo ao lado, o TAGV, obra que envolveu figuras gradas da nossa arquitectura tais como Cristino da Silva, Alberto José Pessoa e João Abel Manta, também autor dos graciosíssimos painéis de azulejos (quase) escondidos pelas paragens de autocarros, onde um rio caudaloso de trânsito torna desconfortável a requintada avenida que nos legaram os homens de há mais de cem anos!…
A Mostra do Teatro Vicentino continua a derramar os seus frutos. Na Segunda-feira, às 18 horas, teve lugar o habitual “prólogo de Vicente” com uma apresentação sobre O Triunfo do Inverno, por José Cardoso Bernardes, que pediu uma sensibilizada salva de palmas para a Sociedade de Instrução Tavaredense, senhora de amplo historial no ofício do teatro que ali foi declamar textos ilustrativos do que foi dito. Nos dias 12 e 13 foi à cena O Clérigo da Beira, pelo GICC, Teatro das Beiras, sediado na Covilhã, que ostenta um brilhante palmarés de realizações, com um núcleo duro de trabalhos sobre Gil Vicente.
Este “Clérigo” foi-nos oferecido num registo de ampla comunicabilidade, graça e colorido, tendo na música uma componente especialmente cuidada e efeitos cénicos que chegaram a certo requinte.
Um conjunto instrumental presente no palco, com a naturalidade cúmplice que alguns “efeitos de distanciamento” puderam evidenciar, foi-nos apresentando música composta para a peça, o que lhe conferiu um toque de quase exotismo, a fazer lembrar algumas sonoridades aparentadas, senão com Kurt Weil, pelo menos francamente  alusivas ao clima do teatro expressionista. Sendo bem equilibrado o conjunto de actores, dois houve que excederam a bitola do comum, reservando aos espectadores surpresa e entusiasmo: o “negro” e o “filho do Clérigo”, sem desprimor para todos os outros, claro. Em virtude da largueza de espaço que oferece o TAGV (em tudo diferente dos locais onde Gil Vicente teria actuado com a sua pouco numerosa companhia) e devido à vivacidade e movimento cénicos, perde-se por vezes uma larga porção das falas dos actores.

O Teatro Vicentino, de discurso tão vibrante de ironia e acinte, remete-nos desta forma para uma necessidade suplementar: a de irmos ler depois (se o não fizemos antes…) o texto literário que lhe corresponde. Contudo, é aí que começa uma “romagem agravada” pelas debilidades da nosso panorama editorial.
Experimente o leitor dar uma volta pelas livrarias, tente comprar umas obras completas de Gil Vicente e ficará a saber do que é que estou a falar!…Para aquelas almas cujo pesadelo é a invasão espanhola, recomendo vivamente uma visita às enormes colecções de divulgação popular do país vizinho (livres dos  entraves que os nossos editores não podem ou não querem abandonar) baratas, práticas e riquíssimas de anotações.

Gil Vicente, memória e criação, pel’A Escola da Noite

"Ensaios Vicentinos" edição "A Escola da Noite" 2003, foto Augusto Baptista

“Ensaios Vicentinos” edição “A Escola da Noite” 2003, foto Augusto Baptista

texto publicado Pelo Diário de Coimbra em 14 de Novembro de 2002 e citado (pgs. 323) na obra cuja capa está acima reproduzida.

Perante a estimulante ofensiva de espectáculos de teatro convém reforçar a notícia: A Escola da Noite deu início aos seus “actos de memória e criação” tão felizmente corporizados pelo seu surpreendente trabalho “Vicente na Escola”, em cena na nova Oficina Municipal do Teatro.

Se o leitor pensa que o palco cénico é uma abertura dinâmica sobre os mais vastos horizontes e uma explosão natural de segredos e surpresas; se não deixou enregelar dentro de si a memória dum clássico como Gil Vicente e acredita que a convergência de diferentes modalidades artísticas não estorva, antes reforça, a entrega da palavra como acto cristalino da mais pura transparência; se tudo isto for, associe-se prontamente ao grupo exigente dos admiradores do trabalho desta companhia. Desde o encaminhamento dos espectadores através dum “túnel de palavras” à visualização dos mais diversos ângulos do espaço cénico, desde a geometria variável de espectáculos proliferantes dentro do espectáculo propriamente dito, tudo amplifica o conceito de cena ou de acto, numa sobreposição de linguagens, ritmos, percussões, desfiles, acrobacias, onomatopeias e variedade abundante de outros utensílios, que um coeso e bem exercitado conjunto de jovens vai desenvolvendo em contraponto, ou eco, ou retrato simbólico das palavras ditas.

Contradições entre esta exuberância expressiva e o património, para alguns inamovível, do texto dramático? Não vi nenhumas, antes pelo contrário. Momentos tocantes e figuras encantadas não faltam ao longo desta apresentação de Gil Vicente, inovadora, cultíssima de referências e que apetece rever.
Lembro a elegantíssima Ama, tão bela e cativante, mas tão longe da imagem usual e fácil da adúltera, que trata os amantes com a mesma serena ternura com que acolhe o esposo, homem-barco que perde seus passos no mar e deixa as naus de papel, à deriva, no palco dos sonhos.
E o reencontro com um Vaqueiro tão autêntico e vital, tão palpitante de suor e de sorrisos, que entra em nós com um entusiasmo quase épico, com camaradas que brincam e saltam e dão a deixa para a palavra esquecida na torrente da alegria emocionada.
Que dizer de Maria Parda que surge como saída de uma gravura de Goya, da profundidade fantástica duma banda desenhada ou da lonjura dum longo “travelling” cinematográfico, transfigurado o solilóquio insatisfeito de securas e queixumes pelo cortejo de ritmos e acentuações dramáticas?
A figura do Velho da Horta, para mim geralmente arrumado naquela área menos espampanante do elenco vicentino, surgiu-me inteiramente humanizado e reforçado em toda a sua pujança de figura sensível e vulnerabilizada pela paixão.
A metamorfose por excelência é a daquela pobre mulher desvairada que se transforma em árvore pronta ao plantio e regada, que desperta feita uma das mulheres mais lindas que há no mundo e vai colher flores no próprio céu, para as oferecer a um homem encantado, como só encantados e iludidos podem ser os velhos, não por serem velhos, mas por serem apaixonados.
Estas e tantas outras figuras incontáveis, apaixonadas como nós por este novo e revitalizado Mestre de Teatros que foi Gil!…

“Visitação, Farelos e Índia”, pelo Teatro de Portalegre, no TAGV

Publicado no Diário de Coimbra em 9 de Novembro de 2002

Se o leitor foi deixando arrefecer dentro de si a bela paixão pelo Teatro Vicentino, se as disciplinas de Língua e Literatura Portuguesa lhe prejudicaram a figura do grande dramaturgo
ou se, pura e simplesmente, nunca teve a possibilidade de entrar muito nesse nobre assunto, “coxia central” vem relembrar o fortíssimo ciclo de realizações teatrais que trazem aos públicos de Coimbra aquela imensa figura da nosso património cultural.
A programação do TAGV vai ao ponto de oferecer, cada Segunda Feira às 18:00 horas, um encontro/conversa que se debruça sobre aspectos específicos do tesouro dramatúrgico implícito em cada peça que vai à cena. Coimbra 2003, “uma cidade viva”, apresenta o seu ProjectoVicente – celebração dos 500 anos da representação do Monólogo do Vaqueiro –  que se designa como Mostra do Teatro Vicentino, até Junho do próximo ano.
Atentos, pois, a este conjunto de realizações, e ainda outras, que não se esgota com isso todo o interesse que merece Mestre Gil. O Teatro de Portalegre, companhia profissional residente – activa desde 1979, com outra participação muito recente nesta cidade e no próprio TAGV, a peça “O Meu Caso”, de José Régio, no 75º aniversário da Presença – veio agora até nós com “Visitação, Farelos e Índia”.
Gente da raia, habituada a uma convivência permanente com o falar de além fronteira, traz-nos essa dimensão expressiva da cultura da época, fortemente impregnada de bilinguismo luso-castelhano.
A composição, mescla de três peças de Gil Vicente, aponta directamente para o tratamento pedagógico deste e doutros aspectos, que incluem a utilização extensiva do castelhano numa magnífica versão do “Monólogo” e noutros papéis, tirando partido duma evidente familiaridade linguística.
Em mais de que um momento o valor da voz como elemento puro de intervenção dramática nos é oferecido através dum longo grito modulado, escura ainda a sala e ausentes os seus actores. A esse expediente de surpresa adiciona o grupo a valorização dos muitos “apetrechos” do actor, as interpolações do canto, do ritmo e das inflexões da fala que se sobrepõem aqui e ali ao discurso dramático, além de gestualidades e trejeitos intencionados,  demonstrando a aplicação do bem preparado conjunto de profissionais de Portalegre.
A figura do marido enganado e da mulher desocupada e ociosa pela sua ausência (aqui primorosamente recortada por actor-homem); a felonia de empregados maldizentes, bem dispostos apesar de tudo; os exageros mal sucedidos do poltrão conquistador e o sucesso caricaturizado do namorado oportunista, a tanto monta o capital de contradições de conteúdo deste espectáculo donde todos podem retirar um valioso e bem tratado momento de convivência com a palavra do “pai de teatro” que foi Gil Vicente.
O grupo foi aplaudido por uma sala menos bem composta que o que mereceria o espectáculo, contando a plateia com um bom número de jovens destes que, nos bancos da universidade, aprofundam o seu interesse pelo tesouro da nossa dramaturgia.

MOSTRA DE TEATRO VICENTINO (publicado no programa de espectáculo):

VisitacaoJuntar por sua vez, três autos no mesmo espectáculo, tem a ver com outra ordem de razões: o Auto da Visitação (ou Monólogo do Vaqueiro) corresponde à estreia vicentina de 1502, aquando do nascimento do futuro rei D. João III. Quem tem Farelos? utiliza, pela primeira vez, o português como língua cénica e o Auto da Índia é sobejante conhecido, como leitura na escolaridade obrigatória. Pretendemos, ainda, dar seguimento a um possível desfecho da Isabel de Quem tem Farelos, Aires Rosado torna-se o Lemus e, finalmente, Ordoño passa a ser, anos depois, o Castelhano Vinagreiro. A figura da mãe não aparece como tal e surge, no Auto da Índia, corporizada pela Moça. Constança mantém o mesmo tipo de desejos e recusas de Isabel. A opção da distribuição do papel de Isabel/Constança a um homem coincide também com uma prática corrente em Portugal, até ao século XIX: a de serem actores masculinos a representarem personagens femininas. Esperamos ter dado um ar ligeiro a este espectáculo mantendo, no entanto, o essencial das intencionalidades de Gil Vicente.

Teatro de Portalegre

III Festival Escolar de Teatro de Tema Clássico

A magia do teatro grego, aqui tão longe, aqui tão perto…

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 18 de Maio de 2002

Aquilo que me ocorre dizer a respeito de vários dos últimos acontecimentos ligados ao “III Festival Escolar de Teatro de Tema Clássico” a que tive o prazer de assistir, não caberia em 20 “coxias centrais”!… Espero que os leitores venham a ter em breve mais detalhadas informações a este respeito, dado que a iniciativa se encontra – com a maturidade que todos os interessados lhe reconhecem – a prestar um serviço da mais nobre excelência para a sociedade escolar em particular, e para toda a comunidade culta que queira interessar-se pelo Teatro. Entretanto, umas breves palavras sobre três acontecimentos que me impressionaram imenso, e que reflectem o precioso labor do Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras e da Liga de Amigos de Conímbriga:
Um deles, integrado nas diversas Oficinas de prática teatral que o Teatro Thíasos levou a cabo, foi dirigido por Emílio Flor Jiménez, director artístico do grupo Balbo (Cadiz), em que participaram alguns dos muitos grupos de todo o país convidados para o efeito.
O Balbo é um grupo que trabalha com adolescentes e estudantes em zonas economicamente deprimidas, recupera jovens com problemas diversos incutindo-lhes autoestima e força de carácter necessários para se recuperarem para a vida.
Alguns desses jovens estiveram presentes e foi qualquer coisa de empolgante vê-los trabalhar, sob a orientação cheia de talento do seu director, com o apoio dum ex-colega recuperado da solidão das ruas, agora actor de teatro de grandíssima qualidade.
Quanto aos dois espectáculos que foram à cena em S. João de Almedina no dia 2 de Maio corrente, Electra de Sófocles e Lisístrata de Aristófanes, pelo grupo Calatalifa, meus amigos, venho de lá com os olhos rasos de admiração incontida e com o coração pleno de alegria!…
A primeira peça, uma tragédia, com versão e tradução do seu ensaiador Pedro Sáenz de Almeida, deu-nos um espectáculo de grande seriedade e imensa qualidade estética, que demonstra que é possível trazer aos jovens de hoje os valores universais do grande teatro grego, sem que isso seja um acto sacrificado de aborrecimento estóico. Tudo pelo contrário. Vi ali jovens portugueses vibrando um prazer cheio de respeito e admiração, enlevados pela poderosa actuação do grupo, rico na convicção, na postura, na palavra e na claridade lúcida com que derramavam sobre nós emoções com milhares de anos, tão novas como no dia em que foram concebidas!…
A segunda peça, uma comédia, foi servida com imenso sentido de humor e raríssimo instinto teatral pelo mesmo grupo, constituído por estudantes do Instituto de Villavicioza de Odón, que usa como seu nome o topónimo árabe da sua localidade: Calatalifa, em Madrid.
O conjunto dos dois trabalhos, apoiado por um reduzido número de pessoas e pelo seu director, ressuma  genuína paixão e alegria do teatro, revela uma intensa maturidade de propósitos e mete respeito, diria eu, que é o que me apetece dizer porque não me sobram palavras.
José Ribeiro Ferreira, alma impulsionadora destas preciosas iniciativas, lamenta-se-me da quase indiferença com que o premeia o meio envolvente, o que eu confirmei pela quase ausência de gente de Coimbra. As salas estavam cheias, mas de jovens que vêm de longe, ávidos e encantados pelo lauto manjar de cultura teatral que lhes é oferecido.
Um detalhe cheio de simpatia e de generosidade pedagógica: o bilhete para cada uma destas realizações, a preços bem menores que uma entrada numa discoteca, é um livro com o texto integral da peça que vai ver-se, com comentários e notas feitas pelos respectivos tradutores.
O riquíssimo programa anda por aí, estende-se a vários pontos do país, Coimbra e Conímbriga os mais bem servidos. Não perca tempo leitor. Aproveite, apareça, viva, se quiser, o prazer do Teatro Clássico!…

Com Tchekhov e o Fernando, num café ao lado da Sereia

Publicado Pelo Diário de Coimbra em 9 de Abril de 2002

Foi há quarenta anos mais ou menos que eu vi pela primeira vez uma peça de Anton Tcheckov, que começou a guerra em Angola, e já por essa altura sujava os dedos num  semanário que relatava os problemas na Palestina.
Para que não esmoreça em mim algum perfume dessa já distante juventude fui ver “Malefícios e outras virtudes do Tabaco”, pelos Bonifrates, com encenação de João Paulo Janicas, e fiz muito bem, para me retemperar de uma semana alucinante de tanques de guerra rugindo e guerreiros ferozes por ruelas desérticas de cidades desconjuntadas e  almas em desespero.
“Os Malefícios do Tabaco”, curto monólogo de qualidade antológica, é tema de abertura deste interessante trabalho de composição dramatúrgica e derrama por sobre os espectadores a poalha de estrelas da palavra única e prodigiosa de Anton Tcheckov.
Literatura de humanidade pura, saturada de vestígios do quotidiano universal, foi-nos falada com mansidão de gestos consabidos por um rosto feito macilento que oscila entre o temor e o cansaço. Um actor de figura cerimoniosa e vacilante como o nosso próprio anseio de felicidade, vacilante e inconformado como a nossa urgência de justiça e de paz.
Fernando Taborda, um grande Senhor do Teatro, vem até nós, mais uma vez, vencer-nos de prazer e encantamento.
Eu sei bem como anda o mundo e como parece descabido este assomo de sincera admiração, face às alucinações mediáticas dos nossos dias conturbados. É vital, contudo, que os nossos olhos permaneçam bem abertos para poder ver tudo aquilo que não é nem da morte, nem da tristeza, nem da bárbara violência.
Também Francisco Paz, um actor sempre rico de recursos expressivos, nos oferece um trabalho muito difícil, repartido por dois personagens diferentemente compostos entre o frívolo expedito sem estados de alma,  e o enfermo psíquico a braços com as pequenas obsessões da enorme e lastimável solidão.
Fico triste por não me sobrar espaço para falar dos outros actores, todos tão jovens, todos tão belos, de palavra tão clara e de gestos tão precisos.

Angola, viva a paz em português!…

Há quarenta anos Fernando Taborda preparava-se para combater em Angola e eu via desfilar homens fardados de kaki amarelo em ruas cheias de lágrimas.
Há quarenta anos já sofriam amarguras os futuros pais das crianças que atiram pedras aos tanques na Palestina.

Há quarenta anos eram petizes os generais que na semana passada, luzidios e fardados com esmero, se abraçavam convulsivamente em Angola, prometendo a paz.
O serão, após a peça dos Bonifrates, acabou bem,  num café ali ao lado de Sereia, com cerveja e todos conversando alto.

Como complemento histórico do texto acima (e isto não é teatro…) junto a reprodução de uma lembrança viva de há mais de cinquenta anos, para aí de 1961 (já eu devia estar na tropa…).
Uma fotografia do desfile de tropas que teve lugar em Leiria, com imensa comoção pública. A fotografia foi enviada para meus tios que estavam em Moçambique, e o texto abaixo é da mensagem que a minha querida mãe escreveu no verso da própria fotografia:

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Lorca pela Escola da Noite, no Dia Mundial do Teatro

Publicado Pelo Diário de Coimbra em 2 de Abril de 2002

FGL

Amor, amor
que estoy herido
herido de amor huido,
herido,
muerto de amor.
Decid a todos que ha sido
el ruiseñor.
Bisturí de cuatro filos
garganta rota y olvido.
Cógeme la mano, amor,
que vengo muy mal herido,
herido de amor huido,
¡herido!
¡Muerto de amor!

“…Para que quiero tu alma? Me dice. El alma es el patrimonio de los debiles, de los heróes tullidos y de las gentes enfermizas. Las almas hermosas están en los bordes de la muerte, reclinadas sobre cabelleras blanquíssimas y manos macilentas. Belisa! no es  tu alma lo que yo deseo! sino tu blanco y morbido cuerpo estremecido…”

Amor de don Perlimplín con Belisa en su jardín, Federico García Lorca

Quem quer que tenha dito estas palavras, onde ou como ou a quem as disse, que importa? Certo é que, só em dizê-las, se desenha a porção mais intensa do drama sem resposta: o encontro dum corpo-só-alegria-breve e duma alma sangrando as lágrimas últimas dum desejo impossível de concretizar.
Na noite escura do palco ou no palco escuro da noite, é de mãos dadas no leito que desabrocha a flor intensa da mais duvidosa paixão: a de um homem que inventa – escondido dentro do vulto da sua capa – o próprio aroma intenso da paixão juvenil, convencendo a bela amada duma alegria surpreendente oferecida à margem dos códigos sacramentais mais solenes.
Há contudo, na frase citada, um horizonte mais alargado que se adivinha, uma percepção mais aguda que a do simples equívoco passageiro da arrogância juvenil, ou do irremediável convencimento da morte: o que me ficou, no cruzamento de luzes que a acentuação cénica conferiu a esta pequena quantia de palavras, foi um estremecimento de verdade e de autêntica decifração do peso ou do segredo íntimo da alma, estupefacta por não ter de correr mais em procura das fronteiras últimas da realidade possível.
Só na versatilidade contraditória dos poetas, nas paisagens inventadas pelos pintores ou nas arcadas agri-doces do texto musical é que existe solução para tramas tão profundas e comoventes!
Sobretudo se forem servidas pelo expediente sagrado do palco cénico, em trabalho de bom gosto inexcedível, como foi aquele que nos foi oferecido pela Escola da Noite, no TAGV, como prenda de Teatro, no dia internacional do mesmo.
Num variado cruzamento de géneros de expressão teatral, desde a farsa aos títeres, ao canto lírico, ao drama mais subtil e recolhido de intensidade poética, o trabalho em referência foi ainda enquadrado por uma exploração do espaço cénico feita com uma inteligência funcional e estética de singular efeito.
É impossível e quase ridículo acrescentar conceitos e imagens que procurem dizer mais qualquer outra coisa sobre Federico Garcia Lorca, na sua enorme compaixão dramática e na sua reverência por tudo que é feito de palavra poética.
As varandas trespassadas pela luz matinal que escondem com seu brilho os mais intensos segredos da noite, a revoada dos pássaros nocturnos que são augúrio dos amores inconfessáveis, a opção trágica duma morte auto-infligida, tudo por ali passou e muitas outras coisas, no registo duma prática artística que interliga um surpreendente amadurecimento da técnica teatral e da cultura respectiva.

Operação Tempestade no Deserto

Foram muitas as outras acções decorrentes na comemoração do dia Mundial do Teatro.
À tardinha, teve lugar em Santa Cruz uma acção de autoria do “Teatro Anónimo”. As jovens artistas, exageradamente ornadas e em trajes sugestivamente “impróprios”, feriram a curiosidade geral provocando todos os circunstantes com os ademanes e piscar de olhos que a nossa sociedade só tolera à noite, às escondidas, ou em qualquer outro caso digno de excepção.

Como se divertiam elas mostrando a (bela) coxa doce, e como se babavam os maduros que, salutarmente provocados, as viam. Reparei que os jovens que por ali estavam, também se babavam muito, mostrando assim que, também eles, são convictos e apaixonados admiradores do verdadeiro Teatro!…

O Doido e a Morte, oriundos de Montemor

Publicado Pelo Diário de Coimbra em 27 de Março de 2002

 RB

Tenho uma predilecção irremediável pelos heróis anónimos, por esses a quem ninguém oferece flores, ou medalhas, ou perante os quais ninguém se curva em homenagens de merecida glória.
Penso que os professores do ensino médio, esses que cumprem rigorosamente as suas obrigações (e não são todos, é bem de ver…), que insistem em acreditar piamente na turbamulta de rapazes hiperactivos para quem ninguém tem tempo, deviam ser olhados com o respeito reverencial de autênticos salvadores da humanidade.

Em Montemor-o-Velho, alguns desses professores e mais alguns funcionários públicos, esses modestos obreiros do quotidiano imprevisível – aparentemente os únicos responsáveis por todos os “déficits” deste país de nababos inconsequentes – têm formada uma companhia de teatro que procura restituir a palavra e o gesto ao reino empolgante da curiosa fantasia, lá, donde nunca deveriam ter saído.

Fui ao Inatel ver a sua versão de uma peça de Raúl Brandão, autor a respeito do qual releio algumas páginas deixando-me envolver pela nostalgia das suas dores de consciência e pela coragem confessional que atravessam muitas das suas criações.
“O Gebo e a Sombra” e “O Doido e a Morte” são monumentos da língua e do teatro que bem merecem ser renovados e revisitados, tal como está fazendo o grupo de “theatro dos castellos”.
Um grupo de bravos actores, apostando toda a sua enorme disponibilidade, trazem até nós, em arranjo dramatúrgico cheio de soluções poéticas e bem conseguidas, a segunda das obras citadas.
Lida a peça há muitos anos, recordo-me sempre com o sentido de glória que o teatro sempre transmite às palavras dos actores, da fala do Doido, quando diz, com desapiedada lucidez:

“– Tu não podes chamar-te Baltasar Moscoso e existir por cima o céu estrelado!…”

Acontece que “o Doido”, nesta peça vinda de Montemor, estava a adivinhar-me o pensamento e parou um instante, enfatisando, com uma pausa cheia de intenção, aquelas palavras terríveis!…
Sem saber, restituiu-me esta sensação mágica que por vezes nos transmite o teatro, de sermos personagens eternas, desfilando por entre as nuvens.
O crítico, para não se esquecer que o é, poderia mencionar talvez um ligeiro “déficit” na concepção plástica do arranjo dos actores. Mas é tão bem vista e tem tanta subtileza aquela solução da caixa bombista que é feita de luz, que tudo isso não passa de um detalhe que a fé de quem ama o teatro vai concerteza ultrapassar com sucesso, um dia destes.
O registo “clownesco” e estentórico foi escolhido pela direcção de actores, mas há nisto uma determinação condicionada pela categoria comunicativa dos próprios artistas, que tem de ser entendida.
E como devem ter-se divertido em Montemor os alunos de Matemática e de Filosofia com a figura daquele governador civil com medo, autoridade que corresponde a alguém que eles, por mais que puxem pela cabeça, jamais poderão imaginar que significado tinha aqui há mais de cinquenta anos!…

Três horas esquerdas e a memória (inútil) da utopia, pela Companhia de Teatro Marionet

Publicado Pelo Diário de Coimbra em 22 de Março de 2002

Manet

De nada vale falar aos mais jovens de como era a baixa de Coimbra, há 30 anos, quando para cá vim.
E de nada vale construir na mente as utopias fáceis do coração pulsante da cidade onde todos poderiam encontrar-se, desaguando no verdadeiro rio de gente calorosamente livre, servida por portas abertas de hospitaleira luz.
Papagaios sonolentos continuarão carpindo a deserta noite, o soturno fim de semana, a pequena saudade dos cafés espaçosos, com espelhos, onde se cruzariam todos os olhares.

A noite chuvosa e fria de 15 de Março ofereceu-me, apesar de tudo, um estimulante exemplo de resistência activa às vicissitudes da razão prática: a Companhia de Teatro Marionet apresentou no Inatel o seu precioso trabalho de “Três Horas Esquerdas”. Integrando dois artistas cheios da vontade e do prazer do Teatro, oferece-nos qualquer coisa entre o absurdo e o surreal, numa sucessão de quadros amparados por uma constante invenção do jogo cénico.
Os breves textos do russo Daniil Kharms, recheados duma quase tristeza irremediável, são transformados por Mário Montenegro e Nuno Pinto numa agradável sequência de quadros movimentados, espirituosos e lucidamente absurdos.
A cena divide-se entre algo imaginário que acontece do lado de cá, onde duas figuras se multiplicam nos mais variados personagens, e breves desfiles irreais que se passam do lado de lá, onde planetas luminosos se revelam e se extinguem com a fugacidade nostálgica dos seres de vida breve.
Tudo isto desfilando perante o nosso olhar a metamorfose constante de dois actores cuja inventiva dramática e cujo talento histriónico multiplica por muitos a modesta quantia de duas pessoas.
O catálogo editado por altura da actuação do grupo no TAGV afirma textualmente a intenção de nos “fazer um paralelo entre questões sociais, políticas e culturais, sobre as quais Kharms escreveu na Rússia dos anos 30 e a situação em que vivemos nós agora, em Portugal e no mundo”.
É por essas e por outras que eu prefiro nunca ler os programas dos teatros antes de ver com os meus próprios olhos e ouvir com os meus próprios ouvidos.
O humor tão subtil e a caracterização cenográfica que nos oferecem os Marionet é tão longe, paira tão deliciosamente acima da nossa compacta desilusão, que é bem melhor assim, mesmo quando ironicamente configura o fantasma de alguma horrível coincidência com o real assustador.
A homenagem feita a Daniil Kharms, poeta que supostamente morreu com fome (como tantos milhões de pessoas que jamais leram uma poesia e que continuam a morrer, certificadamente, de fome), a opção em ter mantido no texto os nomes russos e a graciosidade dos desenhos do autor presentes no átrio desamparado e frio do Inatel, ficaram a pairar na minha mente como um bailado de espectros gentis.
Como será linda a Rússia dos músicos, dos pintores sacros e dos poetas!
Como será linda a Rússia dos grandes rios e das mulheres claras de rosto amendoado!
Como é empolgante a esperança grande das coisas novas e generosas e inatingíveis!
Vá lá leitor amigo, não faça caso nenhum de mim, mas por favor: da próxima vez não deixe de ir ao teatro. Quanto a isso não há dúvidas: vale sempre a pena!…

Ficha Técnica

A partir de textos de: Daniil Kharms | Tradução: Júlio Henriques |  Encenação: Mário Montenegro e Nuno Pinto | Cenografia: Rita Crespo Sampaio | Figurinos: Maria João Sampaio | Desenho de Luz: Pedro Machado | Fotos e video: Nuno Patinho | Actores: Mário Montenegro e Nuno Pinto

co-produção

MARIONET / Teatro Académico Gil Vicente

Album de cromos de riso a preto e branco, em estreia da Bonifrates

Publicado Pelo Diário de Coimbra em 6 de Março de 2002

A peça “Cromos” estreada na sexta feira pela Cooperativa de Teatro Bonifrates recuperou-me de uma tarde de alguns desgostos culturais deste meio tão avaro e tão soturno duma capital de cultura que ainda não é.
Ver tanta gente, sobretudo tanta gente nova, a trabalhar em teatro com tanta alegria espontânea dá ânimo a quem tenha o privilégio de ir ver o espectáculo.
A peça apoia-se no já habitual acerto cenográfico e de encenação cujo talento é o de parecer que não existe, sabendo nós – porque vemos – que tudo foi feito com a sobriedade elegante que só a maturidade inteligente permite.
Alguns momentos (e estou a falar duma récita de estreia) roçaram o apuro formal do profissionalismo, fluindo o discurso teatral muito para além das margens do texto, na afirmação dum jogo cénico desenhado pela naturalidade solta dum grupo permanentemente renovado, que sabe capitalizar uma experiência de vinte anos de trabalho, em instalações modestas e com meios muito reduzidos.
É evidente que a peça não é de autor português, que o tipo de linguagem e o nível de introspecção não correspondem à problemática  tal qual se põe entre nós, povo de dramas surdos e silêncios bem guardados.
Falta-nos o desplante blasfemo que têm na fala os outros povos da hispânia, falta-nos o destemor frontal e a inteireza de caracter de nos confrontarmos com os outros, se nem connosco próprios o fazemos.
Nós somos do sorriso enviezado, do silêncio estratégico, do “não me quero chatear”, das soluções cinzentas e do não dar confiança.
Ao português basta-lhe sonhar em ir para a cama com a cunhada. Se acontecesse, porém, não era com a irmã dela que o assunto iria ser discutido.
O pai das nossas esposas nunca terá sido gay (como é que isso se diz em português que já não me lembro?!…) e as mulheres daqui, quando discreteiam sobre questões íntimas ou problemáticas, há-de ser sempre com as palavras reservadas do mais razoável pudor.
Na energia comunicativa destes Bonifrates a apresentação dos problemas secretos e universais resulta em processo purificador porque se situa entre a consciência e a catarsis, entre o colocar e o retirar da máscara, entre o choque da surpresa e o seu desenlace revelado com humor.
O final, que recupera benevolentemente algum coração condoído de mãe iluminada, remete para uma aparição do arco-íris, poética de criaturas que não se deixaram abater por nenhum desencanto, prontas para novas contradições, novos mitos e decisivos recomeços.
Como espectador, o que me dói, é regressar mais uma vez, e sempre,  àquele desarrumado ambiente inóspito no qual vão laborando abnegadamente os Bonifrates.
Sempre pela mesma escada dos fundos tento esquecer os sanitários bem visíveis e desembarco quase às escondidas numa autêntico fundo de garagem com palettes carregadas de materiais diversos, quando não com caminhetas estacionadas, em convívio difícil com uma sempre entusiástica plateia que a autoridade camarária, agora renovada, não vai com certeza desiludir durante outros tantos anos.

“Sexo, drogas & rock n’roll”, no TAGV

Publicado Pelo Diário de Coimbra em 25 de Outubro de 2001

 

“Coxia Central” apresenta-se aos leitores do Diário de Coimbra.
Desse ponto estratégico é onde o espectador melhor observa tudo o que se passa em cena ou no écran e, caso o espectáculo seja enfadonho, pode sair facilmente antes do fim, sem ter de pedir licença a ninguém.
“Coxia Central” não tem o intuito de “ir a todas”. Prefere escolher, procurando ser cúmplice do espectador médio de Coimbra, o tal que é dito, pelo menos nas entrevistas dos actores visitantes, ser “dedicado e exigente”.

Uma coisa que está a dar são os espectáculos a uma só voz, protagonizados por artistas de televisão que fazem o “seu” espectáculo para refrescarem as raízes frente ao auditório vivo.
No TAGV, nestes últimos tempos já são três os que pude ver nessa versão. José Pedro Gomes em “O último a rir”, com muita gente, foi engraçadíssimo. André Gago em “Acerca da música”, em formato recital e com a cumplicidade de um pianista, foi um serão cheio de finura  e muito menor assistência (terá sido mero acaso?!…)
Dias 21 e 22 esteve Diogo Infante com “Sexo, drogas & rock n’roll” com texto dum autor norte americano e patrocínios de mais vasta escala (a citação da marca patrocinadora no texto da própria peça não passou despercebida…) que foi,  dos três, o que menos me agradou. A casa rebentava pelas costuras, e com isso se alegram sempre os amigos da palavra viva do teatro, da acção dramática rosto a rosto, em directo (que nunca é o mesmo que um reality show…).
Das cinco figuras ilustradas, três eram consumidores inveterados e outro era bêbado perdido, o único que parecia ter uma réstia de juízo dado que tinha preocupações ecológicas e com um discurso que o aproximou dum óptimo momento de burlesco desconcertante.
Outra das figuras, machão assumido, era-nos mostrado preso com algemas e tudo. Não ficámos a saber porque é que havia de ser, além de machista, recluso. Passou o tempo a fumar e a ajeitar as entre-pernas, o que estimulou gargalhadas com que a sala foi premeando o actor, às vezes mesmo antes de ele dizer fosse o que fosse.

A juventude é uma coisa muito bela e rir por tudo e por nada não se pode levar a mal a quem tem toda a vida pela frente. Eu por exemplo, depois de ter conhecido uma pessoa cuja filha lindíssima e talentosa foi completamente esfrangalhada pela droga, tenho imensa dificuldade de me rir com o tema.

Todos os factos, mesmo os mais severos, podem ser abordados pelo humor, seja na perspectiva do absurdo, do fantástico ou do surreal. Registos que a peça de Bogosian raramente atingiu, pelo menos no tratamento que lhe foi dado por Diogo Infante. Isto para não falar da falta que me fez ali a carictura do traficante ou, não podendo ser de forma nenhuma, um “dealer” já era quanto me bastava.
Ah, havia ainda um sujeito ridículo que oscilava entre o maricas e o impotente (que o que gostava era de fazer amor pelo telefone) e a finalizar um artista (dito frustrado) que afirmava desejar ser famoso e ganhar muito dinheiro, além de ser potencialmente muito vingativo, nihilista e uma série de outras coisas que não chegou a explicar bem.
Estes dois últimos, como o arrumador de automóveis, eram tão ofensivamente reais na sua vulgaridade patética, que não é preciso ir ao teatro para vê-los.
Acabou a peça, o actor viu prendados os seus dotes com muitos aplausos, e eu saí da minha coxia, com toda a agilidade, para respirar o ar fresco de Outubro.

Dom Juan de Molière pela Bonifrates, 18 anos depois

Crítica de teatro publicada pelo Diário de Coimbra, na minha coluna “conversas de pintor”

As luzes da sala já se apaga­ram, dando lugar à intensidade luminosa dos focos que animam o palco de vida própria, como em flutuação de sonho.
Ouve-se uma música vibrante e os primeiros actores surgem. Vêm lá do fundo, em marcha solene, até ao proscénio. No pequeno tea­tro de bolso em que actuam toca­riam nos espectadores da primeira fila se acaso estendessem um braço e uma mão. Mas não fazem isso. Oferecem-se sem palavras à curiosa paixão de vê-los, envolvi­dos por aquela música sincopada quase encantatória. O espaço que ocupam na nossa mente não está perto nem longe nem acima nem abaixo de nós. Evoluem no territó­rio que reservamos às nossas con­cepções abstractas, reflectindo em cor e luz a imagem que traçamos de nós mesmos, dos nossos dese­jos íntimos e da nossa concepção do mundo.
José de Oliveira Barata, encena­dor de mais esta peça, reserva para os actores mais alguns minu­tos de silêncio expressivo. Ele, que justifica no catálogo da peça as características do trabalho feito face aos meios com que labora a cooperativa não desatou ainda a corrente das palavras que nos levou ali e conseguiu – desde já, e de forma exuberante – pôr a rolar a locomotiva das nossas emoções e desdobrar, como num escaparate de sensações, a mais aguda curiosidade de todos os presentes. É essa a magia do Teatro? Não sei nem vou explicar. Mas vale a pena pensar nisso.

Tempo para dizer, tempo para escutar e entender

Tenho visto encenações de peças do Teatro Clássico em que o espaço da palavra é reduzido em beneficio da exuberância gestual e interpretativa dos actores. Faz-me imensa pena ficar preso a toda aquela “vis dramática” e sentir que as frases cavalgam soltas sem que possa captar o seu sentido pró­prio, gozando ideia a ideia sentido a sentido. É com certeza uma ati­tude consabida de encenadores e actores, receosos de que o discur­so dramatúrgico roube alento e traga o sono às plateias. Noutras encenações é a plasticidade radi­cal de trajes e do espaço cénico que tenta aliciar a atenção, consti­tuindo parte essencial do espectá­culo. Neste trabalho da Bonifrates não é assim. Ao desenrolar do texto foi dado um tempo próprio e um ritmo ideal para que do texto nem uma palavra se perca do princípio ao fim de toda a peça O que, aparentemente, não foi difícil a José de Oliveira Barata e a todo o excelente grupo de actores, por disporem dum precioso e impres­cindível elemento de coesão no jogo cénico que é corporizado pela interpretação de Fernando Taborda. O actor está continua­mente no centro de todas as aten­ções, repercutindo as vibrações mais íntimas do discurso dramáti­co em acentuações de efeito diver­so e sempre renovado,
À figura de Esganarelo foram reservadas contudo outras signifi­cativas responsabilidades. Ele não é apenas a personagem que faz flutuar à tona do sorriso (e até da gargalhada franca) todo o decurso da peça.  Modificando e actualizan­do os propósitos do texto clássico de Molière está-lhe confiada a tarefa de efectuar a ponte entre o espectador atento e a figura inve­jável e controversa do mito de Dom Juan.

O trágico burlesco em vez da mentira do “happy end”

Transfigurando o seu rosto a partir do momento em que as contradições do seu amo atingem o limiar do insustentável, Esgana­relo despede-se da comicidade quase ingénua com que nos embalara até esse ponto. Naquela brancura nova e artificial do seu rosto iremos poder projectar as interrogações a respeito já não apenas de Dom Juan e do seu mito, mas a respeito de outros libertinos, e de menos românticas libertinagens. O aplauso relaxante e o fim feliz não poderão deste modo vir connosco até que a noite se consuma num sono reparador. O alerta contra a hipocrisia massificada, planificada e cientifica, deixa a milhas de distância o engenho do sedutor de capa e espada. A consciência séria dessa opção fez com que Esganarelo, no momento em que enverga, ponta acima ponta abaixo, a casaca do seu truculento amo, transporte para um trágico burlesco a condi­ção dos ingénuos e das ingénuas prontos a indultar não apenas os magníficos desvarios do aventurei­ro, mas sim todo o rol de enganos em que nos mergulham os “vícios do século”.
O protagonista cavalheiresco é interpretado por João Paulo Janicas, que confere â persona­gem uma presença consistente e bem torneada. No discurso final de legitimação da hipocrisia diz-nos que a mesma “é um vício que está na moda e que todos os vícios que estão na moda passam por virtudes”. O débito destas pala­vras é atirado, ao espectador com uma porção tão convicta de ener­gia e raiva, que soa mais como um anátema ou uma severa advertên­cia.
Dos actores e restantes técnicos digo muito pouco, quase nada, por falta de espaço. São vários os rostos bem conhecidos do grupo que de há anos prestam o seu contributo de forma excelente. Constituem já um conjunto desenvolto e coerente, capaz de assimilar no seu seio aqueles que com menor continuidade por ali têm passado e continuarão a pas­sar, graças ao prestígio que a companhia tem vindo a granjear como praticante de um autêntico teatro experimental.

O pintor Carlos Madeira e a cultura estética do teatro

Não é possível fazer teatro que seja digno desse nome, sem fazer de cada nova peça um adequado estudo prévio, que domine o opu­lento quadro de referências cultu­rais que lhe são próprias.
As caracterizações de estilo, a escolha dos elementos de acen­tuação simbólica, a recusa do óbvio e a preferência pelo que é distinto marcam presença ao longo da carreira de qualquer companhia desde os primeiros esquissos que irão configurar o espaço cénico até à descoberta do último adereço.
A linha de continuidade cenográfica que tem caracterizado ao longo destes anos a Cooperativa de Teatro Bonifrates e a contextualizacão visual de cada trabalho apresentado, com produções de baixíssimo orçamento, constran­gimentos de espaço etc. tem esta­do a cargo do Pintor Carlos Madeira. Para além da notória competência dos diversos encenadores que tem passado pelo grupo, penso ser aquele um dos elementos chave dos êxitos artís­ticos alcançados e por todos reco­nhecidos.
No conjunto das cenografias anteriores da Cooperativa é visível a intervenção do artista numa grande variedade de opções plás­ticas, consoante o tipo de peça, e a abordagem – com engenho e grande comunicabilidade – das problemáticas da sociedade e do mundo actual.
Pelo cruzamento muito intenso de ideias oriundas das artes visuais e da comunicação, recor­do apenas o último trabalho leva­do à cena (“A Família Dupond”) que infelizmente não foi possível trazer a estas crónicas. De autoria da Espanhola Alicia Guerra e sob a direcção de João Maria André, efectuava um “raid” alucinante ao universo da violência social e familiar, no contexto dos diversos meios de comunicação social, ao qual não era alheio a própria banda desenhada ali evidente através das referências à obra do artista galego Miguelanxo Prado.