Category Archives: jornalismo

“Sedução, Conspiração” – ser ou não ser “thriller” erótico, eis a questão

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“Sedução, Conspiração” – ser ou não ser “thriller” erótico, eis a questão
Publicado no Diário de Coimbra no dia 15 Fevº 2008

NOTA: contrariamente ao habitual, e por qualquer acidente de utilização do ficheiro remetido ao DC por e.mail, o texto publicado continha alguns defeitos, nomeadamente a não inserção do último período, abaixo assinalado em bold.

No interesse imediato de quem vende filmes pode ser perfeitamente justificado classificar este “Sedução, Conspiração” como “thriller” ou “melodrama erótico de espionagem”.
O espectador avisado não pode, porém, abandonar-se a tais vulgarizações, devendo separar o trigo raro das realizações consistentes, do joio abundante das contrafacções.
Dizendo a abrir, com clareza, que se trata de um filme para maiores de dezoito anos, convém não perder de ideia aquilo que sempre repito: vulgares, moralmente inóspitas e até lamentavelmente violentas são certas fitas compradas ao quilo pelas televisões e assiduamente emitidas, em sinal aberto, com enormes intervalos de enfadonha publicidade.

Os países que perdem a memória não perdem apenas o passado, perdem também o futuro

“Sedução, Conspiração” é realizado por um cidadão chinês de Taywan, que assume neste filme a mais legítima memória histórica e política que interessa a todos os povos da Ásia, evocando um período de inenarrável e humilhante decadência da China, no contexto de um épico esforço de recuperação da sua dignidade e independência.
Ang Lee oferece-nos uma obra recheada de percepções de forte densidade, humanamente rica e ideologicamente muito estimulante. A escolha dos locais de filmagem, as composições cénicas e a riqueza dos detalhes de produção acrescentam-lhe, aliás, uma inquestionável credibilidade narrativa.
Realizadores e filmes como este fariam (e fazem) bastante falta a países aparentemente alheados do seu devir histórico, esquecendo aqui, falseando acolá.
Quanto ao panorama da crítica de cinema, mesmo a que desfruta da melhor visibilidade, é geralmente muito sumária e quase omissa no que toca a uma fundamentada contextualização político-histórica.

O teatro e o cinema… no cinema

São de salientar as referências ao teatro e ao cinema como linguagens universais de comunicação e sentimento. A peça de teatro como fórmula deliberada de intervenção e as citações de filmes de época com a protagonista em lágrimas perante uma cena com Ingrid Bergman a preto e branco são disso uma clara demonstração.
As cenas de sexo explícito transcendem em muito o seu teor exclusivamente erótico e reflectem uma parte importante das transformações de carácter que vão sofrendo os personagens ao longo do seu drama, face visível do íntimo segredo que os prende à sua humana contingência. Sem elas seria impossível compreender o enredo do filme e a trama de atitudes surpreendentes, quer da parte de Wong, aliás Wei Tang, quer da parte do senhor Yee, aliás Tony Leung − o Clark Gable de Hong Kong.
Um primeiro acto violento, próximo da tortura, desenvolve-se num complexo aprofundamento passional que se aproxima da sublimação no momento em que Wong canta para Yee, fantasiando-se como geisha, e culmina no acto incontido de traição que conduzirá à sua morte e de todos o grupo de revolucionários, para salvar o execrável agente da paixão.
A feição erótica do entrecho, que em língua portuguesa apenas li em análises muito sucintas, daria para alimentar uma outra história – uma boa história, aliás – em que a complexidade afectiva e a violência do desejo pudessem ser parte central.

O implacável poder elimina sempre as meninas Wong e protege cautelosamente os Senhores Yee

“Sedução, conspiração” é, em variados sentidos, um filme plural, muito rico de forma e de conteúdo. Termina, contrariamente ao que é hábito em muitas facilitadas visões da realidade, com penetrante sentido de responsabilidade estético-narrativa: os mais generosos militantes, aqueles que mergulharam na história sem objectivos de poder ou privilégio, tendo como única arma de combate o seu idealismo, são todos implacavelmente eliminados pelas máquinas políticas, à beira dum fosso de negrume e eternidade.
A forma como o realizador nos poupa ao momento exacto da execução sumária do generoso grupo de colegas de escola e antigos activistas de teatro é de uma preciosidade simbólica muito rara, e liberta o seu trabalho de toda e qualquer suspeição melodramática.
Se o sacrifício anónimo de tão imenso número de militantes reais como os da encantadora protagonista atingiu ou não os seus melhores desígnios, não cabe aqui avaliar.
Contudo, embora Ang Lee não deixe de evocar a amarga recordação de um tempo no qual brigadas de funcionários recolhiam em carroças os cadáveres dos esfomeados pelas ruas de Xangai, não tenhamos dúvidas que continua a haver lugar – na China como em tantos outros países – para algumas meninas Wong e, de certeza, para um bom numero de Senhores Yee.
“Sedução, Conspiração” – ser ou não ser “thriller” erótico, eis a questão
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“I am Legend”, mais um filme com título mal aplicado e pior traduzido, que diferença faz?…

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“I am Legend”, mais um filme com título mal aplicado e pior traduzido, que diferença faz?...
Publicado no Diário de Coimbra no dia 08 de Fevereiro de 2008

O poeta, crítico, ensaísta e homem de cinema Dan Schneider oferece-nos uma detalhada apreciação do livro de Richard Matheson, de 1954, cujo título é o mesmo do filme de Francis Lawrence actualmente a ser exibido em Coimbra.
Refere, entre muitas outras coisas, as duas obras cinematográficas de 1964 e de 1971 (“The Last Man on Earth” e “The Omega Man”) que também nele se basearam, sendo muito clara a sua preferência pela primeira, com interpretação do grande actor que foi Vincent Price.
Do livro diz-nos tratar-se de uma das melhores obras escritas a respeito da solidão humana, ultrapassando Robinson Crusoe de Daniel DeFoe, sendo igualmente uma desmontagem do mito dos vampiros em termos de modernidade.
Não hesita em colocá-lo a par de “Moby-Dick” e das “Aventuras de Huckleberry Finn”. Ultrapassa, a seu ver, as contingências de uma categorização na área da ficção científica ou da novela pós-apocalíptica, constituindo-se como alegoria subtil ao MacCarthismo e ao rígido conformismo dos anos 50, factos percursores das esterilizações político-culturais e ideológicas da contemporaneidade.
Conhecidos os rigores e a intolerância da América de Joseph MacCarthy e J. Edgar Hoover poderemos facilmente imaginar a coragem da obra de Matheson que, apesar de tudo, conseguiu impor-se como notabilíssimo autor de criações para o cinema, sendo um dos principais ficcionistas ao serviço da série de culto “Twilight Zone”.

Ignorar as evidências e aceitar qualquer patranha, eis outra forma de ser “feliz”

É muito difícil esclarecer neste breve espaço todo o conjunto de tropelias que Hollywood (um “bosque sagrado” como há poucos…) efectua sobre a obra original de Richard Matheson, bastando assinalar que a vira completamente de cabeça para baixo.
Nem o princípio, nem o meio, nem o fim, nem o cenário, nem a índole do protagonista e, “last but not the least”, nem o carácter dos implacáveis vagantes nocturnos têm nada a ver com os vampiros da sua obra.
Quanto às incongruências ou exageros ficcionais, ninguém parece ralar-se com isso. Numa Nova York apocalíptica e desértica há vários anos, Robert Neville continua abastecido de energia eléctrica, num apartamento de Washington Square onde continua a dispor de abundante água corrente até para dar banho a Samantha, sua cadela e companhia inseparável.
Não só no cinema, mas também na vida real, as pessoas continuam a acreditar piamente em tudo aquilo que querem, sem olhar às realidades mais objectivas, a toda a lógica evidente e até às suas mais elementares necessidades.
Será essa a receita para uma infalível e antidepressiva felicidade?…
No cinema não, quanto mais na vida.

Para salvar a humanidade, um tenente-coronel da US Army, pois claro

Como frequentemente acontece, é no desempenho dos artistas de renome (como Will Smith no papel de Robert Neville, neste caso) e dos especialistas em efeitos especiais que se baseia a enorme probabilidade de sucesso da grande “máquina dos sonhos”, já para não falar no imenso trabalho desenvolvido e nos milhões de dólares de destemido investimento.
Um dos segredos tem nome e chama-se CGI: “Computer Generated Imagery”, ou “grafismos computorizados a 3 dimensões” ou efeitos especiais por via digital, tanto faz. Da abstracção digital surge um leão, um tigre, um fantasma que mete medo como os diabos, ou trinta, ou trezentos, rugindo esqualidamente e trepando por arranha céus acima para matar o herói, entrincheirado e disposto a salvar a humanidade, já completamente aniquilada pela engenharia genética, entretanto muito na berra!…
A indústria do cinema vai alimentando bichas de frequentadores que, para além do mau hábito estereotipado das pipocas e da beberragem castanha, também de lá trazem reservas de curiosa fantasia, sonhos e combustível de ideias para consumo imediato e posterior.
Essa energia expande-se em todas as direcções, todos e cada dia que passa.

Se já estamos a caminho, saberemos para onde vamos?

Elevado número de crianças consome infinidade de imaginários de que muitas pessoas da minha geração não fazem a mínima ideia, por distracção ou desinteresse perante fenómenos que resolvem ignorar.
Uns evoluem não se sabe para onde, afundando-se os outros em saudosismos sem salvação possível.
Na fila à minha frente, sentavam-se duas crianças certamente com menos de treze anos de idade (barreira que nos EUA é acentuadamente recomendada aos pais e responsáveis para visionamento deste filme), que saíram da crispação do “thriller”, placidamente, para a animação consumista do colorido Mega Centro.
Que sementeira de emoções, que reserva de sonhos ou que recurso de energias da mente terá produzido naquelas cabeças de meninos um tão intenso desfilar de impressões?
Quem poderá adivinhar, se ninguém parece desejar saber?
Que normalidade serena será esta?
Para onde é o caminho, se parecemos saber todos tão bem para onde vamos?…

 

“Call Girl” de António-Pedro Vasconcelos, num cinema perto de si…

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Publicado no Diário de Coimbra de 22 de Janeiro de 2008

Envergonhado por uma ausência pela qual alguns devotados leitores me vão zurzindo a tranquila consciência de quem faz, não o que quer, mas tudo aquilo que pode, aqui estou desta vez para vos falar de cinema. Para um cinéfilo que não vai a todas e já não colecciona, como antigamente, os bilhetes e programas dos filmes que vai ver, as mais gratas referências que me ocorrem a respeito da obra de António-Pedro Vasconcelos são os seus magníficos “O lugar do morto” e “Jaime”.
Realizador com obra feita, embora em descontinuidade acentuada, queixa-se do mesmo que muitos se queixam: de não ter condições para prosseguir uma obra assídua e centrada naquilo que de melhor sabe fazer, ou seja: cinema de qualidade. O autor é também uma voz clara na denúncia de muitas artimanhas com que alguns habilidosos vão conseguindo “orientar-se” na confusa selva dos favores institucionais, o que não lhe deve facilitar a vida.

“Call Girl”, título equívoco para o sucesso

A expressão inglesa em si, que o Cambridge Dictionary me diz ser “a female prostitute who arranges her meetings with men over the telephone”, é traduzida pelos brasileiros com a frescura linguística que lhe é reconhecida, por “garota de programa”. Em português europeu (descendente da clássica latinidade), a tradução de “call girl” é… “call girl”. Dá mais pica, tem outro sabor, caraças!
O filme foi apresentado com certo sensacionalismo que me colocou de pé atrás. Se não fosse a persistência que alimento de ver filmes em português (oxalá esse princípio fosse moda), só o esquema temático que envolveu a sua divulgação me daria razões para ignorá-lo. Recordando contudo a riquíssima humanidade de “Jaime”, lá fui, esperançado como sempre, para um pedaço de tarde passado na “sala escura”. E não me arrependo nada.

A televisão portuguesa mostra obras medíocres porque quer, e ponto final

Pela minha parte, não tenho complexos nenhuns em afirmar que “Call Girl” é um belíssimo filme, de narrativa fluente, luzes e sonoridades expressivas, ritmos cuidados por um profissionalismo amadurecido e actualizado. Algumas vozes queixam-se da abundância das “gros mots”, copiosamente usadas pelos personagens e da exibição sem grandes peias da esplendorosa sensualidade de Soraia. Os críticos que tais fantasmas agitam devem usar umas asinhas brancas e andar muito distraídos. Qualquer adolescente novinha das escolas usa e abusa de tais expressões, na fruição plena duma novidade destravada pela contemporaneidade. Julgo até que, para elas, tais palavras já nem significam o que significaram, nem representam o que representaram para outras gerações. Alguns quilómetros mais a Norte, pertenceram sempre ao léxico mais vulgar e até castiçamente familiar.
Quanto ao erotismo, um dos condimentos evidentes em “Call Girl”, não vi nada que ultrapasse os atrevimentos desatados pela própria televisão e muito longe do que a Internet divulga escancaradamente. Tudo o que este filme nos oferece está dentro dum excelente sentido de medida ou seja, nada é mostrado que vá para além do que procura revelar. Aliás, surpreende o facto de ser apoiado por uma cadeia televisiva que produz obras de ficção sem os mínimos princípios de qualidade que abundam nesta realização de António-Pedro de Vasconcelos. Porque não coloca tal cadeia ao seu serviço uma tal estética ficcional, a mesma qualidade dos textos, a direcção de actores e um tão esclarecido sentido de mensagem?

Polícias assim, não sei se os há: mas apetece acreditar que existem!…

“Call Girl”, e só a repetição do título me causa um certo calafrio é, aliás, um magnífico exemplo de como a ficção pode transportar as contingências da realidade vivida e percebida, sem ser por impulsos traumatizantes ou pela receita da violência como aliciante mediático.
Uma palavra para o excelente desempenho dos actores, que demonstram um leque de recursos cheios de sentido criativo, tornando-se irresistível recordar a “criação” preciosa dum ministro “com sotaque”, como aqueles notáveis da toleima que andam a tentar inventar uma forma só sua de falar português, com “letgas tgocadas umas peuas outgas” para convencerem que são chiques. O filme procura demonstrar, como tantas obras do estilo policial, que há polícias humanizados, idealistas e de elevado teor de honestidade, com os quais o “poder-poder” se não dá bem. A última cena do filme, com dois homens cansados de guerra, saindo pela doce manhã para mais uma tarefa rude de perseguição ao crime, é empolgante e poética. Não sei se há muita gente assim, pronta a lutar com coragem pela verdade e pela rectidão. Mas conforta a alma do espectador pensar que sim.
Se esse instante for repartido por todos aqueles que foram ver o filme, daqui mando o meu abraço a António-Pedro, fazendo votos que continue a fazer filmes com polícias voluntariosos e apaixonados, mulheres bonitas que têm o seu ponto fraco e autarcas quase impossíveis, daqueles que acreditam que não se devem abater sobreiros!…

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O Cinema morreu, Viva o Cinema!…

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Publicado na REVISTA DE INFORMAÇÃO do Sindicato dos Bancários do Centro de Julho/Agosto de 2007

Numa Sexta-feira quente de Agosto a rtp2 presenteia a multidão dos cinéfilos com dois filmes da autoria de dois grandes realizadores recentemente falecidos. Os filmes estavam naturalmente disponíveis e, com pretexto na morte dos respeitáveis criadores, foram entregues aos (escassos?) espectadores a braços com a casualidade triste de não estarem algures, sentados em esplanadas defronte de bebidas loiras ou coloridas, mirando bronzes artificiais envolvidos por tecidos vaporosos.
A minha inclinação de criticar a política cultural das televisões portuguesas em geral e a sua política de difusão cinematográfica em particular − que são duas coisas que praticamente não existem − teve nestes últimos dias duas razões felizes para reservar silêncio: este serão de Sexta-feira e, há dias, a passagem dum extraordinário filme de 1992, de Michael Mann, tratando magnificamente uma das obras predilectas da minha estante: “The Last of the Mohicans” de James Fenimore Cooper.
Entre “Sarabande” de Ingmar Bergman e “Blow-up” de Michelangelo Antonioni (e são estes os dois filmes em referência) existe pelo menos o parentesco respeitável de serem obras de grande qualidade de dois realizadores notáveis, merecendo cada um dos filmes uma contemplação muito atenta e aprofundada, com ligações essenciais a toda a obra restante dos dois cineastas. Pela economia a que me força o pouco espaço disponível, refiro-me principalmente ao primeiro, devido à importância que ocupou o seu autor na geração de apreciadores de cinema de que faço parte.
Quando comecei a ver filmes de Ingmar Bergman a Suécia era um país longínquo, como hoje e sempre será, notabilizado pela ideia de progresso social, avanço cultural e liberdade. Para além das mensagens de ordem estética, da profundidade filosófica e até da densidade dramática que os seus filmes continham, havia neles uma atmosfera austera de reflexões enigmáticas, em branco e negro com meios tons riquíssimos, sob a luz misteriosa e ténue da Escandinávia.
O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, O Rosto, A Fonte da Virgem, Mónica e o Desejo, o Olho do Diabo, entre outros, foram filmes comentadíssimos e, melhor ou pior compreendidos, numa sociedade pouco preparada para a generosidade da circulação das ideias, lá foram construindo um universo de referências a que o decurso dos anos viria a acrescentar uma enorme lista da melhor qualidade: Lágrimas e Suspiros, Sonata de Outono, Fanny e Alexandre e Cenas da Vida Conjugal, para o qual remete a temática desta última obra, Sarabande, protagonizada, aliás, pelos mesmos actores.
Nos últimos filmes da já afirmada maturidade de Ingmar manifesta-se largamente a tendência reflexiva de um cinema de estrutura quase teatral, de grande austeridade, com poucas personagens, rico de longos monólogos ou diálogos de conteúdo muito denso, cuja aparente serenidade de vozes contidas não oculta a acentuada complexidade de conflitos e dramas íntimos.
A transitoriedade da vida, o absurdo da existência, a impossibilidade do amor, as disputas pessoais, a fractura entre as gerações, o dramatismo da morte e a insanável ausência dos que partiram são abordados sempre com grande sobriedade de meios a que o talento do cineasta acrescenta, no entanto, uma solidez estética inultrapassável. A lentidão narrativa de Bergman, a completa indiferença por entrechos rebuscados sem concessões à vulgaridade fazem-nos pensar numa outra cinematografia notável a que devemos alguns dos melhores momentos do cinema português de todos os tempos: a de Manuel de Oliveira. Não será necessário, como é evidente, tentar descortinar as semelhanças e diferenças entre obras igualmente notáveis de artistas muito distintos. Ideal seria, contudo, que a morte recente de grandes figuras da cinematografia europeia pudesse marcar, não o ocaso de uma forma riquíssima de expressão que já garantiu uma absoluta autonomia entre as artes, mas sim o reforço da sua capacidade de intervenção como instrumento de cultura e edificação da sensibilidade de todos os homens de hoje e de amanhã. Oxalá uma crescente disponibilidade do DVD e uma melhoria dos meios de fruição do cinema como obra de arte, possam vir a ser motivo de aprofundamento e expansão de obras não exclusivamente baseadas na violência, em frenéticos efeitos especiais e na vulgaridade de processos estilísticos.
Aqui, como noutras áreas de interesse por valores positivos, a atitude dos cidadãos tem uma virtude fundamental: ver obras de qualidade, fazer o seu comentário inteligente e exercitar a sua divulgação é do interesse não apenas dos cinéfilos e dos espectadores com memória do cinema, é uma ocupação que dá prazer e aproveita a toda a sociedade.

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O trabalho dos mais conhecidos e prestigiados realizadores de cinema depende sempre de grupos de trabalho de grande qualidade. Sven Nyqvist, director fotográfico, aqui à direita de Bergman, é um caso especialíssimo do qual dependeram grandes sucessos do mesmo. Granjeou notoriedade do mais alto nível, sendo-lhe atribuídos dois Óscares na sua especialidade.

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Fernando Dôres expõe no Museu Municipal, Edifício Chiado

sem título, caneta e aguarela, 43,5 x 30,4 cm

Uma das coisas mais bonitas que a passagem de uma pessoa pelo miolo da cidade permite é não se estar a fazer conta com nada, entrar por uma porta aberta e, como por encanto, encontrar um acontecimento, uma personalidade, uma obra apreciável e o ensejo de falar de tudo isso.
A minha passagem pelo Chiado forneceu-me uma dessas oportunidades: uma exposição de Fernando Dôres, para ser mais preciso. Nota: não esquecer o chapelinho na letra “o” (que o meu computador se recusa a colocar) e bem assim o “p” na palavra “Metamorphoses”, pois é esse o título da mostra apresentada. O conjunto de obras representa uma acumulação extraordinária de meticulosas atitudes. Cada trabalho denuncia esse imenso vagar do espírito que permite, em cada passo que conduz à sua produção, concentrar totalidades diversas em que cada parte é destacável do todo sendo, não obstante, parte inalienável da síntese final. Isto é: o observador pode congeminar a marcha dos gestos do artista criador; decifrar apetitosamente como tudo pode ter-se passado, encontrando em cada jornada um infinito prazer de descoberta e revelação.
Não obstante, e como já foi dito, o resultado produzido nem por isso é menos uma unidade coerente e expressiva.

Figura e fundo, uma dualidade sempre em evidência

A sucessão de episódios construtivos da obra tem outra característica muito peculiar: cada um se filia numa forma de pesquisa com características próprias; operações entre si muito diversas na manipulação dos materiais e na variedade das técnicas. Casar tudo isso duma forma dinamicamente harmónica e sugestiva é o segredo do artista. A nós é deixado o ensejo de observar cada trabalho desde a sua génese até ao requinte do enquadramento de apresentação − mais que uma simples e substantiva moldura, quase sempre tratada como elemento adicional de surpresa. Começo por aludir ao primeiro dos elementos presentes na “descoberta” de cada obra: a fortíssima categorização das ideias de “figura” e de “fundo”. O céu, o chão, o horizonte ou a misteriosa distância a que se situa esse “fundo” é um exercício de subtilezas, baseado em grande número de trabalhos numa técnica da projecção de partículas de cores diversas. Simples, dirá o observador incauto; rigoroso e expressivo digo eu, pela justeza e sobriedade das categorizações conseguidas. O recorte e a colagem são outro dos episódios facilmente despistáveis do processo criativo, sendo apreciável a singeleza e o engenho colocado na pesquisa de cada elemento utilizado. A decifração da origem de cada fragmento é pitorescamente poética, e revela a adopção de “achados” que equivalem ao embuste teatral de tornar complexo o que é simples e à simulação mágica de tornar simples o que é complexo.

Atravessar a ponte que nos conduz ao país das metamorfoses

Os gestos do desenho reforçados por uma ideia subtilíssima da pintura são o argumento principal de que dispõe Fernando Dôres na área da invenção (ou da revelação dos sonhos…).
Personagens que se desdobram noutras, fisiologias complexas, órgãos simbióticos que placidamente se enfrentam, todos oriundos de horizontes de estranheza que, contudo, não assustam nem amedrontam quem os visite. Há qualquer coisa entre o pitoresco das fábulas e o absurdo dos mundos fantásticos nesta congeminação metamórfica de seres bem dispostos que convivem perfeitamente com a sua própria complexidade. Metamorfoses, sim, seja a palavra grafada com éfe ou ph, entendendo-se a utilização desta última forma pela carga de expectativas que sugere. “Metamorphoses”, sim, como ponte que atravessa para o país das visões problemáticas, oportunidade de fazermos as pazes com o universo das coisas estranhas e inquietantes que não conseguimos nomear.

A rádio paga por todos nós na divulgação da arte e da cultura

Ouvi esta manhã pela RDP 1, em noticiário nacional, que certa estrela de Hollywood vai inaugurar uma exposição de pintura de seu pai, em Lisboa. A notícia não era dada de modo avulso porque uma comentadora suplementar dava referências quanto à qualidade da pintura exposta, influências registadas, etc. Os pais dos artistas de Hollywood têm todo o direito de vir fazer digressões a Lisboa, à Europa, a todo o mundo, enfim. No entanto, as emissoras públicas de rádio (que somos obrigados a pagar junto com o recibo da luz eléctrica, quer as ouçamos ou não) e em geral a grande comunicação social sedeada na capital (que toda ela é paga por todos nós…) incluindo a Antena 2, deviam procurar dar-nos a ideia que entre a fronteira espanhola e o Oceano Atlântico há algo mais do que Lisboa, sua cultura, seus personagens e seus acontecimentos.
O que nem sempre acontece, com manifesto prejuízo para todo o país que somos, e não enobrece particularmente os próprios habitantes da enorme cidade, outrora chamada “de mármore e granito”.


Este texto foi publicado pelo Diário de Coimbra

Com tantas serranias por aí à boa vida, olha o que havia de calhar a esta Serra, tão única, tão espelho nosso, tão igual ao que sonhamos

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Aos lugares pertence a paisagem como pertencem a cada pessoa o rosto, a figura, o carácter. É por me olhar ao espelho todos os dias que posso dizer aquela frase simples, de auto reconhecimento fundamental:
– Olha, aquele sou eu!
Rosto, imagem, palco do teatro ambulatório que mostra ao mundo o espectáculo do que nos vai cá dentro. Os grandes acidentes e fenómenos da paisagem, tal como qualquer pequeno recanto habitado, têm na sua imagem algo que lhes confere personalidade, consoante a capacidade do nosso sentimento em reconhecê-los e valorizá-los.
O caso das serras é, dentre todos, de uma natureza muito distinta. Aquela formidável concentração de massa e energia vital dá às serras o carácter de coisas transcendentes, com identidade e potencial simbólico.
A nossa Serra, continente indizível de episódios vividos ou sonhados, é aquele vulto familiar que avistamos de longe ao chegar, com emoção; é sustentáculo de uma confiança ignota que fica ali de reserva para todo o sempre, se partimos.
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Uma fileira de pilares, bandarilhas de vulgaridade no dorso dum mito…

Foi com desgosto consternado que notei, há tempos, que a Serra estava a ser sacrificada
por uma enfiada desses novos, pragmáticos e nada quixotescos moinhos de fazer electricidade. À banda, rompe-se a cicatriz de uma imperiosa “linha de transporte de energia”. Não vou contestar a medida, nem discuti-la, nem perder tempo entristecendo-me com mais este abanão no património paisagístico. Estamos mentalizados por forças esmagadoras e infatigáveis a prescindir de tudo − do mais sagrado ao mais singelo − em nome de razões materialistas que uma atroz ideia de “economia” torna inevitáveis.
Uma Serra com seu imenso vulto sagrado transformado em dragão de carrossel de feira, com as escamas do dorso feitas candeeiros de loja de bric-à-brac; já não posso embrenhar-me por ela em sonhos, com medo de tropeçar num molho de kilovátios.
E o mesmo sucederá às bruxas, aos lobisomens, às aves do paraíso, às fadas madrinhas e aos duendes!…
É mais uma razão pragmática, económico-financeira, a ganhar espaço ao sonho, aos valores imaginários, à alma das coisas. Por toda a Europa se instalam centrais eólicas como esta. Como são escolhidos os sítios, não sei. Do que leio e vejo nas notícias uma coisa é frequente: nos locais onde a paisagem é considerada um património significativo para as populações, são muito activos os movimentos cívicos que clamam em sua defesa. São formados para aquelas pessoas que têm respeito pela imagem do seu rosto, e que se reconhecem nas paisagens da sua terra como se se olhassem ao espelho!…

Este texto foi publicado no “Trevim”, na sua edição de 19 de Abril de 2007, e as fotos aqui publicadas foram tiradas antes do mau passo…

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semanário Trevim, "uma voz nova para uma Lousã renovada"

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Esta notícia fica aqui apenas como lembrança de um momento


Tenho o prazer de anunciar aos meus visitantes que se reforça a antiga amizade que me liga ao semanário Trevim, da Lousã, localidade onde também resido, mediante o aparecimento de crónicas breves com temas genéricos sob a designação de “bicas curtas”.

O “Trevim” toma o seu nome a partir do topónimo do cume mais elevado da Serra da Lousã e é um periódico muito conhecido e prestigiado da imprensa local, cuja publicação vai comemorar o seu quadragésimo aniversário no corrente ano, dado que começou a ser dado à estampa a 1 de Outubro de 1967.

Os painéis de azulejos da estação do caminho de ferro da Lousã, o que esteve antes e o que estará depois

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Uma visita feita à estação de caminho de ferro da Lousã diz muito mais ao cidadão atento aos valores do património no seu sentido lato do que ao artista cativado pela ideia de uns simpáticos painéis de azulejos.
Os 100 anos comemorados acentuam a noção de que nos encontramos perante um património objectiva e subjectivamente valiosíssimo, da época fantástica da expansão da ferrovia.

A totalidade do espaço ocupado pela estação, remetido à época que a viu nascer, revela amplidão de horizontes e de fé no futuro, os quais poderão certamente associar-se à melhor tradição do espírito produtivo da Lousã.

Oxalá que um tal conjunto possa ser mantido em todos os elementos que o caracterizam, se possível restaurados nos aspectos em que começa a tornar-se mais notória a sua degradação: além do mais, o “cais coberto”, exemplo que se torna raro dos edifícios de trabalho que tão numerosamente têm sido destruídos em Portugal, com o gabarito respectivo, a balança e um guindaste de operação manual, portentoso vestígio de arqueologia industrial, magnífico na singela inutilidade a que as modernas tecnologias o remeteram.

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O cais coberto – como provo o presente-futuro desta notícia – desapareceu, como “por desencanto”.

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Onde terá ido parar o precioso guindaste?

Sobre os azulejos

Os azulejos que se encontram na estação da Lousã, eles também carentes de cuidados de restauro, não são propriamente “painéis de azulejos” no sentido mais enobrecido que se dá ao termo.
As cercaduras, construídas com azulejos de série, nada têm a ver com o motivo central, não são do mesmo estilo nem da mesma técnica, sendo notório o facto de não serem das mesmas dimensões entre si, o que obrigou a pequenas manobras de aplicação, especialmente visíveis nos dois conjuntos centrais. Tais cercaduras, formadas por um encadeado singelamente decorativo de flores e folhas, são encimadas por medalhões que pouca qualidade acrescentam ao conjunto.
As três placas de azulejos que mostram a palavra Lousã, ao centro e nas paredes laterais da gare, têm cercaduras com o mesmo padrão, mas em azulejos visivelmente mais recentes, de vidrado liso e já não relevados como os das cercaduras restantes.
Os motivos centrais, ao gosto de ilustrações da época ou bilhetes postais, não se encontram datados nem assinados por Jorge Colaço, contendo a indicação, isso sim, de que foram produzidos nas “oficinas de Jorge Colaço – Cª das Fªs. Cª Luzitânia”, o que é diferente, como a sua execução amplamente denuncia.

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Se os interessados visitarem por exemplo a estação de S. Bento no Porto, decorada com os seus espampanantes vinte mil azulejos historiados, assinados pelo artista, ou os painéis do Grande Hotel do Buçaco, do mesmo autor, e fizerem a comparação com estes da estação da CP da Lousã, saberão perfeitamente de que é que estou a falar.
Termino fazendo referência a um objecto clássico em todas estações da CP: o indispensável relógio de Paul Gaultier, neste caso ausente por nunca ali ter estado, ou por ter sido removido.
Oxalá fosse esse o único elo em falta na cadeia de expectativas da velha linha de caminho de ferro, cuja estação de chegada é como as horas dadas por relógios ausentes, de mostradores com números muito avultados, mas sem ponteiros que esqueceram o que foi o antes e ainda não sabem o que será depois.

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Este texto foi publicado no semanário “Trevim” de 14 de Dezembro de 2006, no suplemento comemorativo do centenário do Ramal da Lousã (ainda circulava o comboio na linha que entretanto se esfumou, no fundo de um bolso qualquer…)

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Esta fotografia desértica fica aqui, imprecisa e desfocada, como um sonho ou lembrança do passado…

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O Mistério da Estrada de Sintra, de Jorge Paixão da Costa

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Inaugurar esta coluna destinada a trazer assuntos da cultura de todos os dias para as páginas da revista do meu sindicato se não é uma atitude que prime pela novidade (sou sócio do SBC, pelas minhas contas, há mais de trinta e seis anos…) é para mim uma oportunidade deveras emocionante. Aliás, fica para uma próxima ocasião descrever o que foi a tentativa, recheada de episódios, de tentar colocar de pé um grupo de animação cultural no seio do nosso sindicato, no princípio dos anos 70, com circulares em papel de cor, ilustrações e projectos mirabolantes que fariam corar certas vereações de cultura nossas conhecidas!…
Com propósitos muito mais modestos que nessa altura e assumindo o perfil baixo de alguém que deseja apenas conversar com os colegas, fica assim dado o tiro de partida para estas linhas que prometem falar de tudo o que seu autor julgue ter interesse, seja nas artes, nas letras ou nos espectáculos.

O cinema visto no Teatro Dona Maria Pia, uma coisa de outro mundo

Os meus hábitos de apreciador de cinema tiveram o seu início num momento mágico para aquela modalidade de produção artística, altura em que ainda não havia televisão, numa pequena cidade de província onde nem havia cinema todos os dias, nem eu podia frequentá-lo as vezes que me apetecia. A sala que melhor conheci era uma preciosidade raríssima, uma das primeiras salas de concertos com palco à italiana construídas em Portugal: o Teatro Dona Maria Pia em Leiria, cuja destruição ímpia foi apenas mais um desses crimes que entre nós vulgarmente são cometidos sem que o chão se abra debaixo dos pés de quem o pisa, ou o céu vomite raios e coriscos de imprecação celeste.
As salas de cinema da actualidade estão para mim, por esse facto, feridas de uma debilidade ambiental clamorosa, que retiram à magia da “sala escura” todo o seu mistério essencial, carente de ritos e de requintes que o tempo não apaga na memória das afinidades electivas, impossíveis de compensar com pacotes de pipocas e bebidas castanho escuro (hábitos dispersivos da atenção cinematográfica, além de lamentavelmente antidietéticos!).

Eça de Queiroz, aluno da Universidade de Coimbra

Tudo isto a propósito do filme de Jorge Paixão da Costa “O mistério da Estrada de Sintra”, recentemente estreado, e que os colegas na nossa área sindical poderão ver – pelo menos – em Coimbra, Guarda Leiria e Viseu. No curto espaço de que disponho é impossível dizer seja o que for de consistente a respeito deste espectáculo, e muito menos acerca das figuras e situações literárias que lhe deram origem. Fica passado o testemunho entretanto de que é sempre uma belíssima oportunidade a não perder ir ver filmes portugueses.
O cinema nacional, na sua variada riqueza e apetrechamento tecnico-cultural encontra-se recheado de valores do mais alto gabarito e merece a atenção (ia a dizer o patrocínio) de todos nós.
Devia, aliás, constituir obrigação cívica ir ver filmes portugueses, tal como deveria dar desconto para o IRS ver teatro em Portugal, ler obras escritas por autores portugueses, e um longo cortejo de “etc.” para toda a cultura nossa, de agora e de antanho, de todos os géneros e de qualquer autoria.
Num país cujos Sábados, Domingos e serões televisivos se encontram juncados de fitas americanas da mais desavergonhada violência (ontem ao deitar lá foi mais outra, com a “sugestiva” bolinha ao canto), ir ver um filme português é uma atitude de higiene cultural magnífica, que abre para o debate de questões que a todos interessam e a todos dizem respeito. Recomendo pois este interessante espectáculo de cinema, bem como a leitura da célebre obra de Eça de Queiroz e de Ramalho Ortigão que lhe serve de tema (sublinhando-se aqui a raridade preciosa de uma tal parceria de criatividades, não isenta de acidentes e paixões, como nos revela o próprio filme!…).
Se sobrar coragem sugiro igualmente um mergulho decidido na temática da notável “Questão Coimbrã”, que rompeu nesta cidade em 1866, ano em que aqui se formou em Direito um rapaz de 21 anos chamado Eça de Queiroz.
Ninguém vai ficar indiferente à substância desses debates e obras literárias, de que “O Conde de Abranhos”, do mesmo Eça, representa um superlativo da mais intensa frescura de actualidade!…

Publicado na REVISTA DE INFORMAÇÃO do Sindicato dos Bancários do Centro de Maio/Junho de 2007

Eureka, uma visita para crianças ao mundo da Física, com música e fantasia

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A peça comentada, que não tinha um folheto de luxo com ilustração própria, permite-me mostrar em sua substituição esta belíssima obra de Almada Negreiros, que vi exposta na Fundação Calouste Gulbenkian em 1984. É um óleo s/ tela (80 x 65) “Retrato Clássico de Arlequim” de 1941.

Publicado no Diário de Coimbra de 3 de Março de 2006

Largas dezenas de actuações e quase três mil espectadores depois, inicia agora um périplo diversificado a peça “Eureka, uma viagem ao mundo da Física” da Associação Cultural “Encerrado para Obras”.
Esteve no Museu da Física, fez parte das comemorações do Ano Internacional daquele ramo da Ciência e teve consultores universitários que para a mesma forneceram sugestões e deram pareceres válidos.
Por ter um enredo tecido sem palavras e por conseguir manter atenta a sua assistência, geralmente infantil, durante praticamente uma hora, o comentário a seu respeito – que não é fácil – terá que ser, pelo menos, diferente.
Se a dificuldade do trabalho é óbvia pela eternidade que quase sessenta minutos representam para a solidão do único artista em palco, imagine o leitor a dedicação, o generoso interesse e a variedade de recursos expressivos que foi preciso pôr em marcha para fazer surgir do nada uma tal peça, ainda por cima sujeita a um tema tão difícil como o de revelar e tornar atraentes leis e fenómenos do mundo da Física.
David Cruz e Estela Lopes, com apoio de larga equipa de outros sonhadores, lançaram mãos à obra de investigar os mil e um processos simples e sugestivos que poderiam desaguar nesse mar de fronteiras desconhecidas que é o da imaginação liberta e palpitante de uma criança, tão aberto e, contudo, tão vário e tão difícil de navegar com rumo certo.
Contrariamente à generalidade das peças de teatro que têm um texto, uma história e respectivas personagens como esqueleto do que vai ser vivido pelo espectador, neste caso foi preciso descobrir tudo. Esse tudo não foi apenas conceber e construir todos os apetrechos, mecanismos e engenhocas que, meio utensílios de saltimbanco, meio engenharia de efeitos especiais, foram dando corpo ao universo de artifícios que preenchem o espectáculo.
O recinto onde decorre o mesmo é tornado arena de circo, terreiro de acrobacias, plataforma de ilusionista, rampa de lançamento de luzes e objectos voadores, palco musical ou várias outras coisas de que me não lembro já!…
David faz isso com vocação de artista criador, com veia musical e com leveza de acrobata (que chega a correr alguns perigos…) mas, sobretudo, com o sentido de invenção que só uma enorme ternura e uma larga memória do universo dos espectáculos singelos podem justificar.

Uma passagem breve para o paraíso da infância

Há outra coisa muito importante na delicada atitude romântica que anima toda a sua actuação: numa época saturada de espectacularidades vividas em recintos enormes e recheados de artifício, David viaja para o mundo misterioso da Física levando os seus espectadores, por assim dizer, pela mão, tratando com eles à distância de um gesto, de um passe de bola ou de uma carícia.
Os adolescentes resistem mais ao convite que uma tal mensagem comporta. A sua mente começa a estar na dependência do choque de sofisticações que só a “high-tech” prodigaliza na esquizofrénica abundância dos “megabytes” ou no ribombar ensurdecedor dos “megawatts”.
É por isso que é importante que este espectáculo seja visto por muitas crianças, aquelas cuja mente está ainda a tempo de poder assimilar esse gesto simples e ingénuo que pode ter estado ao longo de séculos ao serviço da curiosa surpresa que anima a alma ao mesmo tempo que a comove.
Um sorriso simples e franco que não necessita para se enternecer que o sangue corra, ou um olhar de inusitado espanto que se desata sem ter de ouvir com medo, ao longe, o ribombar dos canhões.
Aos adultos que tenham a oportunidade feliz de assistir à peça, sugiro por todas as razões que o façam, não só pelas qualidades acima enunciadas, mas também por ser um reencontro, uma viagem no tempo, uma passagem breve para o paraíso da infância.

“Orgia” de Pier Paolo Pasolini, pelos Artistas Unidos, no TAGV

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Publicado no Diário de Coimbra de 23 de Fevereiro de 2006

Ir ver uma peça como “Orgia” de Pier Paolo Pasolini sem fazer um certo trabalho de contextualização ou sem dispor de referências sobre o critério estético e cultural que correspondeu à sua origem, pode largar o espectador no labirinto de uma perplexidade indesejável.
Menos mal que desta vez ainda tivemos a oportunidade de adquirir, a um preço módico, por adequada iniciativa dos Artistas Unidos e dos Livros Cotovia, uma tradução de dois originais de Pier Paolo, entre os quais o desta peça.
Quem tenha uma memória alongada da obra do autor, cujo “Evangelho segundo S. Mateus” de 1964 produziu no Portugal desses tempos uma impressão avassaladora, e se disponha a compulsar alguns textos de sua própria autoria sobre teatro, o suicídio, a “diferença” e muitas outras coisas, ficará mais à vontade perante esta anunciada “crónica das pobres emoções sadomasoquistas de dois cônjuges pequeno-burgueses”.
Como fazê-lo? Indo à Internet, é claro, bastando consultar a sempre enorme quantidade de “sítios”, entre os quais um que me embarcou directo num depoimento do próprio artista sobre “Orgia” e duma breve mas explícita entrevista dada na altura em que a peça se estreou em Torino, Setembro de 1968.
O endereço desse documento é compridíssimo e a sua publicação sob forma escrita seria improdutiva. Para os interessados, como é hábito, publico esta crónica no blogue acima indicado, onde ficará uma ligação directa para esse precioso documento, com o qual deixo os meus leitores, o que me poupa a exercícios de inútil erudição.
Quanto à peça foi uma magnífica oportunidade para conhecer o soberbo texto de PPP, à qual se fez ausente a plateia de interessados espectadores do TAGV, frequentemente numerosa quando se trata de peças “estreladas” por nomes apetecíveis do universo mediático.
Muita coisa poderia dizer-se sobre ela e sobre os inesgotáveis temas de que trata.
Ainda na qualidade de espectador fiel dos filmes de Pasolini, senti-me um pouco “arrefecido” pela carência de actores cuja figura, cuja voz e cujo estar fosse compatível com a habitual “paisagem humana” das suas obras de cineasta. Ninguém aqui deseja comparar evidentemente o elenco de uma peça feita na Lisboa dos nossos dias, e o de um filme original do autor, frequentemente confiado a actores arrancados por ele mesmo à vida vivida naquela margem mais intensa e radical em que ele próprio se movia.

“E agora divirtam-se”, disse o enforcado

É com esta frase, de uma ironia desapiedada, lançada pelo protagonista de Orgia aos espectadores – “seus inimigos” – que termina o prólogo desta peça, escrita por um autor que considerava o monólogo como o mais teatral dos acontecimentos, critério em que assentava a sua noção de “teatro de palavras”.
E já agora, venha ou não a propósito, sobre sexo:
Numa sociedade como a nossa, onde tão assiduamente se papagueia a legitimidade do “diálogo abertíssimo” e da “informação a 360 graus” sobre as questões da sexualidade, nem por isso a peça declamada no TAGV pôde ter concitado a curiosidade sobre este tema raro numa sociedade secularmente “letrada” e “culta” na qual, ou eu me engano muito, ou muita gente anda por aí a fazer de conta que não faz parte da paisagem.
A propósito dos incompreensíveis ausentes, a menos que já saibam tudo sobre a matéria ou estejam cem por cento enfadados pela estética pasolineana, poderia talvez concluir-se que sobre o assunto pesa ainda a aversão do medo, ou a indiferença amassada na hipocrisia, estigmas iguaizinhos àqueles contra os quais Pier Paolo esgrimiu a sua trágica e contundente mensagem.
Esta coluna, que fala apenas de teatro (ou seja, da matéria de que é feita a vida toda) não quer deixar de lançar este confidencial alarme, referindo muito de passagem um silêncio equívoco que persiste ou uma fome que, adiada, pode cavar na alma o poço frio duma indiferença problemática por nós mesmos.

“Domingo”, pelo Curso de Teatro e Educação da ESEC

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Publicado no Diário de Coimbra de 17 de Fevereiro de 2006

Resultante dum complexo exercício curricular é-nos apresentado este trabalho de análise teatral que todos fariam bem ir ver, dando-se ao trabalho de o discutir depois.
Antes do próprio espectáculo tive a grata ocasião de falar com um distinto protagonista das causas e das coisas do Teatro, detectando mais uma vez a gritante carência da ventilação crítica da cultura de Coimbra em geral, e do Teatro em particular, debate esse que é o elo fraco duma cadeia onde o trabalho e a dedicação abundam, mas que claudica contudo nessa vertente final de aprofundamento e reflexão.
O espectáculo visto depois demonstra à saciedade que estes estudantes de teatro dominam abundantemente as suas ferramentas de expressão, não havendo dúvidas quanto à profundidade da experiência pedagógica realizada.
O tema não pode ser mais actual e trata da mudança meteórica dos hábitos e cenários do consumo de bens de primeira necessidade, fenómeno que se cruza com muitos outros do domínio sociocultural.
O mínimo que poderá dizer-se é que estes futuros agentes de teatro entranharam já, de forma consistente, uma imensidade de epifenómenos do universo consumista (o Centro Comercial Vida Estável!…) de que eles próprios serão, como todos nós, sujeito e objecto de uma atroz vulgaridade de hábitos que se afunda não no seu próprio mistério ou no seu mágico fascínio: as pessoas que ali vão em chusma, não têm pura e simplesmente alternativas!…
Se as tivessem, ou se lhes fosse dado espaço público e estímulo cultural para as construir, faltar-lhes-ia talvez o espavento das cada vez maiores superfícies, onde o efeito hipnótico das luzes dilui a fleuma taciturna dos inúmeros visitantes, mais espectadores passivos do que habitantes do país pantagruélico das compras sem freio, a crédito ou sem ele.
Ao retrato que nos traçam não falta a sofisticada componente multimediática, as vozes “off “ ao capricho dos telecomandos, os persistentes ópios do povo e até o submundo da criminalidade, com aproveitamento inteligente do sugestivo espaço do Museu, sendo de efeito especialmente eficaz a movimentação trepidante de entradas e saídas sugerindo o bulício sem freio de espaços que se abrem e se fecham por sobre multidões saturadas de expectativa.
A raiz da questão, ai de nós, não se resolve porém nessa visão tangente à fenomenologia proposta. Perante a magnitude de um problema tão intenso seria necessário, pelo menos, beliscar um tudo nada as bases do processo, aludindo à natureza e aos mecanismos do sistema, para que a evidente ironia e imensa graça com que certas figuras são traçadas não passe pela consagração castiça de caricaturizações gratuitas, e para que se não resolva numa gargalhada toda a insatisfeita frustração.
Quando uma forma de arte nos apresenta a visão de qualquer coisa, mas de forma tão literal que se perde por inteiro a notação da subjectividade ou acentuação observativa, arriscamo-nos a não saber o que está em causa nessa realidade: se o retrato ou a figura retratada, se a forma ou o conteúdo, que neste caso pode ser a nossa própria circunstância.
A figura muito certa do encarregado de limpeza, por exemplo, cuja presença é tão serena e cuja voz tão bem timbrada, atravessa todo o espectáculo como figura de certo modo transversal, corporizando uma certa irrealidade complacente, oscilando entre nostalgia poética, brio profissional e um projecto de anti-utopias reclicantes que só ele entende.
Ao fim da sua tarefa vem até nós, aparentemente em paz com o dia de amanhã, e aperta bem sentado os atacadores das suas botinas de fino calfe, valendo mais o gesto, a média luz e a serena tranquilidade com que faz isso, do que quaisquer palavras que diga.
A próxima vez que for a um hiper-macro-centro promocional hei-de estar bem atento aos encarregados de limpeza, para ver se lobrigo algum assim, tão compenetrado e sereno, tão poético e cheio do fulgor do teatro.

Peça de José Sanchis Sinisterra, pelo Teatro das Beiras, na Oficina Municipal do Teatro

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Publicado no Diário de Coimbra no dia 07 de Fevereiro de 2006
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Na enérgica sociedade multicultural que Espanha é, José Sanchis Sinisterra ocupa o lugar distintíssimo de um artista que, ao mesmo tempo que se ocupa com raro talento de temas muito fortes de multifacetada concepção, vê os seus trabalhos abundantemente solicitados por teatros oficiais, pelo teatro comercial e por salas alternativas.
De referir, apenas como apontamento de interesse particular, a sua adaptação do “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago, representado no teatro Fígaro de Madrid, um dos muito abundantes momentos da sua obra, a qual se afirma como das mais comprometidas com o teatro do seu tempo. Criador de teatros e de Teatro, director desde 1958 do Teatro Espanhol Universitário de Valência, foi nomeado recentemente director artístico do prestigiante Teatro Metastasio Stabile della Toscana em Prato, perto de Florença, entre muitas outras distinções mencionáveis.

Conquistar público não é fácil e o verdadeiro humor também é difícil

Numa cidade como Coimbra, frequentemente visitada por companhias de “grande sucesso”, que reduzem tudo à acessibilidade num afã de “conquistar público” sem olhar a meios, José Sanchis Sinisterra representa um exemplo de exigência autocrítica que recusa a tendência “espectacular” de certa prática teatral, as convenções e os códigos do êxito “garantido” e o pós-moderno esplendor cénico, tão espectacular como vazio.
“Perdida nos Apalaches” é uma comédia de contornos filosóficos apresentada pelo Teatro das Beiras, com encenação de Gil Salgueiro, que nos poupa a uma abordagem demasiado hermética dos segredos da matéria, da energia, do espaço e do tempo que o texto possibilitaria, optando por uma ilustração sugestiva dos usos que governam a sociedade e por uma revisão das regras convencionais que regem a tradição narrativa.
Aludindo às teorias da relatividade e da física quântica, com uma incursão substancial no universo absurdo configurado na obra de Franz Kafka, o grupo da Covilhã compatibiliza humor e complexidade de níveis de narração com eficácia dramatúrgica e clareza de propósitos estéticos.
A cenografia é muito simples, mas tem o privilégio de trazer consigo um daqueles apetrechos mágicos que o verdadeiro teatro tantas vezes produz, para proveito de quem assiste: um espelho ondulado onde se reflectem adereços vulgares, transfígurados em seres sinuosos e pinturescos, cheio de contornos luminosos e deformações de requintado efeito.
Nos momentos mais altos em que a trama se desenvolve ao nível duma “twilight zone” ou quinta dimensão, que compatibiliza espaços e tempos distintos em aproximação romanesca da maior candura, a luz azul varre lá atrás planos de indeterminação, tornando-se evidente que não são os mais requintados meios que produzem milagres de efeito, mas sim a imaginação pura condimentada com talento.
A figura do “Segundo Vice-secretário”, invulgarmente bem caracterizado por Miguel Telmo, tem a virtude de conferir unidade e substância a todo o espectáculo, pelas intervenções bem colocadas no entrecho como elemento de ligação e, principalmente, ao abrir e encerrar da peça.
Define, com imensa graça, a postura formalista e insidiosa do candidato permanente, do carreirista sem remédio e do elo mais persistente e viciante do “sistema”, cuja truculência ridícula a sociedade tantas vezes impinge como combustível certificado (inevitável?…) do protagonismo político-institucional.
Infelizmente, o desvio burlesco que a figura evidencia nalguns dos seus mais hilariantes apontamentos não fica nada a dever ao amaneirado de certas figuretas da vida real, com a vantagem evidente que não nos mete a mão nos bolsos nem se candidata a figurar na galeria dos príncipes privilegiados deste nosso mundo pouco cómico, mas frequentemente dum absurdo sem limites.

“Uma história A Penas”, pelo Trigo Limpo Teatro ACERT, no TAGV

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Acert

Publicado no Diário de Coimbra de 28 de Janeiro de 2006

Em horário diurno e como espectáculo para as escolas foi apresentado este magnífico trabalho de teatro, que em programa é adequadamente classificado como “espectáculo para todos”.
Depois de o ter visto em contexto próprio (na sala onde os únicos adultos seria eu e as professoras dos jovens ali presentes) fiquei mais uma vez ciente das preciosidades do Teatro, mas preocupado com uma certa displicência, ou desacerto, ou falta de preparação com que são vistas e atendidas as realidades da cultura, da sensibilidade e da educação. Sendo excelente a peça, muito bem desempenhada pelos três actores em palco que deram vida a uma multidão de seres; sendo a cenografia fundamentada numa máquina poética engenhosíssima que sofria metamorfoses sem conta e segregava prodigiosa variedade de expedientes cénicos, sempre inesperados e magníficos; sendo tudo isto um facto e ficando muito por dizer da substância do enredo… o milagre da entrega não se processou da forma mais serena e desejável.

Um grupo indeterminado de jovens assistentes, parte significativa já pré-universitários, implantaram insidiosamente um anti-teatro de interferências que nem era resposta inteligente ao trabalho dos actores, nem demonstrava entendimento do que se passava em cena, nem revelava gosto nem respeito pela cultura. Pior do que isso, formaram uma barreira de inquietação malcriada entre o espectáculo e todos aqueles que estavam ali para beneficiar dele, no que tinha de tão inteligentemente construído.
Merece louvor a corajosa impassibilidade mantida pelos actores durante o espectáculo e a alocução comedida, esclarecedora e moralizante feita por um dos mesmos no fim do mesmo, para todos os assistentes. Se este tipo de coisas é frequente, parece ser de bom conselho que o discurso possa ser feito sempre, já agora, antes do espectáculo. E que os professores que tiverem a iniciativa e a generosidade de acompanhar alunos a acontecimentos, muito certamente fora do seu horário de trabalho, gastem um pouco mais do seu talento instruindo antes da hora, para não terem de recriminar depois.
Esta peça, seja dito com verdade, não era nada simples de conteúdos e solicitava também uma introdução explicativa, que não sei se teria sido possível. Seja-me permitido, já não como comentador de actos cénicos, mas como cidadão, sair do drama vivido às avessas naquela sala, para ir dar um passeio breve ao país da utopia:

Suponhamos que entre as escolas e o mundo exterior o diálogo é fluido e metódico, que aquelas recebem os artistas e que visitam regularmente os ateliers e recintos da arte e do teatro.
Sonhemos que as instituições próprias, desde os ministérios às autarquias até à própria família, vivem de mãos dadas e alimentam intensamente essa poderosa sinergia de sinais construtivos da inteligência.
Imaginemos que os professores têm condições nas escolas para organizar esse trabalho com a maturidade, o tempo e a continuidade que o valor da tarefa exige e merece.
Cenas tristes como aquelas que se observaram jamais aconteceriam, porque estariam uns muito bem prontos para dar e outros muito desejosos de receber.
De pouco valerá a pena erguer dedos acusadores e dizer que são aqueles ali que têm a culpa, porque assim e porque assado. Fazê-lo não passa de vingança abstracta e não conduz a soluções.

Certo é que, amanhã de manhã, milhares de professores de turmas espalhadas por todo o país lá vão encontrar aquela minoria de teimosos activistas irrequietos, dispostos ao anti-teatro, à sabotagem hiper-activa, ou mesmo, quem sabe, à delinquência agressiva. Porque terá de ser assim?
Que conceitos de pedagogia, que razões sociais, que solidariedade dos poderes e das forças organizadas será possível mobilizar para que certas comédias de hoje se não transformem em tragédias do amanhã?

Uma imagem e muito menos que mil palavras…

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A publicação destas crónicas tem tentado preencher uma certa escassez de opinião no domínio das artes plásticas, chamando a atenção para uma área de interesses que é geralmente remetida para uma zona muito pouco iluminada do espectro da comunicação social.

A ilustração deste “post” reproduz um trabalho de minha autoria, e é uma pequena “gratificação visual” para aqueles que tiverem a gentileza de aqui entrar.

Romeu e Julieta com encenação de John Retallack, no Teatro Académico de Gil Vicente

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Gravura de Claes Van Visschen (Londres 1616) que mostra o edifício do velho Globe Theater

Gravura de Claes Van Visschen (Londres 1616) que mostra o edifício do velho Globe Theater

Publicado no Diário de Coimbra de 21 de Janeiro de 2006

O teatro, para um sem número de gerações, foi encarado com a convicta gravidade que aproximava o espectador do sentimento de ter encontro marcado com destino, ficando as lendas, os mitos, as referências sentimentais e romanescas marcados a fogo na área indelével da sua memória. Dentre tais referências sobressaem Romeu e Julieta pela candura intensa da paixão que os atraiu e pela crueldade do destino que os separou.
Romeu e Julieta de Shakespeare e do Globe Theater ninguém deve saber ao certo como foram, mas as lembranças que ficaram de tantíssimas suas variantes do passado, de Prokofiev a Tchaikovsky, passando por muitas outras, não parecem receita fácil para as indústrias do espectáculo da actualidade.
O espectáculo que se refere em título teve sala cheia, apresentou elementos de valorização artística de muito bom nível, servindo-se de uma arquitectura cenográfica de boa concepção estética e muito funcional para uma grande variedade de efeitos. A marcação das cenas foi sempre muito fluente, servindo a luminotecnia para acentuar cromaticamente o clima psicológico de cada momento do drama, a que se somava a sóbria e inspiradora presença da guitarra (Vasco Abranches). As cenas de animosidade entre os clãs de Capuletos e Montéquios foram condimentadas com agressividade convincente, “animados” pela agilidade felina dos confrontos de espadachins.
A encenação tem assinatura dum nome muito conceituado e premiado, ainda por cima inglês (John Retallack), e é ele próprio que nos diz, no modesto folheto de apresentação do espectáculo que nos oferece o TAGV, desejar compatibilizar sobre o mesmo palco a tragédia e a comédia, culminando esta última vertente numa sequência “haut en couleurs” protagonizada por um dos mais mediáticos actores em cena (Diogo Infante), que não consigo definir com rigor em termos Shakespereanos nem sei se teria sido a melhor forma de aproveitar o talento e a presença em palco do referido actor.
A própria figura do velho Capuleto (João Lagarto), já perto das cenas mais pungentes da tragédia, entre esposa e ama (figura bem delineada por Custódia Gallego), quer no modo de falar quer no talante de actor, foi acentuando a faceta humorística da parte que lhe coube, com a eficácia expressiva que a sua longa experiência em palco permite, pouco ficando do seu trabalho que nos remeta para o perfil grave de um fidalgo de Verona em sérios cuidados de paternidade.
Receio que estas atitudes tenham contaminado um pouco o estado de espírito de um vasto número de espectadores que assim perdeu a concentração que o espectáculo solicita na área do sentimento e prejudicando-o, sobretudo, no plano do discurso poético, tão inigualavelmente rico nas obras do autor isabelino. Penso que esta mesma orientação pode ter retirado aos próprios protagonistas amantes um certo espaço de afirmação do seu drama grave e heróico, ao morrerem um pelo outro.
Remetidos para a área mais elevada do cenário, ganham em altitude mas perdem na proximidade, rarefazendo-se a emoção que instilam no coração do espectador e deixando-o sem aquele aperto na garganta, aquela lágrima tonta, aquela credulidade artificial na história da morte provisória de Julieta que convence tão pouco, mas que comoveu radicalmente gerações e gerações, porque era essa a sua vontade, a sua ilusão e, quem sabe, a sua necessidade de sentimento.

O Passado ao Espelho, máquinas e imagens das vésperas e primórdios da Photographia

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097 Pvista parcial do desdobrável que apresenta o Museu da Física (Universidade de Coimbra)

Publicado no Diário de Coimbra de 25 de Janeiro de 2006

No Museu da Física da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra tem estado patente ao público uma excelente exposição assim inspiradamente designada por Alexandre Ramires, com toda a experiência e conhecimento que lhe são reconhecidos no domínio da história da fotografia e da utilização das imagens.
Traz-nos documentos de preciosa e pitoresca referência ao imenso dealbar da photographia, perdão, da fotografia, e que estimulam a apreciação do novo relacionamento com as imagens que a nossa civilização tem empreendido.
No painel de entrada encontra-se a ampliação dum daguerreótipo executado há mais de 150 anos com uma visão de Santa Clara tal como era naquela remota primeira metade do século XIX.
Chamei-lhe não “um documento” ou “um aspecto”, mas “uma visão” de Santa Clara. É que entre o objecto histórico que trouxe a imagem até aos nossos dias e a sua ampliação a uma escala impensável para os seus contemporâneos, interpôs-se o processo inteligente da sua “escolha” como referencial, autêntica “figura de convite”, preâmbulo ou desafio de quem entrasse para ver.
Por acasos técnicos inerentes à sua antiguidade, uma espécie de cortina ondulante avança sobre a larga paisagem do lado esquerdo e há zonas de erosão em seu redor que lançam sobre o conjunto uma inquietante sensação de mutabilidade. Uma mais demorada reflexão permite pensar numa abertura para a indeterminação ou interferência da subjectividade…
O que significa que tudo o que a exposição documenta, acrescentado por tudo aquilo que entretanto se passou e abre para um futuro sem margens, resulta sempre da qualidade das opções que são feitas, perante cada caso concreto, dos meios que surgem ao nosso alcance.
Alexandre Ramires, ao ter escolhido aquela “photographia” e não outra, efectuou uma escolha para dar ideias, não apenas sobre a resultante de certos descobrimentos surpreendentes, mas do uso da visão para construir uma imagem de nós próprios na envolvente do mundo que nos cerca.

Almeida Garret, em pessoa!…

Entre daguerreótipos presentes há um que retrata Almeida Garret.
Confesso que sempre achei ingénuas e decepcionantes algumas das configurações idealizadas da figura deste expoente das nossas letras.
O invento de Daguerre fornece, apesar da sua antiguidade, resultados surpreendentemente eficazes de veracidade, como comprovam certas ampliações que delas é possível efectuar.
Olhar para Almeida Garret com toda a calidez dum rosto enigmático, mas fortemente expressivo, produziu-me uma emoção estranha e indescritível. A mesma que, ao tempo em que o invento ocorreu, assustou tanta e tanta gente que preferia não olhar essas estranhas imagens que, dir-se-ia, transportavam no brilho do olhar a própria vivacidade da alma.
Para além dos documentos que comprovam a celeridade com que a Universidade de Coimbra (única ao tempo em todo o nosso território) reconheceu e divulgou as novas descobertas, a mostra efectua uma contextualização cultural atendendo a antecedentes e consequentes, algo sugestivo do que se chama a “adesão às novas tecnologias”, variante da abertura a tudo o que é novo, mas sabendo escolher entre o que é interessante e produtivo e o que é supérfluo ou de falso efeito.

O lixo visual e o aviltamento dos imaginários

Depois do encontro com a lanterna mágica, com o microscópio de projecção, com as câmaras e vistas ópticas, a estereoscopia, a câmara obscura e a câmara lúcida; depois de aflorar o universo de certas palavras mágicas, os calótipos e papéis salgados, o colódio e as albuminas, as “mouse trap” de Fox Talbot; depois de rememorar nomes de insignes agentes de cultura – alguns injustamente esquecidos – como Antonino Vidal, Joaquim Augusto Simões de Carvalho, Joaquim Possidónio Narciso da Silva, o visitante será impelido a questionar a abundância sem limites de imagens nos dias de hoje e as opções a fazer perante a oferta devastadora que tem ao seu alcance.
Será que conseguimos fugir de forma eficaz à trivialização da imagem do mundo, evitando o empobrecimento ou até aviltamento do nosso próprio imaginário?
Saio da exposição já tarde escura, entro num luxuoso (mas atrasado) autocarro munido de écran que despeja imagens promocionais surtidas de “spas”, “health resorts” e “trainning centers” por sobre uma multidão sisuda de cidadãos ansiosos de chegar algures.
Passo ainda pela fachada da catedral futebolística da cidade, agora com a sua “óvnica” arquitectura cada vez mais submersa por estridentes painéis publicitários com centenas de metros quadrados de imagens sem nexo ou cabimento estético-urbanístico.
Recordo o que me disse Alexandre Ramires a respeito da preservação da memória e da invasão, sem lei nem gosto, do lixo visual.
Oh, como adoece o horizonte entre bosques queimados e anúncios de coisas vãs!…
Oh, que falta sinto de um cidade capaz de acolher hospitaleiramente o meu olhar, sem a buzina esquizofrénica das coisas que não preciso e a beleza artificial dos estereótipos sem alma!…

Acabar muito bem o ano sem ter de ir a um “réveillon”

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087 p Trabalhos de Betty Woodman presentes na exposição no MNA, “Vista de uma janela no Verão”, jarras divididas, faiança vidrada, resinas epóxidas, laca e tinta; 103x98x26 cm

publicado no Diário de Coimbra no dia 9 de Janeiro de 2006

Julgo que uma das tarefas mais difíceis para o cidadão dos dias de hoje é a de procurar libertar-se das fatalidades mercantilistas e mediáticas que nos “oferece” a sociedade.
Inicialmente destinadas a tornar fácil, aprazível e, se possível, requintada “a qualidade de vida”, certas encenações parecem-me, cada vez mais, rituais monótonos e completamente anestésicos da consciência activa, seja o que for que assim procure designar-se, com a única virtude aparente de constituírem “bons negócios”.
O Natal e o fim de ano são um período ideal para exercitar o direito, ou melhor, o privilégio, de “fazer outra coisa”, de “não ir por ali”, não tendo de nos sentirmos frustrados por não haver absolutamente nada que comemorar.

Sintra, para ver algumas coisas raras

Sintra está visto. Mas muitos do que falam assim nunca foram ao Parque de Monserrate, passeando calmamente através da humidade preciosa que alimenta fetos, cascatas, árvores assombrosas e o antiquíssimo relvado, de forma a estarmos ali como num cenário de outro mundo. O palácio em si, contrariamente ao que nos afirmam folhetos e oficiais de turismo aparentemente muito conhecedores, não é visitável. Mas esse é apenas um de não poucos disparates a que terá de habituar-se o visitante do nosso património artístico e cultural.
Poucos metros à frente, a Quinta da Regaleira, em cenário fantasioso oferece a ressonância dúbia de secretas e ocultas mitologias, essas nada menos que exóticas.
No Sintra Museu de Arte Moderna (por quanto tempo ainda museu, e por quanto tempo ainda de arte moderna?) encontra-se uma magnífica exposição (Fernando Lemos e o Surrealismo) que efectua o cruzamento muitíssimo bem documentado da obra daquele grande artista com um conjunto riquíssimo de obras do referido movimento que pertencem à colecção Berardo. Apoiada por um excelente catálogo de preço moderado, proporciona uma longa e proveitosa visita, através não apenas de salas espaçosas e abundantemente preenchidas, mas também de uma época e de um tempo cujas implicações e potencialidades culturais e estéticas se encontram bem longe de estar prontas para a ultrapassagem da indiferença ou para a heresia da insensibilidade. Para ver até 30 de Abril.

A planície de Setúbal e os seus inesgotáveis horizontes

E a península de Setúbal, também está visto? Por mais que se regresse e sempre que se explore, concluir-se-á o contrário.
À Quinta da Bacalhôa, em Vila Fresca de Azeitão, acontece um pouco o mesmo que ao Palácio de Monserrate. Está tudo muito bem explicado num folhetozinho raro, que é preciso marcar visita com 24 horas de antecedência, mas se não fosse a gentileza tolerante de quem toma conta, bem tínhamos dado com o nariz na porta. Valeu-nos na canseira de andar à procura da visita um restaurante mesmo ao lado que não deixa ficar por mãos alheias a hospitalidade gastronómica dos povos da região, o belo vinho e a simpatia do acolhimento.
Do cimo do castelo de Palmela vê-se quase todo o mundo, incluindo terra, mar e céu. E também se vê Setúbal, que é para lá que vamos deixando atrás uma riqueza imensa de monumentos, igrejas preciosas recheadas de painéis de azulejos, paredes de branco ancoradas na terra plana do que já é, sem equívocos, terra alentejana.
Numa casa minha conhecida, o antigo edifício do Banco de Portugal, espera-me outro momento de entusiástico requinte: a exposição “Descobrir o Japão, de S. Francisco Xavier a Wenceslau de Morais” contém, além de outras coisas, um conjunto de estampas japonesas da colecção de Manuel Duarte Paias, apresentado como “o armário milagroso” de Wenceslau.
Tais gravuras (Ukiyo-e, expressão japonesa que significa “imagens do mundo flutuante”) terão, segundo alguns, origens numa visão budista da vida, e são certamente imagens do mundo que passa ou cenas da vida corrente em visão mais vulgarizada.
O que lhes não falta contudo é uma inenarrável beleza, manifesto inesgotável e transbordante da observação penetrante e sublime duma cultura distante e distinta, saturado duma aplicação ao trabalho estético que empolga e inspira. Mostra patente até 28 de Janeiro.

O Museu do Azulejo, mais uma vez, porque não cansa

Os azulejos reflectem, à nossa medida e de acordo com o sentido criador da nossa sociedade, imagens dum certo nosso “mundo flutuante”, com tudo o que a expressão possa carrear consigo de leveza poética. Não tão estrenuamente disciplinada, tantas vezes decadente e até vilipendiada, é essa a nossa versão das coisas e não adianta chorar.
Para além dos trabalhos de história, conservação e restauro já patentes em Lisboa na Igreja da Madre de Deus, muito bem documentados num livro que podia comprar-se em Dezembro com desconto especial, no Museu é possível ver-se ainda até 2 de Abril uma excelente exposição da artista americana Betty Woodman que, por si só, mereceria uma outra crónica por inteiro.
A mostra, muito poderosamente patrocinada, parece-me no entanto sofrer do mal de muitas coisas belas e excelentes que existem neste nosso precioso rectângulo: muito se fala da parra seca e muito pouco se diz da uva sumarenta.
É por essas e por outras que eu passei o ano em boa companhia, comentando com regalo a leveza poética do “Cirque du Soleil” que deu no segundo canal, evitando a selecta carraspana dum qualquer caro “réveillon” de requintes duvidosos e vinho espumoso fora do prazo de validade, já para não falar na miserável programação televisiva dos solitários, dos pobres e dos esquecidos que só vêem os canais da “grande” audiência político-futebolística.

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capa da exposição referida, AERSET – Edif B. de Portugal, Setúbal

“Profundo” de José Ignacio Cabrujas, pel’A Escola da Noite

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.Publicado no Diário de Coimbra de 19 de Dezembro de 2005

A acção da peça de José Ignacio Cabrujas que nos traz mais esta realização d’A Escola da Noite tem enquadramentos histórico-culturais próprios da sociedade em que ocorre, a venezuelana, num período temporal específico, habitado por mitos bem elucidados na documentação com que a companhia continua – felizmente – a enriquecer adequadamente os seus espectáculos.
A família descrita, inserida em meio suburbano duma sociedade em transformação, reage de forma expressivamente coesa, facto revelador dum comunitarismo próprio das suas raízes rurais, marcadas pela vocação da festa ritual, pelos velhos mitos indígenas e pela colectividade dos espiritismos coloridos de componente afro-americana. Se digo isto não é para ajudar o espectador (que disso não precisa) a destrinçar os itinerários ou contrastes da “cultura do milagre”, as vicissitudes do pecado judaico-cristão ou a frustração e desmembramento de certo quotidiano bem próximo da nossa realidade.
Os actores deste “Profundo”, cujo talento e dedicação não passam despercebidos a ninguém, mergulham frequentemente as mãos no chão térreo daquele palco, o que estabelece com esse plano simbólico uma relação de proximidade que vai do gesto de escutar a “voz” dos mortos sepultados à atitude de semear, palpar, cheirar e revolver. Decididamente, os subúrbios de Caracas estão muito mais perto da floresta mágico-ancestral que os arrabaldes branco e negro da cidade eterna (lembrar Pier Paolo Pasolini…) e o sentido de humor insinua-se a cada instante nesta desmontagem da ingenuidade patética ou necessária da carnal família Álamo. Quanto a esta, é surpreendida na cruzada de desenterrar a chave decisiva das suas “incumbências”: tesouro, relíquia ou sonho providencial que tantíssimos portugueses “escavam” nos totolotos da esperança fugaz, ou nas exaustivas peregrinações em busca de figuras tão místicas e propiciatórias como as do virtuoso padre Olegário.
As personagens desta peça de Cabrujas, aliás, não são tão “feios, porcos e maus” como seria possível numa observação contundente à maneira de Ettore Scola da suburbanidade carente e problemática, embora “o Boi”, nalguns acessos de moderada truculência, faça pensar nesse outro pai zarolho do realizador italiano. O tesouro não é descoberto, mas tanto faz.
O talante místico-imaginário tem o dom de transfigurar tudo na matéria inabalável da própria crença de que é feito, processo de assimilação ao qual nem escapa o cheiro nauseabundo da fossa encontrada no sítio onde devia estar aquele. Inteligentemente tratado pelo óptimo trabalho de toda a companhia, o espectáculo tem muita coisa a observar, em registo próprio de costumada sobriedade.
O “drama erótico” de Manganão, por exemplo (dado com subtileza tal que toda a gente percebe…) e a cena final, repassada dum simbolismo atroz, mediante a qual a pá das “escavações místicas” é elevada à condição de símbolo processional, transposição paródico-transcendental eivada de “profundidade” que aquele mesmo personagem entende inspiradamente conferir-lhe. Nada que não faça pensar maduramente uns quantos autores de frases definidoras do conceito de “profundo”, em repto participativo que A Escola da Noite lançou em gesto inovador, e que foram elevadas à dignidade do texto do catálogo com todos os riscos inerentes dos seus “desvios de subjectividade”…

António Jorge (Manganão) e Maria João Robalo (Lucrécia), numa cena de "Profundo"

António Jorge (Manganão) e Maria João Robalo (Lucrécia), numa cena de “Profundo”

O CAPC, as árvores da Sereia, seu movimento, instabilidade e conflito

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publicado no Diário de Coimbra no dia 12 de Dezembro de 2005


As minhas visitas à Casa Municipal da Cultura são geralmente complementadas com uma descida das escadas que, pelas traseiras, conduzem à sede do CAPC, instituição cuja acção pertence à memória da cidade de forma indelével mas cuja presença aparece persistentemente nimbada por uma inexplicável cortina de alheamento.
Não faz parte do intuito que anima estas “conversas” o propósito (ou a menor possibilidade) de registar de forma ainda que sumária a importância histórica do CAPC.
Se forem observados os percursos curriculares de uma notável quantidade de artistas de respeitável projecção, é seguro terem registado uma presença nas galerias do CAPC, havendo ainda uma inteira geração de artistas que passaram por Coimbra cuja aprendizagem oficinal teve lugar naquela que foi uma academia aberta aos mais variados horizontes da criatividade e do interesse pelas artes plásticas.

Túlia Saldanha, uma presença inesquecível

No dealbar dos anos setenta, quando cheguei a Coimbra, o CAPC era ainda procurado por interessados praticantes que aqui vinham propositadamente frequentar os seus ateliers, sendo dignificante em futuras carreiras artísticas a menção desse facto nos curricula respectivos.
Datam dessa década e da seguinte as visitas que ali fui fazendo, sendo para mim do maior significado a excelente convivência artística e cultural que pude travar nas antigas dependências da Rua Castro Matoso com artistas como Túlia Saldanha e Inês Paulino, para citar apenas dois nomes distintos.
O período seguinte foi caracterizado por convulsões e acontecimentos do mais variado teor que evidenciaram o Círculo como centro de realizações, debates, encontros, participações activas, sessões de divulgação, confronto de atitudes, etc.
As mudanças registadas, no percurso das quais o infausto desaparecimento de Túlia Saldanha não deixou de ser um notável ponto de viragem, associaram-se ao montante geral de transformações da própria sociedade, apagando de forma duradoura aquilo que fora e não mais voltou a ser.
Até aí ligado ao convívio artístico e à aprendizagem e divulgação oficinal das artes com carácter plural e de acentuada modernidade, o CAPC situou-se a partir de então no horizonte da “emergência” da arte contemporânea, numa tendência conceptual que acentuou a “desmaterialização” da arte e o isolamento progressivo da instituição, tendo alguns dos seus mentores mais avançados – o que não deixa de ser curioso – liderado a eclosão do que hoje é um importante núcleo universitário privado do ensino de Belas Artes.
A presença do CAPC na agenda de acontecimentos da cidade tem sido regular e coerente, o novo espaço que lhe foi há anos confiado pela autarquia é de concepção arquitectonicamente qualificada, dispõe duma interessante biblioteca, um raro escaparate de publicações sobre arte e as realizações que ali são levadas a cabo evidenciam um inequívoco aprumo de forma, com elementos de apoio e documentação da maior qualidade gráfica.
O conjunto de tais razões não permite, pois, que nenhuma pessoa interessada pelo fenómeno artístico possa ignorar o CAPC, sendo para mim desconfortável registar uma elevada taxa de desconhecimento sempre e cada vez que menciono o historial e a actividade do mesmo a pessoas do clima coimbrão.

A exposição de Gabriela Albergaria, “mouvement instability conflito”

A exposição que decorre ainda é ensejo para uma visita que deverá ser muito atenta e abundantemente apoiada na leitura dos materiais de apoio fornecidos.
Todo o vasto percurso da artista e o elenco de intencionalidades veiculado pelos dois projectos “site specific” no Jardim da Sereia escaparão ao visitante casual que se arrisca a conceber como nuclear a ideia de “exposição de desenhos e fotografias”, com tudo o que a mesma transmite, aliás, com invulgar sentido de qualidade estético-decorativa.
Será porventura nessa disfunção ou afastamento entre a volumetria do que é proposto e o conteúdo real do que é mostrado que haveremos de situar algum desentendido alheamento dos públicos relativamente a esta como a outras realizações do CAPC, geralmente afectadas pela dificuldade de leitura que nos oferece a arte contemporânea, no contexto de características próprias já anteriormente abordado nesta coluna.
A esta realização não falta porém, desta vez, um elucidativo texto (da autoria de Mark Gisbourne) que nem é exageradamente conceptual ou de gongórica redacção (o que é frequente em acontecimentos de arte contemporânea) nem carece de abertura perante duras realidades (o que é raro nesse mesmo contexto), neste caso, da tragédia dos fogos em Portugal.
Por parte da obra aqui apresentada pela autora não se torna explícito esse nível de preocupações, assinalando o texto referido um intencionado minimalismo deliberadamente afastado de propósitos didácticos, outra marca da contemporaneidade, “sem qualquer ensinamento ou pregação em relação aos danos que presentemente provocamos na natureza”.
Mark Gisbourne prossegue esclarecendo que “…as pessoas não são forçadas a ouvir mas são levadas a pensar…” e eu limito-me a fazer votos de que assim seja, já não digo em proveito de todas as florestas portuguesas, mas pelo menos para bem duma insulada e decadente zona verde chamada Jardim da Sereia, de tão lindo nome e de tão desvalorizada utilidade urbana, tão ameaçada pelo desleixo da incultura como pelos vendavais do nosso descontentamento.

Uma visita à Figueira da Foz, através das verdes planícies de antes do mar

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publicado no Diário de Coimbra no dia 4 de Dezembro de 2005

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Não é a primeira vez que me refiro a iniciativas que têm lugar na Figueira da Foz, em Cantanhede e até em Aveiro, tendo recolhido nota do interesse e da curiosidade de bom número de leitores. Encontro-me aliás em falta com o comentário de duas realizações notáveis ao alcance de poucos Km. Refiro-me à exposição “A nova vida das Imagens” patente no antigo edifício do Banco de Portugal em Leiria e à recentemente instalada e muito valiosa colecção de José-Augusto França, em Tomar.
O aproveitamento de tais horizontes poderia estar organizado pelas próprias instituições, municipais ou de outra natureza, mas a “falta de meios” (ou coisa que os valha) e o acentuado espírito paroquial erguem cortinas pesadas onde poderia haver janelas bem abertas. Quanto às agências de viagem e ao turismo organizado, isso é para destinos mais “exóticos”, naturalmente.

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A elegância fenecente do Paço de Maiorca

Viajando na estrada velha por aquela recta das pontes em arco que às vezes se enche de água de um lado e de outro, acabo por descobrir em Maiorca uma pequena praça ornada de velhos candeeiros de ferro pintados de verde como os que havia por todas as cidades quando eu era pequeno. De um dos lados ergue-se com imensa dignidade e elegância o Paço de Maiorca, que um site na Internet me havia garantido ser visitável, com preços de entrada, horários e tudo.
Mas qual quê! O monumento está para ali à sombra das memórias do seu passado glorioso, encerrando em segredo tesouros de notável valor patrimonial (painéis de azulejos, papéis chineses pintados “et alia”) revelando, detrás dos muros, jardins interiores entregues ao descuido espontâneo da natureza.
Há bem poucos anos frequentado por distintas personagens dignas de história e detentoras de fortuna, encontra-se agora pendente das indeterminações inexplicáveis dum país ensarilhado por “deficits” abissais, que poupa tanto no farelo que se dá ao luxo de estragar na farinha!

O artista Filinto Viana junto de um trabalho seu

O artista Filinto Viana junto de um trabalho seu

Filinto Viana, um artista sem atelier

Já na Figueira da Foz encontro o meu amigo Filinto Viana, digníssimo artista e pintor profissional a braços com o problema temporário, que terá de resolver por si mesmo, de não dispor de atelier. Os artistas são como os palácios de secreta memória, penso eu, abandonados à sorte do seu labor, sem contar com providências porque não há donde elas venham.
Como é que uma sociedade se permite ao luxo de ter um artista destes sem o recurso elementar dum local para produzir o seu trabalho? Pelos vistos muito bem, exactamente da mesma forma que negligencia o seu património e o deixa mergulhar na óbito da inutilidade.

A galeria “O Rastro”

Passo com Filinto pela galeria de Beja da Silva, onde esperam o visitante uma enorme quantidade de obras espalhadas por três pisos, que tive o privilégio de visitar contando com a companhia e com a cumplicidade do artista que sabe ver, que sente a pintura como um fenómeno tão natural como a sua própria respiração e com quem troco considerandos sensibilizados e libertos de preconceitos.
Ver a pintura de Filinto Viana, que está sem atelier, fica para outra vez. Vou até Buarcos pagar uma promessa de visita à exposição de Fernando Campos que se encontra na MAGENTA – Associação dos Artistas pela Arte, casa onde se pressente a vibração de interesses artísticos humanizados, longe do luxo envernizado das instituições de poder.

"A Batalha de Huambo" 1993.2

“A Batalha de Huambo”, de Fernando Campos, 1993.2

Fernando Campos na Magenta

Fernando Campos, além de outras experiências de pesquisa estética na área da escultura (“Achados”) apresenta o mesmo tipo de trabalho desenhístico que esteve patente numa interessante exposição colectiva de artistas da Figueira, mostrada recentemente na Casa Municipal da Cultura em Coimbra, cujos visitantes lamentavam a falta do elementar amparo de um catálogo com documentação adequada a respeito de obras e de seus autores.
O traço a carvão do artista solta-se de modo espontâneo em busca da forma desejada, sem a preocupação de ocultar alguns dos gestos estruturantes da ideia, o que confere ao “risco” das figuras que encontra, uma “vibração” ou um “movimento” que as torna por vezes imponderáveis. Figuras essas, aliás, frequentemente marcadas pela estranheza de reduções e acentuações de perfil, o que as coloca entre o misterioso e o inquietante.
As fisionomias, os membros, as máscaras e todo o conjunto de símbolos aparecem reforçados por tonalidades cromáticas diluídas, mescladas e expressivamente compostas, condizentes com o universo de conteúdos que gira em torno de preocupações culturais e humanas de respeitável densidade.
A exposição resume-se a um número não muito abundante de obras de Fernando Campos, artista de largo e variado percurso, recheado de episódios significativos de valor estético. Fica prometida outra visita, portanto, que permita documentar melhor uma obra que evidencia uma abundante percepção da cultura artística dos nossos dias, no que ela tem de fenómeno plural, problemático e estimulante.

Alcina Marques de Almeida expõe na Casa Municipal da Cultura

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publicado no Diário de Coimbra no dia 2 de Dezembro de 2005

É muito belo que a raridade das excepções possa apanhar-nos desprevenidos de quando em vez, demonstrando que o imprevisto, aquilo que a sociedade já dera como improvável ou sem nexo, possa acontecer, com toda a naturalidade das coisas sublimes.
É inspirador visitar um artista genuíno, divagar com um poeta inspirado, tomar nota das palavras ditas e dos horizontes revelados, abrindo à luz a flor do pensamento.
Mas verdadeiramente invulgar é que isso possa acontecer sem ter de usar artifícios de linguagens, complexidades ou convencionalismos duvidosos.
É excepcional por exemplo visitar uma pintora de talento raro e verificar, com quanta candura despretenciosa, continua a mostrar na sala quadros de pintores certificadamente valiosos pelo conceito social, guardando num quartinho pequeno de arrumações outras obras suas, de muito mais mérito e originalidade, de muito mais intensa frescura criativa.

“Primum vivere, deinde filosofare”

Não é meu intuito ocupar-vos com frases providenciais de Aristóteles, apenas quero lembrar o privilégio que é poder abrir asas e voar, depois de se terem transposto com elegância e poder, todos os desafios fundamentais da vida.
Alcina Marques de Almeida é profundamente pessoa ao mesmo tempo que se descobre a si mesma como talentosa artista, cujo pensamento flui em cada gesto, exprimindo-se com elegância e gosto em praticamente tudo o que faz.
Uma artista que expõe quadros que são para mim como percepções poético-filosóficas ou sínteses minimalistas do mais evoluído esteticismo, prontifica-se a revelar sem temor todos os segredos cruciais da sua destreza oficinal, o local onde pinta, as técnicas e as tecnologias utilizadas.
E dá-nos a ver uma exposição inteira, tendo deixado em casa uma rectaguarda de experiências cheias de novidade genuína, passando com naturalidade por cima de todas as preocupações de caracterização estilística, indexação de influências, fixação de padrões de referenciação teórica ou qualquer outra necessidade de tornar complexo o que é intuitivo, intrincado o que é cristalino.
É isso que a torna diferente e é esse facto que me restitui toda a esperança no conceito por vezes excessivo e artificial da arte como situação organizada, do meio cultural como intrincado de relações, e da inteligência sensível como refém de categorizações excessivas.

Poética e transcendência do que é simples, mas não é “fácil”

A exposição que nos apresenta na Casa Municipal da Cultura é constituída por um número assinalável de telas, organizáveis por grupos bem caracterizados de exploração plástica, coerentes na economia de processos, no pluralismo de abordagens e na escolha criteriosa das melhores soluções.
Na galeria do jardim podemos ver um conjunto de experiências dispersas, indicativas duma liberdade desejável para todo o artista ou registo de etapas vencidas, no desejo incontido de descoberta que o olhar atento vai colocando em reserva de contemplação activa.
Na sala principal foi eleito o conjunto mais forte, porventura aquele que agrupa os trabalhos mais recentes e com maior coesão estética.
A sua execução é marcada pela intuição liberta de preconceitos, sendo evidente uma extrema simplicidade de processos que conta com a energia estático-dinâmica da matéria da pintura e a sua confluência em zonas de diluição expressiva, escorrências, drippings e outros processos de execução automática que possuem toda a legitimidade. O aproveitamento de vestígios do suporte ou de “perfurações” do tecido cromático produzem o mais surpreendente efeito de afundamento das manchas de cor numa complexidade de planos remotos, nos quais o recortado daqueles vestígios chega a sugerir o que quisermos numa visão de mistérios insondáveis.
Os trabalhos de mais acentuada economia de sinais atingem um notável sentido de sublimação da pintura, o que não significa de modo algum – tal como a referida simplicidade de processos – o empobrecimento ou despojamento dos conteúdos estéticos, antes contribuem para a sua excelência.
Valerá de muito pouco apontar paralelos de afinidade estilística, embora isso seja um exercício de requinte intelectual. A pintora, cuja fluência produtiva é duma surpreendente abundância, desmentirá que tenha agido em obediência a influências tutelares, concorrendo o próprio despojamento de apresentação das telas, que nada mostram para além da superfície pintada, para reforçar o sentido da essencialidade defendido pela artista.
Essa circunstância é tão profunda em Alcina Marques de Almeida que começo por conversar com ela em áreas de razão cultural e acabo falando a respeito dos netos, ou seja, começamos por elaborar sobre conceitos abstractos e distantes e acabamos por nos fixar no essencial da vida, naquilo que tem de mais consanguineamente encadeado aos enlevos do presente e aos magníficos e imponderáveis sonhos do futuro.
O desdobrável que apoia a mostra é duma precária modéstia, o que demonstra que os caminhos trilhados pela cultura institucional conduzem a uma progressiva descaracterização dos seus actos.
Poupar na cultura, na arte e nos artistas, será essa realmente a solução para debelar os deficites catastróficos?

Pinter de antes do Nobel, no Centro Norton de Matos

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Harold Pinter ao proferir, em vídeo, o discurso de aceitação do prémio Nobel de Literatura

Harold Pinter ao proferir, em vídeo, o discurso de aceitação do prémio Nobel de Literatura

publicado no Diário de Coimbra de 9 Novembro 2005

Não sou ainda sócio do Centro Norton de Matos, e talvez devesse sê-lo pelo acumulado de impressões positivas colhidas de amigos, visitas, variedade de acontecimentos e recordações que tenho duma já antiga colaboração artística no domínio da cenografia para o balett.
Desta vez fui a uma peça de teatro que representa o arranque de uma nova secção ancorada no tecido ricamente sedimentado das actividades do Centro.
O amigo que me convida, António José Alves, é encenador, desenha as aplicações de luz e, como se fosse pouco, é ainda actor (no papel de Devlin) desta peça de Harold Pinter, significativamente escolhida para ser levada à cena, antes do autor ter sido designado prémio Nobel da literatura. Esta polivalência de atitudes assinala bem a disponibilidade fértil de quem abre caminhos novos. E tampouco a escolha da peça representa a atitude cómoda de quem queira fazer obra a partir do êxito fácil.
O texto de Pinter é duma objectividade sem adornos nem alusões pitorescas e apresenta-se concentrado num diálogo tenso, recheado de incertezas, alusões a um erotismo crispado e visões aterradoras de bébés arrancados aos braços das suas mães, em alucinadas estações de caminhos de ferro.
O cenário é coerentemente singelo, a acção restringe-se ao mínimo, e quanto às conclusões daquilo que é dito em palco é o próprio espectador que terá, entre alusões simbólicas, alegorias complexas e certo clima de pesadelo, de encontrar as chaves que para si resolvam a trama da peça.

A convivência natural e a tradição festiva do teatro

Algo de especialmente sensibilizante rodeia todo o trabalho feito, digno evidentemente de aplauso e atenção. Refiro-me ao clima humano que é património duma agremiação como esta, que apresenta uma peça de teatro ao fim da qual as pessoas podem ficar discreteando com velhos amigos aquilo que foi dito e vivido no palco cénico.
Nestas cidades, de prédios onde impera um certo anonimato e onde as pessoas se esgueiram pelas escadas com medo de encarar vizinhos cujo nome mal se conhece ao fim de anos e anos, é com um sentimento de renovada confiança que se entra numa casa onde o teatro não é apenas uma cerimonial de palavras congeladas, rodeado de silêncios por todos os lados.
A actriz, Celeste Maria Rafael (Rebeca), confidencia-me que viveu sempre ali, a dois passos do Centro, o que me faz lembrar com imensa nostalgia as casas e ruas da minha infância até à primeira idade adulta, pura recordação feita de ausências e de um insatisfeito sentimento do irrecuperável.
Numa sala de teatro que também é ginásio e sala de danças de salão, o aviso de apagar telemóveis não é dado pela ressonância metálica dum altofalante escondido detrás do segredo da sala escura. É uma pessoa que vem ali falar com todos e que, além de outras coisas, também nos diz que a aventura do teatro vai prosseguir no Centro Norton de Matos, assim o queira a generosa vontade dos associados.
Por mim vou estar atento e não ficarei ausente. Pode ser que entre nomes e faces conhecidas possa de igual maneira beber um pouco dessa quase utopia que é viver civilizadamente, em comunidade de interesses e de valores humanos, artísticos e sociais.
E que o hábito das palavras, antes e depois de cada peça, possa tornar-se uma atitude natural, uma vivência autêntica de cultura e da tradição festiva do teatro.

Arte contemporânea, na sub-cave ou perto das nuvens?

 

publicado no Diário de Coimbra no dia 04 de Novembro de 2005

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Tenho à minha frente três convites endereçados durante o mês de Outubro para outros tantos e diferentíssimos acontecimentos de arte contemporânea.
Reservando um deles para tratamento ulterior, por especialmente significativo (inauguração da Galeria Sete), considero hoje a exposição “e = mc2 Representações da ciência na arte contemporânea”, patente no Colégio das Artes e uma, a meu ver, mal designada exposição de “pintura contemporânea”, que tem lugar na Casa Municipal da Cultura.
Sem desconsideração por alguns dos trabalhos ou pelos artistas expostos, venho alertar para uma questão que já não deveria ter lugar em parte nenhuma: o equívoco de ser tomado à letra o termo “arte contemporânea”, fora da categorização crítico-histórica respectiva, por muito conveniente que isso possa ser promocionalmente.

Exposições de arte sim, “pendurações” de quadros não!…

O evento, sabemo-lo por ter lido no convite, deve-se ao apoio de uma galeria de arte. Tendo esse facto toda a legitimidade, não exime de responsabilidades a entidade cultural pública, que deve garantir para cada realização um nível de coerência programática, aqui revelada como inteiramente inexistente. Aos olhos do visitante ressalta o anonimato da realização, carente de catálogo ou outro apoio de carácter documental.
As obras expostas não constroem um conjunto equilibrado, são duma assimetria estética evidente, situando-se na sub-cave dum entendimento amadorístico de “promoção cultural”, em nada alinháveis com a ideia de arte contemporânea, até pelo facto de se apresentarem doméstica e maioritariamente sujeitas ao “compromisso” da moldura.
Saio da Casa Municipal da Cultura e dirijo-me, escadas monumentais acima, para mais perto das nuvens, entrando no largo claustro do Colégio das Artes ornado de peças de arqueologia industrial e azulejos que acusa, em toda a dignidade das suas proporções, aquela negligenciada decadência de tanto do nosso património.
Ali sim, não há dúvidas, estamos perante uma exposição de arte contemporânea que, não menos que a ciência, é um domínio de interesses afastado da vulgaridade; facto que nos oferece, sem surpresa, uma convergência intrincada de leituras, com catálogo da mostra anunciado lá para o fim da mesma.
Se tal edição interessa sobretudo às entidades promotoras e aos artistas, para efeito de auto-representação, o facto não deixa de sinalizar o desinteresse pelas audiências e a dispensa de comunicabilidade atribuídos à arte contemporânea, que opta por um público restrito ao qual requer uma peculiaridade específica de atitude. Donde o conceito de “obra aberta” defendido (há mais de quarenta anos…) por Umberto Eco, segundo o qual a mesma pode ser considerada como uma “metáfora epistemológica” e a sua interpretação uma interacção comunicativa entre artista e destinatário.

Todo o mundo é composto de mudança

A arte contemporânea propõe uma radical mudança de atitude cuja matriz vem das primeiras décadas do século passado (Dada e Marcel Duchamp) e se corporizou no decurso dos anos 60.
Nada tem a ver com a tradicional produção de “objectos estéticos” que procuram fixar o olhar reverente mediante “representações” afinadas por primores do “saber fazer”.
No ritualismo da “performance” situa-se um dos momentos essenciais duma procurada “desmaterialização” da arte, na qual o artista e o seu gesto se substituem à obra, no palco duma luta utópica “para regenerar a existência”.
A arte contemporânea tem vindo a afirmar-se durante as ultimas quatro décadas junto dos principais centros de decisão e promoção das artes. É conhecida como expressão do ideário pós-moderno, coincide com a era da globalização, com a apropriação duma forte componente tecnológica (arte-vídeo, arte-informática, etc.) e não menos reflecte os posicionamentos das políticas neo-liberais.
Uma afirmação tão categórica não tem sucedido sem polémicas, algumas de histórico e contundente efeito. Quem permanece atento é bem conhecedor desses factos, apenas algumas almas simples parecem incólumes ao decorrer de tão acidentados percursos…
Aliás, como qualquer outro movimento artístico-intelectual, tem os seus pontos fortes, os seus pontos fracos e os seus “pontos zero”!
Muito embora os curricula de alguns intervenientes que conquistam a certificação de artistas contemporâneos estejam recheados de referências notáveis, o que só uma conveniente inserção estratégica pode garantir, também aqui se nota a raridade de ideias genuínas e a super abundância de repetições e falsificações, algumas a evidenciar a auto-suficiência de um novo e fatalmente ultrapassável academismo, ao qual nem sequer falta, como já vimos, uma apreciável antiguidade.

Bonifrates no TAGV, em celebração de maturidades

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publicado no Diário de Coimbra de 31 Outubro 2005

A Cooperativa Bonifrates celebra 25 anos. Um quarto de século de valiosas actuações, um itinerário recheado de momentos fortes.
Levou à cena mais uma vez, agora no TAGV, uma peça “de cuyo nombre no quiero acordarme”, com o seu cortejo de palavras pesadas que nos recorda, com particular sentido de exaltação humanizada e elegância estética, que o mundo é mundo, campo de batalhas perdidas e sonhos pueris, de desejos desmedidos e, tantas vezes, de uma dura e intolerável desesperança.
A. Kowalsky e João Maria André constroem esta peça sobre o tema da mais velha profissão do mundo, libertando-o do oportunismo “voyeurista” com que tantas vezes é tratado, construindo uma obra de conteúdo universal e sensível, liberta de moralismos hipócritas, plena de todas as contradições e potencialidades da vida, desde as mais vulgares às mais absorventes. O texto, apoiado muito embora num honesto estudo da matéria de que trata a peça, parece-me ultrapassar em muito os referenciais sociológicos de que é oriundo, mergulhando progressivamente numa esfera de apreciação da fenomenologia dos afectos, da desmontagem da violência nas suas motivações mais primárias, da injustiça e do precário destino dos homens. Amplamente documentado a respeito do submundo transtornado das “mulheres da vida”, demonstra a secreta vulnerabilidade dessas criaturas singelas e vulgares, cativas e exploradas pela via do seu mais delicado préstimo natural, para efeito de sobrevivência própria e amparo familiar.
Depois de um prólogo ou “divertissement” inicial que a peça, desde o seu mais breve começo, fez recuar para o nosso completo esquecimento é, entre realismo sem complexos e expressionismo de invulgar efeito que se desata a construção dramatúrgica; à qual, apenas a caminho do seu desenlace, se vem juntar algo como um bosquejo de enredo personalizado. O expediente é utilizado de forma sagaz para introduzir o sentido de tragédia e defrontar o espectador com a imensa sombra da morte.
O corpo franzino da pequena prostituta drogada é então recoberto por uma das suas colegas de destino e profissão com um mágico “velo de oiro”, luz purificadora ou porta derradeira aberta para a libertação.
Eurídice Rocha, com um perfil que sai directamente dos cadernos de desenhos e das pinturas de Otto Dix, oferece-nos uma actuação inesquecível traçada nos limites do corpo, como tão frequentemente acontece nos palcos alemães, assumindo frontalmente esse risco, não ignorando certamente que um milímetro a mais ou um milímetro a menos poderiam colocar em risco toda a sua intensa atitude de verdade teatral.
Sozinha em palco executa dilaceradamente a “dança ritual do trabalho”, metáfora engenhosa do mais subtil efeito cénico já antes praticada noutro registo pelo colectivo das raparigas, que vai conduzindo ao desfecho do espectáculo que os seus construtores transpõem com invulgar talento para um outro espaço da mente, outros continentes e outras culturas, saída sem portas para o único horizonte possível da alma ou seja, a sua inalcançável transcendência.
A minha crónica termina aqui, lamento não poder alongar-me mais, mas não termina felizmente com esta peça o percurso riquíssimo dos Bonifrates, ou “bons irmãos” do Teatro.
Parabéns e louvor a todos os seus colaboradores e, para já, votos de outros 25 anos de profícuo labor artístico em benefício de toda a comunidade cultural!…

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Serralves em Coimbra, Serralves na Figueira da Foz

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Obra de António Palolo exposta na Fª da Foz; Acrílico s/ tela, “Sem Título”, 100 x 180 cm

publicado no Diário de Coimbra no dia 21 de Outubro de 2005

Tendo visto anunciados os dois acontecimentos constituídos a partir de obras pertencentes às colecções de Serralves, uma no Pavilhão Centro de Portugal e outra no Centro de Artes e Espectáculos, nada mais natural ter pensado que valeria a pena visitar ambos, lamentando que as duas exposições não sejam motivo de apreciação conjunta de pessoas que pudessem tecer a seu respeito um interessado debate.
Em torno das designações de “arte moderna” e “arte contemporânea” florescem os equívocos, prevalecendo a utilização subjectiva e oportunista de uma e de outra, não desejando ninguém ficar de fora no momento de se reivindicar como apreciador e adepto de qualquer delas.
O século XX foi caracterizado por uma aceleração tremenda dos acontecimentos em todas as áreas, e julgo que não houve ainda tempo para dominarmos uma imensidade de aquisições riquíssimas que já vão sendo, com demasiada precipitação, lançadas para zonas de sombra da apreciação colectiva.

Em Coimbra, arte pobre

A mostra assim designada patente em Coimbra parece representar, para a época trepidante e já “remota” a que se reporta, uma espécie de reverso da medalha duma cavalgada ofegante e contraditória de realidades artísticas e sócio-culturais de certo tipo, gesto de actores insatisfeitos no palco da representação artística ou invulgar processo de contestação do “establishment”.
Será aquilo arte? Se nós quisermos, será, pois claro.
E se eu for buscar ali ao ferro velho uma cama enferrujada, e lhe puser em cima uma trouxa de trapos velhos, também posso dizer que são arte?
Aí o caso complica-se. Porque aquela cama de ferro velho que está no Pavilhão do Centro de Portugal não é uma qualquer. Eu não sou grego, nem me chamo Kounellis, nem tive a ideia antes, nem estava lá perto de quem pôde dizer com a autoridade crítica, um alto comissário talvez, que aquilo era arte e que viria parar a Serralves!…
A contestação, se o foi, acabou por resultar com todo o êxito, dado que acabou por ser “assimilada”, e de que maneira, pelo mesmíssimo “establishment”.
Não quero evocar com detalhes a circunstância de a minha cama de ferro velho ter um valor patrimonial zero, face ao “valioso” espécimen de Kounellis. Dessas coisas de dinheiros, em artes, não se fala porque parece mal, ainda que sejamos nós a pagar, como é o caso de uma colecção pública e fortemente subsidiada.
Levantar questões destas é para quem quiser pensar pela própria cabeça e nenhum jovem licenciado em humanidades à procura de emprego em instituições culturais deverá assumir tal risco.
A menos que esteja bem preparado para responder àquela questão que às vezes é feita nas entrevistas de contratação, depois de apresentado o “curriculum”:
– E além disso, você conhece “alguém”?

Na Figueira da Foz, o Plano atravessado

A mostra que é apresentada na Figueira da Foz é totalmente diferente. Ali já podemos pressupor o vulto do artista no espaço oficinal respectivo, muitos frascos com tinta e a floresta de pincéis no chão ou sobre a mesa.
Os quadros, ou pinturas, ou objectos, são igualmente desafiadores do conceito tradicional ou académico. Existem, no entanto, os mais evidentes sinais de um “exercício excelente” da produção de peças únicas ou seja, da “materialização” do objecto estético.
O evento goza do esplêndido conforto do edifício em que se encontra, e nem lhe falta um razoável catálogo que está à venda na livraria residente.

Em França, o centro do mundo e os novos (velhos) academismos

O comentário adequado destes acontecimentos teria de passar fatalmente pela citação de uma inesgotável quantidade de posições e polémicas oriundas, “et pour cause”, de Paris de França, pelo menos. É pena não haver espaço para tal, pela abundância de argumentos que se tem acumulado em torno da discussão crítica da questão.
Limito-me a referir a importância crescente e tentacularmente exclusivista que a afirmação da “arte contemporânea” tem tido entre nós, nos últimos anos, averbando os principais gestos de investimento e promoção pública das artes.
Uma maioria dos mais dignos e recentes espaços culturais está-lhe dedicada, o que não se passa, “mutatis mutandis”, de forma tão depreciativa para o pluralismo e variedade de perspectivas em Madrids, Parises e outros “centros do mundo”!…
Ou seja, uma sociedade que passou pela vastíssima modernidade de olhos baixos, como a nossa, parece disposta a render-se à contemporaneidade, sem saber de facto o que quer dizer uma e outra coisa.
Valerá a pena referir que algumas das ideias e princípios directores da arte “contemporânea” já datam de há quase um século, o que lhe retira de forma absoluta o odor de novidade e lhe acentua a semelhança com os persistentes academismos de outras épocas, que o tempo foi varrendo, ao fim e ao cabo.
Serralves em Coimbra e na Figueira da Foz, a não perder!…

A “Paleta Inacabada” de Telo de Morais e duas exposições de Verão

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publicado no Diário de Coimbra no dia 01 de Outubro de 2005

Telo de Morais entregou-me o seu livro às portas dum Verão alucinante e eu juntei-o à bagagem confusa duma saída para dentro, simulacro de férias que nunca são, pretexto de evasões inconsequentes e breves.
Por sobre os textos da obra fiz, como tantas vezes acontece, um voo rasante à máxima velocidade dos motores da curiosidade e da surpresa.
Ficou-me uma primeira página do prefácio de Rocha de Sousa, encadeado de conceitos que apontam em todas as direcções do encanto e da razão dos sentidos, no múltiplo significado que a palavra tem.
Em Rocha de Sousa cada frase é como o obturador vertiginoso que abre sucessivos planos sem dar tempo a um para que se fixe o outro, gerando a totalidade de impressões uma fecundidade intertextual que convida à reflexão, e ilumina o mundo de policromias sem margens.
Ficaram-me depois a sucessão de intervalos fotográficos que a obra apresenta, sugestão de dramatismos celestes, “retratos de céu” que sugerem um instante suspenso, algures, entre a plenitude da tarde e o segredo de horizontes inquietantes, embalados de negro.
Por fim as trinta visitações da sempre inacabada paleta, resultantes dum pluralismo de gosto sem preconceitos e duma memória sem fronteiras que convidam à análise, linha por linha, dos referenciais vividos e das sensações participadas.
O livro de Telo de Morais fornece, nesse sentido, não uma legenda explicativa, um amparo caracterizador ou itinerário do gosto. Cada texto é como que uma corda musical deixada a vibrar por ondas de choque da visão complexa de pinturas, desenhos, etc, e da teia de relações que tais objectos mantêm com a própria vida.
Os nomes, as referências factuais e de contexto serão, ao gosto e de acordo com as armas de cada um, pontos de partida ou de chegada, ancorados algures entre a visão crítica e a sensibilidade poética.
Ter assumido o risco de mencionar, junto de cada texto, o nome ao qual o mesmo diz respeito, remete para o carácter que a obra tem de referencial de uma forma de arte e de um tempo simultaneamente próximos e longínquos do nosso. Tempo nosso habitado por homens que se apressam, talvez precipitadamente, em colocar na prateleira do passado um imenso património semioculto e precioso.
A “Paleta Inacabada” de Telo de Morais vem precaver-nos contra o risco do esvaziamento e da ausência. Mas não é só por isso que continuo a lê-la, agora que se despede o Verão.

O Chiado com Torga e o Pavilhão de Portugal com Inês

O Museu do Chiado apresentou “Novos Olhares” que reuniu principalmente obras de artistas que cursaram a EUAC, no espaço concentrado de que a galeria dispõe.
Telo de Morais, no texto de catálogo, efectua um trabalho generoso e muito atento que pretendeu compatibilizar as obras expostas com o universo Torguiano, que alguns visitantes terão tido dificuldade em associar com o clima estético que a exposição propunha.
Julgo não ser essencial a concretização de tais associações, se cada uma das peças puder trazer-nos algo, mesmo que francamente alheio às vivências imediatas que a literatura de Torga sugere.
O mesmo risco não corre, por exemplo, a exposição que esteve patente no “Pavilhão Centro de Portugal”.
O tema eleito, “O nome que no peito escrito tinhas”, cingiu-se bem à teia de significados propostos pelas obras vistas sem perda de variedade e interesse das abordagens estéticas.
Já são várias as exposições de qualidade que vi naquele pavilhão e que beneficiam do luxo de espaço e luz natural indirecta que a notável peça arquitectónica proporciona.

Exposições colectivas e riscos inerentes

Certas exposições colectivas, sejam ou não de Verão, transportam consigo, por vezes, uma contradição esquisita que contraria uma das mais simples regras da matemática: a de que um conjunto é perfeitamente igual ao somatório das partes.
Há obras que se “desajudam” tanto umas às outras, que fazem com que “tirá-las” teria sido melhor do que “pô-las”, o que conduziria ao drama de haver mostras representando autênticos “conjuntos vazios”, o que não é de modo nenhum o caso vertente.
É certo que Ana Vidigal, Catarina Campino, Joana Vasconcelos e Rui Sanches por um lado e Costa Pinheiro, José de Guimarães e Pedro Proença por outro, não deixam de ser astros de galáxias muito distantes.
Mas as engrenagens alusivas que cada um elabora na perspectiva do tema permitem não somente uma viagem através do drama Inesiano, bem como propiciam localizar as coordenadas de evoluções plásticas e ideológicas bem colocadas no devir das artes visuais.
Nem todas as exposições têm, contudo, os meios que poderá ter tido esta, com tão altos patrocínios e com tão amplo terreno de escolha das obras a mostrar.
A Exposição reparte-se por dois conjuntos, patentes em Coimbra e Alcobaça, sendo desejável que se efectue uma rotação dos mesmos, sem o que ficará truncada a imagem que nos fica da totalidade do acontecimento. Aguardemos pois.

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60 minutos com Brecht, no TAGV, em produção invulgar

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publicado no Diário de Coimbra de 23 de Setembro de 2005
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O potencial activo da produtora Margarida Mendes Silva e os critérios de encenação de Clóvis Levi podem repousar de consciência tranquila: a evidência das imagens multimediáticas que precedem o entrecho deste Galileu Galilei não permitirão ao espectador mais distraído olvidar o estado geral do mundo entregue, como mais ou menos sempre esteve, à barbaridade atroz da violência e da injustiça.
As hordas organizadíssimas dos exércitos, os cadáveres desmembrados despejados sem dó para as valas comuns, a criança em chagas, tremente de pavor e desamparo, e a maldita eficácia dos angulosos “Stealth airplanes” prontos a despejar “bombas inteligentes” em qualquer parte do mundo, tudo por ali passa, não esquecendo o demoníaco apocalipse duma bomba termonuclear em plena demonstração de “realismo” incontestável. O testemunho de Brecht e as suas mais legítimas preocupações não poderiam estar melhor acautelados!

Peças de teatro há muitas

Que me perdoem contudo os meus mais assíduos leitores, mas não foi uma peça de teatro “qualquer” que me levou ontem ao Gil Vicente.
O que eu lá fui ver foi três rapazes de Coimbra, artistas de mão cheia, daqueles raros a quem o destino parece não regatear o instante fugaz da merecida consagração, um dos quais leva tão a sério a servidão da arte que pratica ao ponto de se ter dado ao luxo de ressuscitar (sem aspas) para retomar a peça no ponto em que a havia deixado, alguns meses atrás. O médico dele lá estava, camuflado entre os assistentes, à cautela…
Elencos assim talvez os tenha apresentado o Globe Theater de Shakespeare, a coruscante Broadway, quem sabe o próprio Berliner Ensemble de Brecht!… Mas desta feita, por vida minha, e com assistentes mais que curiosos e expectantes, literalmente suspensos da fala do Actor, esta foi uma vez rara e excelente.

“A verdade é filha do tempo, não da autoridade”

Dizia alguém que sabe das coisas que Fernando Taborda amanhã vai estar mais seguro e que vai fazer muito melhor (“…o problema dele era saber se aguentava a peça… “).
Eu sou do parecer contrário: melhor que ontem nunca mais faz na vida, por ter representado com bravura no fio da navalha, essse espaço exíguo em que cada passo dado é uma conquista e chegar ao fim uma vitória irrepetível.
As suas mãos frágeis de dedos flutuantemente finos, a sua voz ora aveludadamente insegura ora convictamente afirmativa, e o sorrir de quem canta uma canção de Kurt Weil sabiamente ausente incorporaram tão bem a personagem que, a partir de certa altura, já ninguém dava conta de onde acabava Fernando ou começava Galileu.
De Rui Damasceno e Victor Torres poderá dizer-se que criam uma abundante galeria de figuras espirituosamente credíveis, esboçadas com verve e invenção num registo optimista, coerente com a “visão clara” da ciência redentora que a versão dramatúrgica coloca em palco, a par da comédia de contradições que o “império da autoridade” impõe à sempre fugidia e contingente “ânsia da verdade”.
Seria curioso e interessante desfiar alguns dos mais bem conseguidos momentos de criatividade cénica, mas não desejo roubar ao leitor que ainda não viu a peça a oportunidade de descobrir por si mesmo este nobre momento de teatro, numa peça que finalmente dá início a uma carreira que se configura longa e plena de sucesso.
Longa vida e óptima saúde a actores e agentes de teatro de que nós, silenciosos e devotados espectadores, também honrosamente fazemos parte!

Júlio Resende e a Orquestra Clássica do Centro, fim de Verão cultural em Cantanhede

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File-0069-pobra de Júlio Resende exposta em Cantanhede; “Mulher e Tecidos”, pastel, 2000, 65 x 51 cm

publicado no Diário de Coimbra no dia 15 de Setembro de 2005

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Nada melhor que um pedaço de tarde com nuvens frescas abrindo clareiras no azul do céu, debaixo da larga copa de um monumental pinheiro manso para reentrar, neste fim de Verão, numa coisa de que afinal nunca havíamos saído: a alegria da arte e a essência incomparável da música.
A totalidade deste conjunto de sensações desenrolou-se no Jardim do Museu da Pedra e culminou a abertura de uma exposição de Júlio Resende inaugurada na Casa Municipal da Cultura, tudo em Cantanhede no dia 10 de Setembro último.
Para os amigos da pintura e da arte portuguesa ou seja, da arte universal, Júlio Resende é uma figura que se persegue em continuidade de interesse e prazer estético ao longo de toda uma longa vida produtiva. As memórias de episódios criativos são inumeráveis, e basta-me por agora mencionar o prazer que tenho tido em visitar o “Lugar do Desenho” em Gondomar, fundação que tem o nome do artista.
Instalada numa ladeira sobranceira ao Rio Douro é local cuja visitação recomendo sem reservas, por um variado conjunto de razões que não cabem no espaço desta crónica.

Promover a Arte com sentido de projecto

Há muitas formas de gerir meios de promoção cultural e artística. Poderá haver quem julgue que tudo vai dar no mesmo e o que é preciso “é boa vontade” e desejo de “apresentar serviço”.
Já tenho dito nesta coluna, de muitas e variadas formas, que não é indiferente o modo como tal trabalho é feito, não devendo confiar-se a acasos descontínuos o aproveitamento de conteúdos assimétricos, improvisando e facilitando formas de dar a ver, meios de apoio documental, etc.
Sem poder falar de todo o conjunto de iniciativas que têm lugar em Cantanhede, porque não tenho ido ali tão frequentemente quanto desejaria, devo contudo afirmar que, como várias outras, também as presentes realizações me dão a ideia de um labor estruturado com bom gosto evidenciando, além do mais, uma generosidade comunicativa e pedagógica que me parece ser ideal para um trabalho com vocação de futuro.

Um músico fala com olhos de quem também pinta

Virgílio Caseiro, que regeu a Orquestra Clássica do Centro no concerto que teve lugar, para prazer de todos, depois da inauguração da exposição, também visitou a pintura e repartiu impressões que lhe mereceram as obras expostas.
Falámos sorrindo da aparente simplicidade de algumas das peças, e daquela suposição absurda que muita gente assume: “olha, uma coisa destas, também eu fazia”…
A verdade das coisas, porém, não é assim tão simples. Nem a vastidão assustadora do suporte se preenche de levezas subtis sem que a mão do artista esteja animada de gestos com asas, nem os materiais usados se dispõem por si só, com mágica e automática clarividência.
Aquelas duas telas justapostas que o artista pintou com pigmentos retirados da “paisagem” cabo-verdiana são o exemplo da “transcendência de facilidade” que há em sugerir horizontes, precipícios, céus e anónimos objectos da natureza, a partir do gesto mais aparentemente simples, na economia de processos que só um pássaro demonstra ao voar alegremente acrobacias, ou uma onda quando negligente exibe formatos ao estender-se pela areia da praia.
O simpático livro que é editado para valorizar adequadamente o acontecimento distingue-se de certas pagelas ou calhamaços de deitar fora, ornados com pouco mais que o texto oportunista desta ou daquela individualidade autárquica.
Pelo contrário, neste caso, é o próprio artista que nos confidencia as suas impressões e percepções estéticas, em “visita guiada” a cada uma das obras expostas.

Resende colorista, da aguarela ao óleo, até à tapeçaria

O título da mostra é “Resende, uma vida de cor”, facto que acentua uma das principais facetas dos trabalhos apresentados: o tratamento livre e desmistificado (como o autor refere à entrada do mesmo livro) de traços e manchas de teor cromático através dos mais diferenciados meios de registo, muitos deles não mais do que sinais em confronto livre, que dão a entender, não obstante, a transcendência dos valores construtivos de todo o universo das artes plásticas, nas disciplinas expressivas de agora e de todos os tempos.
Obras de Júlio de Resende na Casa Municipal da Cultura de Cantanhede, até 27 de Novembro.

Um painel de azulejos para as terras do fim do mundo

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fragmento do painel aqui referido

 

Publicado no Diário de Coimbra de 12 de Abril de 2005

O meu amigo Ernesto Insua tem o privilégio de viver mesmo ao pé do fim do mundo. É galego de Finisterra, e assume com sentimento e sensibilidade cultural o facto de ser duma região cujo nome traz memórias de tragédia e assusta o visitante que não conhece a sumptuosa paisagem e a paz das suas enseadas de mar adentro: é a Costa da Morte!…
Lugar de muitos mistérios vividos e de muitos outros inventados comunga desse património lendário dos sítios dos quais se diz que ali a terra acaba e o mar começa. Quando ainda não se tinham consolidado fronteiras nesta parte da Europa, foi ali porta de entrada de santos e piratas, invasores ferozes e muitos viajantes marinheiros.
Do concreto conhecimento que Ernesto tem de Portugal, uma coisa lhe prendia a atenção: na sua terra não havia ainda ninguém que se tivesse lembrado de mandar executar um painel de azulejos, esse jeito tão nosso de revestir paredes e cativar imaginários.
Foi em conversas de serão que surgiu a ideia de fabricar essa última coisa que não havia ainda no seu acolhedor hotel rural, finamente instalado em residência antiga de família.
O painel era para uma parede de pedras de granito à ilharga do belo jardim, no extremo dum pórtico, virado para o poente ou seja, para o lado do grande cabo que assinala o fim das peregrinações, sítio mágico de onde se vê o Sol mergulhar no mar longínquo.
Ernesto foi idealizando o seu imaginário painel e eu tomando notas, sem me importar se iria ser possível ou não colocar lá todos esses fins do mundo, essas figuras e céus testemunhas de tanta lida e tanto querer.
Meses depois, com cartas e visitas pelo meio, vejamos então o que já lá está, para durar anos e anos, colocado na parede e olhando para todos os hóspedes e visitantes:
O elemento central é uma rosa dos ventos, objecto simbólico distribuindo o nosso olhar em direcção a quatro paisagens de outros tantos “fins da terra”: Cabo da Roca em Portugal, Lands End na Cornualha, La Pointe du Raz na Bretanha, e o Cabo Finisterra, ali ao pé, na Galiza.
Ao centro, num globo terrestre, aparece a visão distante e sugestiva “do outro lado do mundo”, sonho e destino de vida de tantos milhares de galegos: o continente americano.
À esquerda, em cima, o “painel do peregrino” ostenta a concha de vieira como referencial simbólico, dá-nos conta da proximidade e convivência entre o mar e a serra que o país galego tão abundantemente nos oferece, e da sua enorme componente rural de que o “hórreo” é um adereço insuperável.
No lado superior direito, pairam acima de Land’s End desenhos inspirados na arte rupestre galega, sinais antiquíssimos que sugerem barcas e seres que entendi inscrever no céu, à distância das coisas mágicas e indecifráveis que estão na mais remota memória dos homens.
Em baixo, de ambos os lados da Pointe du Raz, alusões à fauna marítima no seu espaço submarino e à presença das mulheres como protagonistas fundamentais do hercúleo combate travado entre mar e homens na conquista do sustento diário.
Aparece também o indispensável perfil duma traineira que, por sinal, também faz parte do meu imaginário infantil, vivido muito perto do litoral com barcos, mar e pescadores à vista.
Como envolvente dessa variedade de temas foram utilizados grafismos inspirados na arte Celta, cultura referível às áreas geográficas desses quatro grandes Cabos. Isto, em jeito de cercadura, elemento presente em grande quantidade de painéis de azulejos, agora utilizado de forma muito livre, para aglutinar ideias de difícil conciliação visual.
A tradição do azulejo artístico português está pois, a partir de agora e por obra minha, presente em Finisterra, por decisão de um galego amigo e conhecedor das tradições culturais da nossa terra.
Honra seja feita a Ernesto, galego das sete partidas que já foi às Américas vezes sem conta mas que não deixa de olhar Portugal com carinho e atenção de todas as vezes que o visita!…

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outro fragmento

 

“Ao partir palavras” pel’A Escola da Noite, sobre textos de Ruy Duarte de Carvalho

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Publicado pelo Diário de Coimbra em 5 de Março de 2005

O melhor a fazer perante mais este magnífico trabalho de teatro seria tentar percorrer os mesmos caminhos que os seus criadores e dedicar às obras de Ruy Duarte de Carvalho a generosidade de atenção que está em olhar-se a obra de outros como se fosse nossa, reinventando-a para transmitir o que tem de lucidamente universal.
Fujo, por uma vez, da consideração merecida do espectáculo no seu todo, incluindo as alusões que fariam justiça às suas principais facetas de construção cenografico-dramatúrgica: um capricho de comentador sem compromissos, que tenho o raro privilégio de ser, permite-me pegar num detalhe desta preciosa encenação, elegendo-o à condição de instante eleito para guardar na minha memória de espectador.
Refiro-me ao que chamarei o “desencantar do gavião”, ou achado de um “mecanismo poético” com implicações visuais e simbólicas de teor especialmente raro.
Com efeito, o personagem João Carlos empreende a sua viagem através de plainos e matas africanas para ir tratar de um assunto de vacas, preocupação central da sua vida de homem pobre, projecto de velhice e herança única de seus filhos. A partir de certa altura é um gavião que o acompanha na jornada. “Vigiam-se os dois, o velho em baixo e o gavião em cima, para um paisagens e para o outro espinhos”.
Tudo isto é da literatura elegante e fácil de Ruy Duarte de Carvalho, mas é aqui que nos aparece a alegoria encontrada para o pássaro, aparição de duas atrizes jovens, esplendidamente claras e loiras, com uma veste juvenil sem alusões imediatas ao mundo da vulgaridade quotidiana.
Empunham, cada uma de seu lado, um singelo apetrecho feito de hastes finas de madeira que simula de forma mínima a leveza esquemática de uma asa.
Explico melhor: elas estão ao centro, movimentando-se a gosto da marcação cenográfica, como alma-grupo duma entidade alada, e as asas atrás descritas abrem-se para fora, servindo depois, à transparência dum enorme ecrã, para representar o gavião suspenso na altura quente e pesada de África, da forma tão rica como o descreve o autor do texto.
A parceria imaginária dos dois viajantes, tão diversos no destino como no elemento em que se movimentam, acentua-se de modo tão expressivo que, a partir de certo momento, é o gavião que nos conta a história do velho João Carlos.
Falta referir um outro adereço ou coisa fabulosa: duas cordas pendem da escuridão invisivelmente misteriosa do teatro, como suspensas da cúpula dum circo da minha infância. No extremo de cada uma dessas cordas, uma daquelas argolas redondas que seguravam os equilibristas, que as jovens “asas de gavião” cingem, cada uma em seu braço, traço de união entre elas e a transcendência do céu ignoto.
A conjugação destes detalhes e a alegre evolução das artistas até ao proscénio, donde nos falam subidas a um praticável, tudo isso entrou por mim dentro de tal forma que mal consegui aperceber-me do que diziam, tanto foi o entusiasmo de vê-las feitas um pássaro que plaina nas alturas para depois “…abalar em direcção ao sol, o que é dizer, para o alto, para a vertical do mundo que é onde o sol se encontra quando faz meio-dia…”.
A afirmação que a arte frequentemente nos traz das coisas de África tende sempre a apresentar-nos uma visão de um mundo mágico de dimensões e horizontes insondáveis, sendo as criaturas dali originárias portadoras duma sabedoria ingénua, mas tão providencial, que horizonte e sabedoria e dimensões inexplicáveis se fundem num mesmo todo que nem é deste mundo, nem destes tempos, nem de tempo algum que tenha visto vivo homem.
Esta encenação escapa magnificamente a esta tentação e, se digo pouco, com isso me acabo até um próximo espectáculo de vida, que é dizer: de teatro!…

ARCO 2005, crónica duma peregrinação anunciada

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Obra de António Segui, exposta na ARCO 2005

Publicado no Diário de Coimbra de 23 de Fevereiro 2005


Para os interessados nas artes, com maior ou menor nível de envolvimento profissional, há um fenómeno que tem adquirido nos últimos vinte anos, como nenhum outro, o carácter de acontecimento altamente interessante e, por isso, frequentável.
A ARCO, feira das artes de Madrid, lá pelos inícios de Fevereiro de cada ano, recebe a visita regular de um contingente numeroso de portugueses que, envolvidos na multidão de outros visitantes, ali vão dar fé de “como vão as artes”, de quais são “as modernas tendências” e do que é que “está a fazer-se lá fora”.
A cidade de Madrid, com uma enormidade de recursos variados, sempre cobre as eventuais insatisfações que o acontecimento em si possa suscitar, explorável de modo superficial no decurso de uma só tarde muitíssimo fatigante.
Tratando-se de uma feira, por isso com intuitos mercantilistas, não deixa de evidenciar um imenso apoio institucional, o que se harmoniza bem com a invulgar energia que os espanhóis colocam nas suas organizações.
O certame, como justaposição de galerias de todos os géneros e proveniências, oferece um caleidoscópio confuso e excessivo de experiências as mais desencontradas, convivendo em dois largos pavilhões obras dos autores mais consagrados com outras de cuja real valia temos todo o direito de duvidar.
Gozando do privilégio de poder fotografar ou filmar todo e qualquer objecto exposto, tem ainda acesso o visitante a editores de obras de carácter artístico, além de representações institucionais como departamentos de cultura de diversas autonomias espanholas, etc.

A ARCO, um marco que se afirma no “nosso” horizonte cultural

Ao fim de vinte e tal anos de participações portuguesas (o que corresponde à atribuição de subsídios de parte do estado, em condições cujo detalhe desconheço) julgo que era tempo de começarmos a ver também resultados, ecos ou aproveitamentos activos de definição e reforço de um comércio artístico de iniciativa própria.
Têm surgido, e são conhecidas, certas iniciativas ao longo de todos estes anos, ao nível de Lisboa e Porto principalmente, nenhuma contudo do género e da pujança que é patente na ARCO, nem ostentando o grau de continuidade que a mesma tem afirmado.
Não haverá entre nós interesse que justifique alguma dedicação a assuntos deste tipo?
Existirá ou não alguma conveniência em estruturar um mercado das artes autónomo, pronto estimular e satisfazer inclinações, carências e aspirações que nos são próprias?

Um interesse artístico que apenas sobrevive

Segundo referências mais que evidentes é abundante o número de agentes artísticos interessados em adornar o seu curriculum com uma presença na ARCO, onde coleccionadores portugueses vão para adquirir obras de artistas nossos e em galerias da mesma nacionalidade.
O facto denuncia, a nível da iniciativa privada, que o nosso meio não é capaz de gerar suficiente dinamismo para pôr em marcha as suas potencialidades, que um simples ensejo de compra “lá fora” começa a gozar de certo apelo e constitui teor de certificação de qualidades que entre nós ninguém ousa, ou deseja, ou pode colocar em evidência.
A nível das instituições públicas de intuito cultural, a despeito de alguns acontecimentos de êxito incontestável cuja ocorrência é mais excepção que regra (referíveis geralmente a individualidades de percurso ou nacionalidade estrangeira) o calendário nacional preenche-se de inumeráveis realizações heterogéneas, prejudicadas no seu todo por uma descontinuidade de critérios expositivos, longe de esquemas programáticos capazes de formar novos públicos e de mobilizar o interesse dos apreciadores já consolidados.
Em muitas outras circunstâncias não está o interessado visitante livre de se encontrar em salas vazias tocadas por vícios de hermética incomunicabilidade, palco de dignidades mais ou menos solenes detentoras do privilégio duma intocável auto-suficiência.
A esse respeito interessaria conhecer de forma clara qual o nível de aproveitamento de todo esse funcionalismo cinzento metalizado, quais os seus critérios de valor e qualidade estética, qual o seu sentido de futuro, de projecto cultural, etc.
Se ninguém persistir na colocação destas perguntas, como poderá ganhar significado e produzir resultados o interesse artístico que apenas sobrevive entre nós, mas de modo disperso, confuso e improducente?
Se não forem jamais respondidas tais questões quem é que vai livrar-nos desta solidão, deste sentimento de andar sempre a correr em círculos?
Ficaremos assim para sempre, a ir cada vez mais, uma vez por ano, às ARCOS?

ASeg“El Palo Sagrado” de Antonio Segui

Os painéis cerâmicos de Querubim Lapa nos Hospitais da Universidade de Coimbra

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083-pPainel de azulejos relevados de Querubim Lapa, “Os Sete Espelhos de Narciso”, 187 x 127,5 cm, exposto em 1994 no MNA

NOTA: Mesmo nos edifícios públicos pagos por todos os contribuintes, com obras de arte que deveriam ser de usufruto aberto a todos os cidadãos, impera um sentido de propriedade privada que impede os mesmos cidadãos de colher imagens das obras de arte expostas. Já fui incomodado várias vezes ao tentar documentar-me para efeito de prazer pessoal ou de divulgação absolutamente gratuíta como é aquela que aqui faço. A obra acima colhi-a num catálogo de uma exposição que comprei no Museu do Azulejo. Nada tem a ver com o painel dos Hospitais da Universidade de Coimbra porque não ousei enfrentar os seguranças ali presentes e também porque não estava disposto a percorrer o calvário da burocracia feito pedinte de imagens. Já agora, aos visitantes desta notícia, sugiro que coloquem no vosso “browser” a expressão “hospitais da universidade de coimbra, paineis de querubim lapa”. É só uma pesquisa exploratória. O que é que aparece? Os painéis de Querubim Lapa dos HUC? NÃO!… O que aparece, além de muitas e desvairadas imagens de que é fértil a net, e em primeiro lugar, ESTA MESMA IMAGEM que eu coloquei já há muito nesta notícia; A ÚNICA QUE EXISTE NA NET sobre os painéis de Querubim Lapa ali presentes!… Acham que é preciso acrescentar mais alguma coisa???…

 

Publicado no Diário de Coimbra de 27 de Dezembro de 2004

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Vistos já certamente por milhões de pares de olhos, bem merecem uma cuidada inscrição no mapa das nossas referências estéticas para Coimbra do sec. XX..
O autor é um artista excelente no panorama das artes plásticas do seu tempo, com preparação académica em pintura e escultura, com uma notável actividade pedagógica na área das artes do fogo e com um estruturado talento que lhe permitiu afirmar-se como desenhador, pintor, escultor e ceramista. É esta a disciplina que mais notoriedade lhe granjeou, não figurando no grupo dos pintores que apenas concebem e projectam obras de arte cerâmica.
Querubim, mais do que isso, afirma-se como executante, intervindo directamente na produção dos trabalhos de sua autoria que atingem um nível de expressão invulgarmente rico e original. Daí que tenha conseguido o acesso a facilidades técnicas notáveis, em meio fabril, mediante as quais pôde conduzir larga actividade experimental.
Uma imensa produção de objectos cerâmicos de todo o tipo, moldados de acordo com as suas determinações, são depois recobertos pelo artista com esmaltes cuja cozedura produz o efeito mais feérico e surpreendente que é possível neste domínio de expressão plástica. Uma das propriedades desses esmaltes, vertidos sob forma líquida, é a de reagirem entre si, produzindo inesperados efeitos de cor, que o artista utiliza com especial maestria.
Quanto ao revestimento parietal essa técnica designa-se da “cerâmica relevada”, e representa uma modalidade artística que oscila entre o relevo e a forma escultórica, muitíssimo mais requintada e dispendiosa que a dos mais modestos quadriláteros cerâmicos pintados a pincel com cores lisas a que chamamos azulejos.

Os esmaltes cerâmicos e os mistérios do corpo

As placas rectangulares que compõem o extenso painel que se encontra no átrio principal dos Hospitais da Universidade de Coimbra, não sendo azulejos clássicos de cores planas, também não são classificáveis na categoria do revestimento cerâmico relevado.
Evidenciam, é certo, acentuações relevadas separando as diversas zonas de cor ou reforçando a perceptibilidade de certos grafismos, oferecendo por isso uma plasticidade enriquecida e aproveitando muito bem a penetração de luz exterior naquela área do edifício.
Concebida para ser contemplada desde o momento de entrada no vasto espaço em que se encontra, a obra apresenta na zona central uma sugestão das estruturas internas do nosso corpo, conferindo acentuada monumentalidade a detalhes orgânicos que têm tudo a ver com a misteriosa vulnerabilidade de que somos feitos. As largas avenidas por onde transita o sangue, os mais recônditos alvéolos pulmonares até aos quais o ar é incessantemente inspirado, produzindo depois, através de faringes, larínges e traqueias, o milagre da voz, a aflição de um grito e o mistério encantado ou funesto de um gemido.
De cada lado desse núcleo aparecem alguns rostos mergulhados numa indeterminação de branco e azul, porventura sugestiva do intervalo doloroso que a enfermidade abre na vida daqueles que entram no Hospital, esperando, na bondade da ciência, socorro na aflição ou alívio no sofrimento.
As proporções da obra, a sua distribuição ao longo de uma superfície articulada e o carácter plástico do material de que é composta libertam-na, de certa forma, da necessidade duma análise de conjunto, o que ajudará a mole de visitantes a procurar na obra o melhor que ela tem para lhes dar ou seja, um certo ar festivo e optimista que é reforçado pela luz intensa das melhores horas do dia.
É nas bandas inferiores e laterais da composição que vai sendo esquecida a disciplina de figuração temática a que a obra se sente vinculada, afirmando ali a expressão mais personalizada do universo do autor.

O painel de Querubim Lapa carece de… intervenção cirúrgica!…

Causa um certo desgosto ver uma obra tão importante, numa cidade onde não abundam os sinais da presença de artistas do nosso tempo detentores do perfil excelente que é Querubim Lapa, de tal forma afectada por contingências da superfície de suporte e das técnicas utilizadas na sua instalação.
Não é preciso ser especialista para notar a abundância de cicatrizes que retalham a obra ao longo de toda a sua extensão. Aqui e ali também são visíveis acções “de restauro” que não ajudam à melhoria nem técnica nem estética do seu estado de “saúde”.
Os painéis deste tipo devem ser aplicados com argamassas de certa elasticidade que possam neutralizar as tensões mecânicas sofridas pelas paredes de suporte. Mesmo que tais efeitos ocorram, as fissuras ocasionais apenas se reflectem ao longo das linhas de separações das unidades cerâmicas, que podem depois ser recolocadas após adequadas ações de restauro.
Segundo o que sei da melhor fonte, contudo, a recuperação deste magnífico conjunto está muito a tempo de fazer-se, restando esperar que bons olhos o vejam e que se coloquem mãos à obra nos cuidados intensivos de que tão urgentemente necessita. E nunca melhor dito, atendendo ao local onde se encontra!…

Azulejos de Eduardo Nery no Montepio Geral, à Portagem

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Publicado Diário de Coimbra 15 de Novembro de 2004

É muito vulgar que o custo de grandes obras dispare a certa altura do seu processo construtivo, acabando muitas vezes num preço cujo montante iguala, e por vezes supera, o dobro da verba orçamentada.
Não é preciso ilustrar com exemplos a enorme saga da “multiplicação dos milhões”, de tal modo se tornou vulgar o aparecimento de casos com o picante anexo das famosas faltas de “transparência”.
Se, contudo, um artista apresentar uma proposta para inclusão de uma obra de arte dignificante dum empreendimento, seja ele qual for, “ai Jesus que não há meios, ai meu Deus que grande crise”!… Mesmo nos casos em que o custo da peça artística não atinge sequer uma modesta fracção das alcavalas da nebulosa “intransparência”…
Do número incontável de propostas a quem ninguém respondeu, das que tiveram resposta ínvia ou, ainda pior, das que foram encomendadas e nunca foram adquiridas, nem é bom falar!…
O que seria de Coimbra se os homens dos séculos passados tivessem tido os mesmos critérios e evidenciassem a mesma indiferença perante os valores da arte?
Existiriam a capela da Universidade ou a Biblioteca Joanina? Os retábulos da Sé Velha e a sua Porta Especiosa? A talha dourada, as pinturas e os azulejos de mais de cinquenta palácios e igrejas? A pedra talhada dos relevos, as esculturas de vulto, a nobreza das torres, os campanários luminosos, a musicalidade comovente dos sinos e a ressonância orquestral dos órgãos?

O património, as expressões da modernidade e as novas formas de ver

As excepções existem, apesar de tudo, como migalhas esquecidas sobre a toalha enorme das edificações destes últimos 80 anos, mais coisa, menos coisa.
É sobre esse género de exemplos que estas “conversas” já começaram a debruçar-se, considerando certo tipo de obras notáveis poucos “vistas” e escassamente entendidas.
A instituição encomendante da obra mencionada em título já colheu, em termos da notoriedade alcançada pela mesma, o imenso reconhecimento que é patente em capas de livros, catálogos de exposições de âmbito nacional e internacional, cartazes de acontecimentos, menções em obras de autores estrangeiros, etc.
O painel foi aplicado naquela parede de fundo da agência, superfície quase impossível de conceber como portadora duma tal obra, por alcançar dois pisos diferentes que a não deixam ver inteira e situada detrás duma escada de dois lances, felizmente de concepção interessante pela relativa leveza da estrutura à base de metal e madeira.
A solução do artista, perfeitamente inserível no itinerário das suas preocupações estéticas no domínio da azulejaria e da pintura dita “op” ou seja, produtora de efeitos ópticos, foi uma composição abstracta que pudesse resistir à visão por sectores, evidenciando uma pujança cromática apoiada na riqueza de 16 cores organizadas numa sequência contínua retirada do espectro solar que, entretanto, parecem muito mais numerosas devido às interacções respectivas.
Ao nível da técnica cerâmica constitui uma inovação impossível até há poucos anos, dado que durante séculos a paleta do pintor de azulejos se encontrou reduzida a certo grupo de pigmentos, devido à instabilidade das cores que se situam na zona mais “quente” do espectro, os laranjas, os vermelhos, os roxos, os liláses, etc.

Atribulações de um quadrado amarelo em fundo de várias cores

O estudo da dinâmica cromática pode bem ocupar a imaginação criativa de qualquer cliente que espere para ser atendido e se ocupe decifrando planos que se interpõem, a interacção das cores e o jogo de efeitos visuais muito complexos.
De facto, ali se pode dar uma aprofundada lição sobre teorias da cor, entre as quais recordo os célebres tratados de Johannes Itten e as aprofundadas experiências dum artista como Joseph Albers, de quem recordo uma explêndida mostra, há um bom par de anos, levado a cabo pela saudosa Casa Alemã, sob o impulso raro e inolvidável de Karl-Heinz Delille.
Um quadrado amarelo será sempre igual a si próprio, ou pode “transformar-se” consoante esteja em fundo verde, azul, roxo, vermelho ou alaranjado?
E uma tira verde claro ou vermelho forte sob o efeito de quadriláteros de cores diversas é sempre categorizável como “cor de fundo” ou emerge, a certa altura, como “figura” de primeiro plano?
Sobram várias perguntas como estas , mas eu deixo à perspicácia visual do leitor, quando ali se deslocar, a tarefa de desmontar planos, ritmos, intersecções e interacções as mais diversas, com o privilégio de tal exercício ser possível de todo e qualquer ângulo de observação.
É de realçar que o painel apenas se compõe de azulejos simples de cor lisa de 14 cm que somente nalgumas sequências ostentam a “complexidade” de duas cores, por serem os que definem as linhas diagonais ascendentes ou descendentes.
Interessante será a observação do painel para quem suba ou desça a escada entre a cave e o rés do chão dada a confrontação prependicular entre a estrutura da mesma e a dessas barras diagonais.
Se o leitor se afirma incondicional apreciador de painéis de azulejos não deixe pois de refrescar o seu elenco de fruições estéticas com mais este produto genuíno da obra de Eduardo Nery adquirido, em tão boa hora, pelo Montepio Geral.

Teatro do brasileiro Plínio Marcos pel’A Escola da Noite

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 4 de Novembro de 2004

A primeira virtude de mais esta realização d’A Escola da Noite, com versão e encenação de Sílvia Brito e as magníficas actuações de dois bravos actores, Carlos Marques (Paco) e Ricardo Correia (Tonho) é a de trazer ao palco a obra de um brasileiro, Plínio Marcos, presença forte e interventiva da sociedade problemática e da época conturbada em que viveu.
A cultura da pressa e da falta de tempo tomaram de assalto o quotidiano, mesmo que insignificantemente improdutivo, e é raro encontrar quem se dê conta da riqueza imensa do inexplorado universo da autêntica cultura brasileira.
Chão vasto como um continente, mescla de povos vários e cadinho de culturas confluentes, o Brasil é esse outro lado do mundo que escassamente nos atrevemos a (re)descobrir, para mal dos pecados da nossa lusitanidade.
A estética da peça, afinada por um saber fazer e por uma sensibilidade requintada que são a marca distintiva dos trabalhos da casa, traz-nos mais uma vez o eterno tema da violência sob uma das suas inumeráveis roupagens.
Sobre a plataforma forrada de branco, como qualquer ring de box, saltam de tantos em tantos minutos dois lutadores acossados pelo rigor de carências duma sociedade impiedosa e madrasta.
Na sucessão de quadros que se organizam como autênticos “assaltos” dum combate muito menos que simbólico, nem faltam, a cada canto, o lugar do alucinado repouso dos contendores, a toalha que limpa o seu suor azedo e a água com que se dessedentam.
Interessará considerar a forma como termina o enredo? Valerá a pena debater a melhor ou pior justeza da solução encontrada para desenlace dos amargos conflitos daquelas duas almas errantes, irmãos gémeos de outros tantos homens a braços com a sua própria angústia, filhos doutras misérias e doutras injustiças?
É evidente que sim e bem o sabe a cultura desta Companhia de Teatro que sempre nos traz, dignificada, a arte do gesto e da palavra dramatúrgica.
Sensibilidades oriundas de um século que foi indelevelmente marcado pelos vícios e virtudes da “hollywoodesca” fábrica dos sonhos, bem sabemos de que maneira é que uma obra “contra” a violência pode fazê-la passar como razoável ou até indispensável.
Relembremos, a título meramente simbólico, um clássico de clássicos, ainda a preto e branco: “O homem que matou Liberty Valance” de John Ford. Para que James Stewart, o democrático e delicado protagonista pudesse fazer reinar a lei e a ordem e tornar-se prestigiado senador, lá teve que puxar o gatilho na sombra John Wayne, carisma vivo da mesma América profunda que apoia tão visceralmente invasões e bombardeamentos.
Longe do artificial tratamento das imagens e dos avassaladores ritmos de narração do cinema e da televisão, o teatro conserva, ainda felizmente e sempre, o metal fino da voz tremente, o claro escuro da autenticidade, as pausas, os ritmos à nossa medida e a face descoberta do actor, eco e reflexo do nosso próprio rosto.
Na peça de ontem houve uma cena que todos viram e que não fazia parte do entrecho, que não foi escrita pelo dramaturgo nem fora sonhada pela delicada encenadora.
Os dois rapazes, actores de mão cheia, cairam ao fim nos braços um do outro empolgados pela emoção do recado entregue de corpo e alma inteiros.
À espontaneidade irreprimível do abraço não terá faltado o brilho diamantino de uma lágrima. Se foi deles ou se foi minha, não sei bem. Mas coisas destas, francamente, nunca as vi nos filmes de Holywood!…

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Azulejos de Ferreira da Silva no IPO de Coimbra

Foto de minha autoria dos painéis exteriores de Ferreira da Silva no IPO/Coimbra

Foto de minha autoria dos painéis exteriores de Ferreira da Silva no IPO/Coimbra

Publicado Diário de Coimbra 26 de Outubro de 2004

Falando com uma senhora dos quadros do IPO de Coimbra que se referia de modo sensibilizado aos trabalhos de Ferreira da Silva que ali se encontram como parte do património artístico da instituição, ouço algo que alude com especial importância aos mecanismos de percepção e entendimento das obras de arte em geral:
“…A primeira vez que vi aqueles painéis de azulejos, senti-me perturbada. Ultrapassavam a minha capacidade de entendê-los com aqueles cavalos enormes de vultos decompostos; as manchas inextricáveis; a acumulação de sinais!… Um dia alguém lhes fez umas fotografias destinadas a um interessante trabalho gráfico, e essa atitude analítica, distante do compromisso da visão conjunta, foi a porta que se abriu para uma leitura, primeiro da riqueza cromática, depois do imenso universo de vestígios simbólicos. No dia a dia, cada entrada e cada saída me iam revelando um aspecto novo, uma nova faceta. Até que dei comigo, na abundância de valores plásticos, a gostar de tudo, a perceber a totalidade das forças presentes, os detalhes como detalhes e as grandes figuras como interlocutores principais, no seu poder de animar percepções mais além do real, mais perto da ideia, do símbolo!…”

O amor, esse momento principal da atitude criativa

Não vou elaborar sobre este encadeado de observações mais do que o leitor pode e estou certo que sabe fazê-lo. O enredo das nossas percepções não depende apenas do acumulado de noções sobre esta ou aquela realidade. Os afectos; o querer gostar; o achamento das entradas por onde passe a aragem dum entendimento produtivo das coisas; o amor afinal que é, como sabemos, um acto deliberado da consciência valorativa.
Passando o observador uma e outra vez defronte do importante edifício do IPO, ficam-lhe os olhos suspensos no tropel de cores e de formas dos painéis de azulejos que ali estão. Se entrar no edifício, e oxalá não seja por motivo de doença, outros sinais verá da presença artística da obra de Ferreira da Silva, mestre das artes do fogo que para os lados de Caldas da Rainha reside e exerce o seu mister de artista frequentador duma enorme diversidade de disciplinas das artes visuais: da pintura à gravura, da multiplicidade de abordagens da arte cerâmica à escultura, à arte do vidro, etc.
Na área de Pombal da A1, à vista de todos, ali se encontra um painel de estrutura decorativa muito expressiva e cheia de alegria comunicante.
Na Quinta do Pinheiro, em Valado dos Frades, Nazaré, é toda uma multifacetada intervenção que o artista desenvolveu e que contempla os mais variados aspectos da visualidade do empreendimento turístico ali situado. Quanto ao labor que tem desenvolvido nas Caldas da Rainha e sobre uma continuidade de trabalhos de arte que se estende por decénios e se tem espalhado por todo o mundo fica por dizer o essencial, falha que procurarei aliviar, resumidamente por certo, em próximas “conversas”.

FS-p

Azulejos de Ferreira da Silva no IPO / Coimbra, fotografia e tratamento de imagem de minha autoria

A presença da arte lenitivo e estímulo para quem ama a vida

Em evidência nos azulejos do IPO encontra-se abundantemente explicitada a enorme familiaridade que o artista desenvolveu nas suas profundas incursões pelas artes do fogo em geral e pela linguagem da decoração azulejar em particular. Como autor de projectos Ferreira da Silva efectua em cada obra uma espécie de mergulho de corpo inteiro, fazendo com que a atitude da concepção não se detenha no momento inicial. Até ao último gesto de aplicação de pigmentos, até ao acto de montagem de cada quadrilátero cerâmico e se preciso for em gestos de composição final fora da própria sequência previsível de associação das peças, ali encontramos uma surpresa, uma decisão inventada que desafia o espectador e o coloca perante as mais sugestivas variantes da expressão plástica que o azulejo oferece.

A materialização da luz, preocupação central do artista

Quanto à pintura sobre azulejos propriamente dita, não se esgotam os recursos de novidade e encantamento. Uma técnica dominada pelo experimentalismo confere ao simples quadrilátero cerâmico a categoria duma peça em relevo, cujos pigmentos borbulham e ressaltam numa inquietação que a cozedura impôs, modulando as cores muito para além da monotonia de lisura de certa azulejaria vulgar. A utilização de processos de execução automática, ou máscaras, abre em negativo imagens que noutros locais se apresentam em positivo, e inúmeras variantes decorativas de fundo aparecem muitas vezes seccionadas por sinais de uma gestualidade resoluta e inesperada. Fissuras e vibrações de todo o tipo acrescentam a casualidade que só obras com vários séculos de idade podem oferecer ao apreciador inveterado. Bem fizeram os dirigentes e responsáveis do Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil de Coimbra, ao terem adquirido os diversos trabalhos de Ferreira da Silva, ali presentes. Além duma atitude de bom gosto, foi de certeza um acto destinado a estimular a inteligência vital e a capacidade de encarar cada momento de vida com o mesmo desígnio intencionado de encontrar a luz que a obra de Ferreira da Silva tão coerentemente persegue.

Eduardo Nery no CAE da Figueira da Foz, azulejo, mosaico, vitral e tapeçaria

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Publicado Diário de Coimbra  1 de Setembro de 2004

Até fins de Setembro é ainda tempo para visitar a notável exposição retrospectiva de Eduardo Nery no Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, que abarca a actividade do artista durante mais de quarenta anos em disciplinas tão variadas como o azulejo (com parte de leão), o mosaico, o vitral e a tapeçaria. De assinalar a qualidade da exposição quanto à distribuição espacial, ao desenvolvimento estético-pedagógico e à natureza especialmente valiosa dos conteúdos. Foi organizada por entidades museológicas nacionais, mostrada em Lisboa e Porto, e deveria ser chamada a desempenhar um importante papel junto de públicos diversos para além dos que são assíduos na visitação de actos artístico-culturais.

À atenção de donos e mestres de obras

Se tivesse o privilégio de escolher leitores, gostaria hoje de chamar a atenção de donos e mestres de obras, empreiteiros, empresários, arquitectos, autarcas ou outras entidades que tenham a ver com a preservação e desenvolvimento do nosso património edificado. Muitos dos edifícios que são construídos no nosso país ostentam, no que toca a processos de resvestimento exterior e interior, soluções que nada têm a ver com a cultura artística do país ou com as suas características climáticas, estendendo-se a questão ao interesse arquitectónico que deveria merecer o chão, as fachadas, as paredes, os vãos e os tectos. As imensas superfícies envidraçadas e os cinzentos ou castanhos metalizados, por exemplo, bem podem fornecer o toque de espavento pseudocosmopolita,  mas carecem da nobreza de materiais e técnicas mais conhecidas entre nós, obrigando em certos casos a vultuosos dispêndios energéticos em aquecimento, no inverno, e em ar condicionado, no verão. Onde contudo mais rotundamente falham é na ruptura com modelos de caracter estético que conferem ao nosso contexto urbano as suas características próprias e a sua marca de individualidade. Os hábitos dos agentes construtores e o isolado elitismo da cultura artística institucionalizada são realidades que entre si se ignoram, donde a fácil vitória do novo-riquismo invasor e do facilitismo consumista, eivados muitas vezes dum eriçado e lamentável mau gosto. Parece que o país enjeitou ou é incapaz de defender e criar os seus próprios modelos, desperdiçando riqueza na importação de outros que lhe são completamente alheios. É por isso mesmo que desta vez não me dirijo aos intelectuais, aos ilustrados professores e aos estudiosos, tão atentos às vertentes históricas consagradas e tão distanciados das realidades concretas do hoje, com suas determinações e exigências naturais.

A exposição de Eduardo Nery devia ser visitada pelos homens que vão ter na mão o lápis que faz os esquiços dos ante-projectos, os que têm a incumbência de elaborar os cadernos de encargos ou que empunham a caneta que assina a ordem de construir as obras. A cidade de Coimbra, onde não abundam os exemplos da utilização moderna de meios cerâmicos para revestimento ou decoração parietal, dá mostras crescentes de já ter adoptado a famosa receita das fachadas envidraçadas, das precárias superfícies de fosco metalizado e aquelas coisas espelhadas que brilham muito, estereótipos copiados não se sabe donde, reflectindo o gosto, ou falta dele, de quem tem pressa no acto de escolher e completamente ignora os imaginários que fizeram de Portugal um país com arte e cultura próprias.

Azulejos Eduardo Nery, Metro Campo Grande, Lisboa (Wikipedia)

Azulejos Eduardo Nery, Metro Campo Grande, Lisboa (Wikipedia)

Os painéis antigos também foram arte contemporânea

Algumas importantes e prestigiadas empresas que durante muitos anos produziram cerâmica com finalidades construtivas, decorativas ou simples utilidades de uso quotidiano saíram já de cenário. O seu trabalho ficará na memória dos que tiverem a coragem de querer saber quem somos, páginas de um presente “passado” ao qual se virou costas porque importar é mais “barato”, e aquilo que por cá se faz “já está mais do que visto”. O desfilar de exemplos oferecidos pelas intervenções urbanas de Eduardo Nery são duma imensa variedade  e riqueza, não deixando de evidenciar um desejável sentido renovador. São outras tantas vitórias do operador estético junto da sociedade produtiva na qual se insere, e da qual depende inteiramente no acto esclarecido da encomenda. A renovação e o reforço da capacidade produtiva dum país não caiem do céu aos trambolhões, e é preciso que todos os agentes construtores se lembrem disso. Os magníficos painéis de azulejos que foram produzidos em Portugal durante os séculos passados eram, nessa altura, arte contemporânea e, muitas vezes, fortemente inovadora. Muitos deles foram exportados e, onde quer que se encontrem, são ainda motivo de enobrecido prestígio e admiração. Quem quer que os encomendou fez o melhor dos negócios: serviu o presente e garantiu o futuro.

Se os homens deste início de terceiro milénio não sabem disso, como poderão ganhar alguma vez o direito e o mérito de ser lembrados como verdadeiros agentes de evolução e progresso? Como poderão alguma vez enunciar com honra, a par do proveito imediato, a qualidade e o valor do produto do seu trabalho?

O Cerejal, de Anton Tchekhov pel’A Escola da Noite

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 15 de Junho de 2004

Ir a um espectáculo de teatro continua a ser uma das formas sociais mais inteligentes e interessantes de passar o tempo. Ali o espectador não é objecto de emoções injectadas pela paixão incontrolável ou pela excitação desabrida. A pessoa que vá ao teatro é sujeito principal duma acção estimulante do espírito e nada há numa peça, por mais excelente, que não tenha de ser arquitectado na mente de quem vê, de forma sensível e perceptiva. Mesmo que já se tenha visto antes, mesmo que se conheça o autor e o texto esteja bem presente na memória, a representação traz sempre consigo uma novidade, um desafio, uma renovação da nossa capacidade de ver. Que coisas poderá trazer-nos esta obra, cem anos depois de ter sido estreada no contexto específico do colosso cultural da Rússia de Tchekhov? Fixemo-nos apenas numa ideia que opressivamente condiciona todo o entrecho e que para mim é o personagem principal, sem ser actor nem figura material visível. A ideia de mudança, de princípio e de fim, de transitoriedade fatal de tudo aquilo que se agita sobre o palco cénico tal como no mundo e na vida.

A vida, palco infinito de miragens sobrepostas

No terceiro acto, enquanto Pétia e Liuba Ranevsky travam um diálogo absorvente e esta se confessa perdida e desorietada como num mar revolto, temerosa perante o desastre eminente, lá atrás no salão, decorrem festejos ao ritmo duma música excitante. O interessantíssimo e eficaz dispositivo cénico dá ao espectador essa simultaneidade de mundos que entre si se confundem, dizendo uma coisa as palavras e anunciando outra os sentidos, tal como nas contradições universais da vida.
O que é a verdade? pergunta Liuba a Pétia, discorrendo sobre todas as coisas graves do envelhecimento, da perda, do sofrimento e da dureza da vida: o filho morto no rio, a casa mãe à beira do abismo, longínqua e perdida já a doirada tradição da abundância e a certeza num mundo seguro e imutável. A intervalos regulares invadem todo o espaço a irrequieta música que não se cala, o bulício circense e a vitalidade sensual dos corpos que bailam. Exactamente como na vida de todos os dias, há cem anos como agora, o amor e a morte dão-se as mãos num encadeado de contradições sem freio, de miragens sobrepostas, de breves feixes de luz colorida que a obscuridade triste da realidade envolve, pesadamente.
Ermolai Alexeevitch Lopakhin é o novo rico que está ali, cheio dos argumentos indestronáveis do poder e do sucesso, para demonstrar que a vida prossegue, implacável, dando razão a quem pode enfrentá-la com imensa energia, rudeza e uma indispensável fortuna rara e casual. Ania, criança virginal de amor, acaba por fugir com Pétia depois de o ter simbolicamente armado com as suas perdidas polainas, frágil garantia de longa e proveitosa jornada direitos ao coração do futuro. Para a nobre família a catástrofre inevitável consuma-se entre preparos e arrumações diversas, árvores que se abatem e servos para sempre fiéis, até no inevitável instante da morte.

Mil janelas, mil bandeiras verde rubras

Pateticamente ausentes já, olhar ansioso fixo num ponto indistinto do horizonte, os velhos aristocratas despedem-se ao sair para um Paris simbólico que não existe para eles, porque não existe, pura e simplesmente.
Fazem-me pensar nas varandas e janelas do meu país ilusório e festivo, inundadas de bandeiras nacionais, conclamando as gentes a uma estranha unanimidade de entusiasmos galvanizantes. Será que os optimistas que assim se exprimem ignoram que o estandarte republicano, em seu contraste dramático de cores elementares, simboliza mais as dores e o sofrimento que a frescura da esperança? Quem há aí, dentre vós, que tenha reparado que o vermelho é muito mais que o verde, e apela à determinação, ao espírito de sacrifício e à aceitação do destino trágico?
Ou será que cem anos depois d’O Cerejal, a música fácil e a tontura das danças continua a iludir a palavra reflectida e o discurso incómodo da verdade?

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Daquel Abrente, o Centro Dramático Galego na Oficina Municipal do Teatro

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 4 de Junho de 2004

O Teatro é um acontecimento para se festejar de pé, ombro a ombro, com alegria e lágrimas que fazem tremer os lábios por se ter soltado nas veias o sangue espesso da verdade. Se isso for em praças de gente madura, tanto melhor, para que não ecoe solitariamente a voz que deve ser de muitos, para toda a gente.

“Daquel Abrente”, memória de uma alvorada

Em visita de qualidade veio da Galiza a proposta cenográfica citada, em intercâmbio organizado pel’A Escola da Noite que também se apresentou em Santiago de Compostela com trabalhos sobre Gil Vicente, para trazer testemunho do corajoso acontecimento, há vinte e cinco anos, da fundação do teatro profissional naquele país.
Se digo país penso na vontade de afirmação cultural e na capacidade de organizar essa e outras modalidades de intervenção, das quais se salientam hoje as peças escritas por dois notáveis autores galegos : “Laudamuco, señor de ningures” , de Roberto Vidal Bolaño e “O velorio” de Francisco Taxes.
Obras escritas nos anos setenta, num momento de transformações importantes na Península Ibérica em geral e na sociedade galega em particular, recorrem a uma estética de clareza e frontalidade emocional onde é possível descortinar raízes da expressão artístico-literária vincadamente autóctones umas, e de perfil universalista, outras.
Inevitável é mencionar a qualidade de amadurecimentos acumulados neste quarto de século por alguns dos actores em cena. A figura imensa de Rouco, por exemplo, feita por Rodrigo Roel, encarna a figura do servo e sustentáculo único da paranóia de um rei que já não é, no plano de descolocação patética de uma farsa que abre caminho à mais certeira ironia e ao mais devastador retrato dos poderes absurdos, das proeminências ridículas e das dignidades putrefeitas.
“O Velório”, que foi na época em que estreou uma obra revolucionária e que já em 1978 arrastou uma multidão de entusiasmo ao FITEI do Porto, ao qual regressa este ano, é o traço expressionista a branco e negro de uma explosão de indignações recalcadas perante o ocaso do poder, simbolizado pela morte da figura opressora e tutelar. A acção desenrola-se no clima de excesso e destemperança das festas e ritualidades parateatrais, apetecendo ainda mencionar o “esperpento”: género teatral que surge com “Luces de Bohemia” de Ramón del Valle-Inclán, em 1924, e no qual se fundem de modo particular o sentido da farsa e da tragédia.
Na continuidade que estes espectáculos evidenciam há que referir também o conjunto musical dos irmãos Morán, protagonistas do roque galego dos anos setenta e que actuam ao vivo ao longo das duas peças com sublinhados e intervenções de efeito surpreendente.

A fala galega, só deles ou também nossa?

Se há razões que a noite húmida e quente deste fim de Maio oculta em seu segredo, não deixa de ser impressionante que tenhamos podido assistir a todo um serão de teatro em fala estrangeira que todos nós fomos percebendo de maneira intuitiva. Assim à maneira de uma coisa antiga que perfeitamente reconhecemos, sem termossido obrigados a ter de estudá-la na escola.

Malick Sidibé no CAV, ou o glorioso espectáculo da humanidade

Malick Sidibé no CAV, ou o glorioso espectáculo da humanidade

Publicado Diário de Coimbra  21 de Maio de 2004

Pensar em África resulta sempre num imenso encadeado de associações de ideias em que se dão as mãos a mais deslumbrante paixão vital e os mais dolorosos sentimentos de prejuízo humanitário. Malick Sidibé, homem que nasceu em 1936 no Mali, estado vizinho da Guiné Bissau, fez parte das gerações que testemunharam “uma época de mudança resultante do fim dos impérios coloniais”. Acho que vale a pena mencionar que o Mali, antigo Sudão francês, apesar de ser o primeiro produtor de algodão da África subsariana, ocupa o 4º lugar entre os países mais pobres do mundo.

Olhando pois para as datas em que foram tiradas as fotografias expostas no CAV, causa-me um assombro de luto concluir que o esplendor de juventude e de vitalidade palpitante evidenciados pelos figurantes das mesmas pode entretanto ter-se extinguido, bastando saber que a esperança de vida não ultrapassa naquele país a barreira dos quarenta anos. Visitemos o CAV, não obstante, colhendo de cada imagem o deslumbramento de que formos capazes, aceitando como perene a natureza revelada e a juventude sem limites, porque convictas da sua própria autenticidade, ostentando todos os símbolos possíveis de exuberância afirmativa, quer de natureza tradicional e autóctone, quer de importação recente, sujeita aos ditames duma outra sociedade, cujas excelências podem nunca ter sido experimentadas pelos retratados. Malick Sidibé, de quem se diz “ter fotografado sempre por gosto e dever de ofício, jamais pensando numa carreira artística”, teve o talento de fazer passar pelas suas objectivas todas essas figuras saturadas de naturalidade, muito embora entregues por vezes, com a cumplicidade óbvia do próprio autor fotógrafo, a um jogo de atitudes artificiais comandadas pelo desejo de representação de subjectividades e de anseios pessoais.

À primeira vista fáceis de organizar tipologicamente, as fotografias de Sidibé revelam-se abundantes na variedade de propósitos de cada um dos protagonistas, ou grupos de protagonistas,  e na captação peculiar que dos mesmos foi efectuada pelo artista. Aparece a fotografia a três quartos e de meio corpo, evocativa da sumptuosa tradição da arte do retrato, as figurações conjuntas de colectivos em poses que sempre nos dizem muito pela energia e coesão respectivas, a galeria de figuras isoladas cuja personalidade é evidenciada pelos expedientes mais simples e a daqueles que se preocupam em ostentar certos símbolos aculturantes de efeito pretensamente convincente. Sabemos que o artista, já no virar do milénio, e depois de ter caído em desuso a fotografia de retrato tradicional, iniciou experiências com retratos de pessoas que figuram viradas de costas para a objectiva. Sem qualquer informação adicional, a opção não deixa de parecer misteriosamente simbólica de todo o encadeado de problemas em que mergulha o homem africano, ensimesmado na solidão do seu drama, afastado cada vez mais das fontes ancestrais donde parecia brotar uma pureza de vigor sem limites, e nem por isso mais próximo dos padrões afirmados pela envolvente e invasora civilização do homem branco.

Nos “Project Rooms” estão duas realizações, uma da autoria de Ricardo Valentim e outra evocativa da experiência em África dos familiares de Manuel Santos Maia. A primeira das duas faz convergir várias modalidades de intervenção artística: o registo mural, a pintura sobre tela e algo que me permitirei designar, sem compromisso de rigor, como uma “elaboração escultórica”.  O diálogo travado entre essas componentes é-nos apresentado num espaço esguio e alongado, o que acentua o efeito cenográfico do conjunto. Toda a instalação, realizada com materiais francamente modestos, opera uma fusão dinâmica com a iluminação do compartimento, particularmente expressiva para os elementos situados na parte mais elevada. Quanto ao projecto de M.S. Maia é de salientar o interesse histórico, etnográfico, cultural e até afectivo que evidencia, não sendo legível de forma imediata, antes solicitando uma cuidada observação. O espaço concentrado em que se encontra e o facto de a projecção de slides ser de fruição intimista (através de auscultadores), é inversamente proporcional ao âmbito do projecto, dotado de amplas áreas de significação que abrem para questionamentos da mais variada índole. “Espaços de projecto” deste tipo demonstram que as obras que figuram, por necessidades compreensíveis, em salas algo mais recuadas, não são menos merecedoras duma apreciação cuidada e atenta se fornecerem, como é o caso, e traduzindo do inglês, “alimentação para o pensamento” (food for thought!…)

Rappaport pela Bonifrates sobre a velhice com graça sem mentir

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 19 de Maio de 2004

Como é que é possível falar da velhice sem desmoralizar as pessoas que tenham mais de trinta anos, colocando na mensagem suficiente ardor de clareza e a dose certeira de verdade? Como é que é possível falar da velhice sem aborrecer as pessoas com menos de trinta anos, essa magnífica porção das nossas vidas durante a qual a perda da juventude, sem ser por lampejos vagos ou fatalidades casuais, parece ser um país tão longe, tão para lá dum oceano de sonhos magníficos, ainda por atravessar? Por uma vez na vida, caro leitor, à fé de quem sou, faça o que lhe digo: vá ver a peça que a Bonifrates leva à cena no teatro de bolso da Casa Municipal da Cultura, e não terá que se arrepender. As tarefas de dramaturgia e a encenação são de João Maria André, ficando eu triste por não poder detalhar toda a equipa de trabalho, tão eficaz e acertada que tudo na peça parece fácil.
A realização reflecte simplicidade sem falta de requintes: uma entrada através do cenário, ao fim dum amplo corredor atapetado com cascas de pinheiro a estalar debaixo dos pés que sugerem as coisas antigas e fundamentais da natureza; uma música de fundo composta para o efeito, sinalizando de forma inspirada as circunstâncias que viajam pela peça dentro; um lote de actores secundários perfeitamente credíveis que entram a tempo e fazem bem o que lhes toca sem vacilar e, para finalizar, como se fosse coisa simples, um par de actores principais dispostos a enfrentar denodadamente um texto que atravessou o Atlântico fazendo grandes sucessos em ambas as suas margens e tendo ganho esse raro e difícil galardão que é chegar a ser cinema, interpretado por actores mundialmente conhecidos.

A realidade maior também pode ser inventada

O entrecho desenrola-se num banco de jardim duma grande cidade em que a visita de intrusos maldosos parece ser coisa fatal e inevitável. Os protagonistas são dois velhos que fazem do glaucoma, das cataratas e dos acidentes ortopédicos histórias contáveis a par de muitas outras coisas vividas, arduamente sofridas, risonhamente sonhadas ou simplesmente… inventadas. Isso, inventadas, porque a invenção é um navio sempre pronto a largar, tenha o piloto um coração forte e sejam largas e generosas as velas da imaginação!… Ambas as figuras evidenciam a problemática universal das pessoas de idade avançada enquadradas, para mais, em contextos sociais desumanizados, indiferentes aos direitos dos cidadãos mais isolados e desvalidos. Victor Torres e Fernando Taborda são “Nat” e “Midge”, duas figuras cujas caracterizações dicotómicas tocam extremos tão frequentes no romance e no teatro (um “D. Quixote” e um “Sancho Pança”). Se o primeiro se exalta na exuberância idealista e na bravata destemida e vulnerável o outro rasteja, terra a terra, em obediência ao mais pragmático conformismo. Conseguem isso, aliás, operando essa coisa simples e tão natural em grandes actores de teatro que é o prodígio da transfiguração. Um é o cegueta assustado e escapista, o outro um impulsivo sonhador que ergue o braço frágil e a mão tremente como se fosse um desfraldado estandarte combativo, inebriado pelas palavras, como quem se olha ao espelho dos mais calorosos ideais.
Como acontece no discurso literário, além da acontecer na própria realidade, são duas figuras que se fundem numa amálgama de contradições produtivas, numa abundante percepção da vida, feita de uma imensidade de gestos com sentido e de raros momentos felizes com lágrimas ou sorrisos, em que a vontade coloca o destino nas mãos dos homens como uma flor gentil, demasiado frágil para que dure, demasiado preciosa para que desistamos dela.
Vá leitor, faça o que lhe digo: vá ao teatro! Vá, que é com isso que pode dar à vida um dos seus sentidos principais. Vá, enquanto é tempo, não venha a velhice um dia por aí apanhá-lo irremediavelmente desprevenido.

Ridiculum Vitae, solos para duas atrizes em noite de sonhos e de sombras


Publicado Pelo Diário de Coimbra em 14 de Maio de 2004

Helena Faria e Alexandra Silva são duas atrizes excelentes, cuja persistência nas artes de palco já granjeou um abundante lote de recursos expressivos de que dá testemunho abundante a peça que tem ido à cena no Inatel, depois dum largo percurso de representações noutros locais.
A peça é constituída por diversos quadros que fazem desfilar perante nós um variado grupo de casos femininos, criaturas situadas naquela margem da vida em que os desencontros e a caracterização problemática se cruzam com essa debilidade a que chamamos ridículo, e que tão mais frequentemente abunda do que à primeira vista pode querer parecer-nos.
A densidade de conteúdos e o primoroso desempenho ficam na memória de quem tenha visto a peça, como segredo e privilégio bem guardados.
Com efeito, numa noite de festas estudantis como há tantas, em que milhares de jovens saturam a cidade de ânsias naturais e alguma sofreguidão incerta de futuro, entra o espectador na sala enorme de espaços vazios e assusta-se, transido pela solidão que rodeia o culto excelente das palavras sentidas.
Leio o modesto folheto editado pela Associação Cultural Camaleão e reparo que a ficha técnica do cuidadoso espectáculo pede meças ao número de espectadores presentes.
E não é por ser esta a peça, nem por serem estas as actrizes (que já sublinhei serem excelentes), nem por ser esta a sala (que até está situada no caminho de toda a gente que atravessa Coimbra numa noite de sombras e sonhos!…)

A falta de meios, uma história mal contada

Cada sociedade elege os ídolos que quer e que entende, e as suas maiorias estão atentas a tudo aquilo que comporte uma compensação imediata, uma facilidade, um estímulo gratuito, mas nem sempre inóquo, partilhado pelos ecrãs da notoriedade.
Estar na crista duma onda iluminada, tonitroante de fama e de sucessos, eis o que cativa e reune multidões. E os pastores de entusiasmos sem sentido não regateiam os meios, os milhões estão ali, palpitantes, que não me deixam mentir.
Daí que me canse, e ofenda até, ouvir a cantilena roufenha da falta de meios para tudo o que seja um esforço semeador e inteligente.
O futebol é a mais milionária das encenações, a que agita mais dramas vazios e anima mais conflitos, a que está mais à mão de toda a gente para alívio de tensões diárias, de entusiasmos que sufocam sob a pressão de carências sem nome.
No Inatel, com as mesmas velhas roupagens que lhe conheço de há um ror de anos, um par de fervorosas beatas em delírio de idolatria folclórica, uma atriz porno remoendo no seu íntimo medos e desejos desordenados, uma feirante de língua de prata em fuga com filhos nos braços e várias outras figuras de vivo recorte cénico, desfilam perante nós com toda a eloquência de trajectos difíceis, verdadeiros, pungentes ou complexamente ridículos!
Na rua, a caminho da festa maior, vários grupos de estudantes caminham duvidosamente alegres (ou quase tristes…) alguns demasiado ébrios para darem bom nome ao vinho que beberam.
O teatro fica à espera deles. Um dia, quem sabe, talvez com ele se cruzem, em sua ilusão e ânsia de futuro.

Jemima Stehli e Pedro Cabrita Reis no CAV

Publicado Diário de Coimbra  13 de Fevereiro de 2004

Regresso a casa de mais uma visita ao CAV nesta tarde de ameno inverno que envolve na luz as mais desencontradas ilusões dum quotidiano ferido por vulgaridades atrozes e contingências que só o tempo resolverá, na sua incessante máquina de reproduzir instantes. Manuseio com prazer o material de apoio estético que trouxe comigo, resultante do esmero habitual da instituição. Resisto à tentação de mergulhar já na contemplação do livro branco que guarda o segredo de Jemima Stehli, a carne “cromogénica”, a epiderme feminina em “gelatina de prata” e o “velcro” em “plexiglas”.

Dos pátios com vocação lírica à insignificância dos críticos

Para já, o átrio exterior e as “Longer Journeys” de Pedro Cabrita Reis. Quando vi no jornal a primeira foto de divulgação da obra, mostrava-se a mesma num espaço interior, quase exíguo, de paredes de tijolo maciço e tecto de travejamento em madeira, soturnamente evocativo duma atmosfera fechada na humidade do silêncio. “Onde ela ficava bem era no pátio do CAV”, pensei de mim para comigo! E ela ali está, de facto, para benefício de quem visita, acrescentando valor ao sítio, “projectando-o”. As proporções humanizadas daquele quase recinto de teatrais enredos conferem à estrutura a sugestão interminável de pórticos sobrepostos, como se se tratasse de encenação operática ou labirinto para ritmados desencontros. Aquilo que o trabalho de Cabrita Reis foi de nave luminosa no espaço fechado, transforma-se ali numa sugestão de mergulho no firmamento, sobretudo se tivermos, como eu, a sorte de visitar aquele espaço à hora final da tarde em que mais hesitante e colorida é a luz que rodeia o mundo. Afirma PCR que “…A arte tem a ver com questões e nunca com declarações” e isso é algo que não vou aclarar, posto que o leitor melhor saberá fazê-lo que eu próprio já que, como bem afirma Barry Schwabsky no seu texto sobre Jemima Stehli “Só um louco tomaria um crítico de arte como uma autoridade em qualquer assunto…”

O interminável corpo da mulher

À parte a presença, pateticamente irrisória dos co-figurantes de algumas das obras propostas por JS (ou exactamente “por causa” dessa presença intencionada…) o corpo da artista erige-se em monumento ao acto fotográfico, não deixando contudo de nos embalar na evidência carnal e trágica que consigo transporta. É curioso que só às co-figurantes tenha sido conferida a gravidade problematizante da nudez . Como se aqui a nudez de pé fosse um privilégio de mais segura eternidade, e o riso equívoco de homens sentados o passaporte para uma relativa dignidade, redutora e burocrática. Como é monumental e decidida a figura perpendicular de JS, vestida ou nua, em paralelo, deixando para trás a superfície branca da tela de fundo! Como é literária e pictórica nas fotos coloridas, em movimento ou desconcerto posicional se em fundo vermelho! Grace e Karen são empurradas até nós num quase perturbável “exagero de proximidade” pelo esplendor tecnológico-fotográfico dos laboratórios londrinos. Nessas duas situações JS “apaga-se” numa surda presença oficinal, sendo apenas evocada  na semelhança longilínea das duas mulheres figuradas, ambas escorreitas e de bem marcada genitalidade, como ela própria. O “Strip” da artista frente às personalidades sentadas é impiedosamente ruidoso, sinalizando mais do que evidenciando as contingências do mostrar dúbio, convencional e estratégico, não se esgotando nisso uma variedade de outros aspectos do conjunto de fotografias que nos é mostrado.

Project rooms, o futuro e o juízo rigoroso

Nas minhas andanças de pintor sempre ouvi dizer aos meus críticos mais lúcidos e pertinentes que a obra é que conta, e só ela, para a ponderação do seu valor intrínseco. A explicação, o enredo, os preâmbulos que a respeito da obra possam ser aduzidos em nada contam, e nada pesam a favor ou desfavor da dita. A esse respeito muito caminho terá de andar a arte contemporânea para que transponha o portal das suas importantes intenções, se não corporizar de forma universalizante o teor dos seus conteúdos. O esmero estético das obras de Catarina Felgueiras e Nuno Ramalho, e o impacto problematizante de que se revestem alguns dos seus argumentos expressivos dependem demais do texto de Miguel Amado para que possamos “lê-los”. E isso entende-se na rapidez fugaz que certo público dispensa à visita dos espaços reservados a essas duas contribuições.

Gabriel Orozco, no CAV (Centro de Artes Visuais), ao Pátio da Inquisição

Publicado Diário de Coimbra  23 de Maio de 2003

A visita à exposição de Gabriel Orozco, rapaz que nasceu no México quando eu já tinha os meus vinte anos, proporcionou-me um daqueles momentos raros na vida que permitem pôr de lado uma série incontável de relativismos, necessidades e tensões da mente. Desligar defesas às quais a crispação dos dias nos obriga, para deixar entrar por janelas escancaradas a deliciosa carícia do vento antigo que traz notícias da criação do mundo e que, no mesmo trajecto de impulsos, aponta lá para diante, para onde pensamos que mora o futuro. Vagueei por entre os variados motivos que no elegantíssimo espaço se encontram dispostos, sem qualquer necessidade de referenciação cronológica, social, histórica ou geográfica, captando em cada família de objectos o nexo imperioso de inter-relações formais, simbólicas e estéticas que desenvolvem no observador.

Das cidades ancestrais aos gestos do futuro

Ao entrar recebe-nos uma primeira e sumptuosa visão de grande angular que mostra uma cidade de um país antigo feita de arquitecturas de terra, telhados frágeis de colmo e  terraços áridos de secura. Ao fundo dessa fotografia ergue-se a sentinela vigilante que separa as almas da lonjura da planície e das serras distantes, uma monumental formação pedregosa,  fortaleza natural esculpida e afeiçoada por ventos e por milénios. Esse primeiro elemento encoraja-nos a descolar das coisas que deixámos lá fora na rua poluída e ruidosa onde todas as atitudes vitais parecerem depender do esquematismo de sapiências controladas. Em cima das mesas, cheias da nobreza expressiva do material singelo de que são feitas, encontram-se objectos de barro cozido, a primeira das famílias que referenciamos. Impressionam pela robustez estética e pela variedade de conceitos plásticos, situados nos extremos distantes da funcionalidade para a sobrevivência, na determinação do gesto construtivo e no reflexo das configurações do corpo. Uma dessas figuras transmite, na antiguidade do material de que é feita, a explícita alusão às branduras do corpo íntimo, tal como outras remetem para uma ortopedia ciclópica ou sugerem modelos reduzidos de compactos megalitos. Nas paredes outras fotos e outros desenhos transpõem para distintos planos de significação os objectos referidos, enquadrando-os no contexto de uma civilização bem próxima da terra, de formas e gestos universais onde as linhas da própria mão se apresentam impressas, tal como as nervuras delicadas das folhas de uma planta.

O fenómeno mais intenso e a descoberta que fará flutuar o visitante encontra-se exactamente nesse cruzamento de sentidos. Das fotografias aos objectos e destes às elaborações desenhísticas e pictóricas há uma acumulação de itinerários que conduzem da gravidade remota de silêncios arqueológicos até às sínteses mais depuradas das visões da modernidade. Nas fotografias não é o pitoresco de circunstâncias etnológicas ou folclóricas o que mais impressiona mas sim a memória duma antiguidade transcendente na qual o vulto do homem, tal como nas grandes narrativas mitológicas, aparece apenas de forma austeramente simbólica confinado às imagens que reflectem a sua labuta pela sobrevivência: uma epopeia de pegadas em chão de terra seca, carreiros de pedra solta ou lajes afeiçoadas ao caminhar sólido e lento que conduz à eternidade.

A responsabilidade cultural e os cerimoniais inúteis

Exposições como esta, somatório de atitudes de rigor e generosidade formativa/informativa, responsabilizam imenso o visitante. Se houver olhos para ver e entendimento aberto para o fenómeno que está presente actualmente no Centro de Artes Visuais (CAV), e de que a exposição de Gabriel Orozco não é nem o primeiro nem o único sinal disponível, a comunidade dos apreciadores das artes vai ter cada vez mais dificuldade em entender a trivialidade baça e sem sentido de pendurações inconsequentes de objectos desconexos e abandonados à sorte da sua própria circunstância, por mais respeitável e entendível que tenha sido o seu momento criador (e muitas vezes, infelizmente, nem é esse o caso). Não vale a pena conceber a arte e a cultura como uma fatigante colecção de formalismos mais ou menos credenciados pela dignidade transitória de notabilidades encadeiradas. Se a cultura ou a arte não atingirem a serenidade fecunda da substância realmente comunicante, não passarão da fragilidade dum quotidiano sem raízes, nem memória, nem semente que floresça no ventre do futuro.

Arte moderna, Arte do sec. XX, no Museu da Cidade (2)

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Esta imagem não se refere ao texto abaixo. Representa a contra-capa da exposição de abertura do Museu da Cidade, no Edifício Chiado em Coimbra.

Publicado Diário de Coimbra  13 de Maio de 2003

A exposição que se encontra no Museu da Cidade, comissariada por Telo de Morais, continua a suscitar uma merecida atenção e um elevado número de visitas, revelando-se uma iniciativa esclarecedora de alguns aspectos, infelizmente ocultos, do sentido de modernidade em Coimbra no que toca às artes plásticas, para o período a que diz respeito. Tendo tido ocasião de referenciar o primeiro de tais acontecimentos (a exposição é projectada no tempo em capítulos distintos que vão estender-se até Janeiro próximo) muito ficou por dizer, e é por isso que volto a estas “conversas”, sem receio de que me falte assunto.

O desejo e a capacidade de ler a actualidade

A realização tem por base um limitado número de peças dum limitado número de artistas e não abrangerá naturalmente a totalidade de coleccionadores de Coimbra. Como já disse no primeiro comentário escusa-se ainda (compreensivelmente?) à inserção de valores residentes. A espiral descendente que assim se desenha em nada diminui o mérito da iniciativa que pode a vários títulos considerar-se percursora, numa cidade que não se envergonha de um acentuado “deficit” de modernidade estética que é traço grosso da sua própria fisionomia urbana e dos vocabulários da sua  representação socio-cultural. Sendo difícil classificar exaustivamente todo o tipo de impulsos que conduzem à formação de colecções de arte moderna, é claro que implicam pelo menos o desejo e a capacidade de entender e acompanhar fenómenos de cultura da própria actualidade. A incapacidade de fazer a leitura e de conviver com objectos estéticos cuja antiguidade pode ter quase um século tornam imperioso o estabelecimento dum amplo debate de ideias, por todo o tipo de razões, até de natureza não exclusivamente artística. Depois do comentário feito à primeira das exposições deste ciclo, impunha-se à minha curiosidade a avaliação das ideias e do sentimento de um dos coleccionadores colaborantes da mostra, uma das tais pessoas cuja identidade foi – ao que me parece injustificadamente – mantido no âmbito duma cautelosa confidencialidade, a que a curiosidade incontida acaba por conferir a volatilidade daquilo que em teatro se apelida um “segredo de Polichinelo”. O estabelecimento do contacto acabou por fazer-se de forma perfeitamente natural, e nem à pequena história interessam os detalhes que me levaram à presença duma pessoa apaixonadamente interessada, intelectualmente inquieta e repleta de todos os atributos do espírito que eu acho condizentes com o estatuto interessantíssimo do genuíno coleccionador de artes. Numa coisa tive de concordar, por respeito às conveniências idiossincráticas da cidade que todos (mal) conhecemos ou seja, a manutenção do anonimato do meu interlocutor!…

Arte em diálogo, precisa-se!…

A presente crónica não conseguirá resumir o vastíssimo leque de sensações fortes que a troca de impressões me proporcionou, após uma visita à esclarecedora e surpreendente reserva de obras na posse do coleccionador, e ao longo de um jantar de amigos que, noite fora, nos permitiu “assentar ideias” a respeito duma variedade muito ampla de temas e problemas: o ensimesmamento e o passadismo artístico-intelectual vigentes; a carência dum verdadeiro encontro entre pessoas interessadas e respectivo debate de ideias; a subalternização de certas iniciativas através da negligência promocional; a pobreza de entusiasmo dos “funcionários da cultura”; a inexistência de “gestores culturais” devidamente habilitados; o ascendente que o “político” e o “burocrático” possuem no plano das realidades concretas; o enfileirar estatístico de acontecimentos avulsos, à margem dum sentido de projecto cultural, etc. Por último, nem foi esquecida a falta de galerias de arte suficientemente pujantes, com projectos dinamizadores e desejo de credibilizar a arte e os artistas!…

Crónica de entrevistas adiadas

O Coleccionador (chamemos-lhe assim, e ponhamos maiúscula por ser equivalente de nome próprio) prometeu alinhar, para publicação oportuna,  algumas ideias interessantes a respeito da atitude e da substância da colecção de obras de arte. Fica portanto prometida sequência para este início de “conversas” sobre a “Arte Moderna, Arte do Sec XX”, para as quais ficam todos desde já formalmente convidados, neste mesmo sítio e lugar.

Arte moderna, arte do sec. XX, no Museu da Cidade

 

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Esta imagem não se refere ao texto abaixo. Representa a capa da exposição de abertura do Museu da Cidade, no Edifício Chiado em Coimbra.

Publicado Diário de Coimbra  1 de Abril de 2003

Escrevi esta “conversa de pintor” abismado pelo horror dos dias que passam, confuso e revoltado pela violência super-organizada, super-tecnocrática e super-hipócrita. O destino aparente do largo mundo dos conflitos sangrentos não pode, porém, impedir-nos de falar sobre factos como uma retrospectiva das colecções particulares de Coimbra, que tem lugar no Museu da Cidade, no edifício Chiado, comissariada por Telo de Morais, e que merece bem, por motivos diversos, uma atenta e interessada visita. Estamos pois “condenados ao impossível”, conforme citação de Rocha de Sousa no prefácio que, com lucidez e elegância discursiva, abre o catálogo das obras cuja presença virá visitar-nos ao longo de vários episódios expositivos, até ao fim do ano.

“Toda a Cidade é um Museu Encoberto”

O espaço reduzido da sala de exposições temporárias recebe as primeiras 17 de 88 obras que o evento pressupõe, e que se encontram reproduzidas em catálogo desacompanhadas de matéria de consideração crítico-informativa, se descontarmos a valiosa, mas muito genérica, abordagem de Rocha de Sousa, que tem por título a bela frase poética acima citada. Teria sido fácil inserir elementos de caracterização pedagógica a respeito das obras apresentadas, numa cidade onde rareia o apego e a informação a respeito da modernidade da arte, sobretudo daquela que é portuguesa, pelo que é pena e o visitante lamenta a lacuna que se observa. Sendo mostrada uma só obra de cada autor, é de supor um delicado trabalho na escolha das peças a associar em cada fase, para que a montagem resulte bem, como acontece sem dúvida nesta primeira realização. As obras estão dispostas, por assim dizer, em duas margens que se defrontam num diálogo de valores contrastantes ou complementares, revelando um vincado critério de bom gosto que nem sequer deriva, aliás, da estruturação estilística efectuada no texto de Rocha de Sousa. Vale a pena observar, por exemplo, a sequência formada de um lado pelas obras de Joaquim Rodrigo, Cruzeiro Seixas, Carlos Calvet, Rogério Ribeiro, etc. e pelas de Pedro Croft, Cabrita Reis, Casqueiro, etc. do outro. É ainda curioso o emparelhamento “fora de margens” dos trabalhos de Fernando Calhau e Raul Perez, totalmente contrastantes no teor de forma e conteúdo respectivos. Falar um bom pedaço a respeito de cada uma das obras mostradas, ou das sinergias que a sua confrontação produz,  mereceria o espaço não de uma, mas de várias “conversas de pintor”.

Responsabilidade e importância do coleccionismo

Ao fim deste ciclo de exposições não ficaremos a conhecer senão uma porção diminuta das obras coleccionadas em Coimbra, permanecendo misterioso o critério que as terá reunido, se mais de natureza estética e afectiva ou de natureza financeira. O já referido prefácio de R.S. abre para as importantes questões da descentralização e da autonomia culturais, da necessidade de estimular “a contemplação e o debate”,  de renovar os “modos de formar”, etc. A exposição, classificada como acto “com forte alcance cultural e de cidadania” é, não obstante, visivelmente tributária de estratégias aquisitivas dificeis de definir, mas que não deixam de reflectir centralismos e subjectividades pouco associáveis à afirmação de “autonomias”, apresentando-se cautelosamente asséptica quanto a possíveis valores locais. O coleccionismo é um pilar essencial do progresso criativo, e não perderia nada em contemplar novos valores, incluindo sem complexos nomes autóctones, para além dos casos raros que apenas se puderam afirmar longe, ao abrigo de outras realidades. O criério dos “valores consagrados” tem lançado no mercado da arte, aqui e no resto do mundo, uma quantidade enorme de obras de segunda linha que valem apenas pela assinatura que trazem aposta, abundando as histórias picarescas quanto ao modo como algumas foram parar ao circuito da comercialização. Numa obra de arte o único valor seguro é aquele que deriva dos seus conteúdos estéticos e do prazer intelectual e espiritual que comunica, havendo ainda quem pense com razão que vale mais uma obra boa dum artista desconhecido que uma obra medíocre dum nome prestigiado. Com esta me acabo, fazendo votos que o vento do deserto possa soprar de novo liberto dos venenos semeados pela guerra, que assustam os povos dóceis e lhes causam tanta dor.

O Teatro de Marionetas do Porto, sobre Magritte, no TAGV

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Publicado Pelo Diário de Coimbra em 21 de Março de 2003


A projecção universal do sucesso serve mal o génio dos verdadeiros artistas criadores, aqueles que implantam no cenário do mundo o rosto mais apreensível das suas contradições e perplexidades. Particularmente a publicidade, como praga invasora de vulgaridades parasitárias, capaz de tudo para cativar o olhar incauto do consumidor potencial, é um dos processos mais fatigantes do esvasiamento e até da falsificação da imagem como factor de encantamento sensível ou de descoberta reflectida.
O espectáculo de teatro que apresentou a companhia de Teatro de Marionetas do Porto defronta-se com a sobre-utilização a que a obra de Magritte tem sido sujeita , por ser um escaparate fortemente sugestivo de paradoxos e surpresas. A leitura da peça tal como foi explicitamente anunciada tem que contar, preferencialmente, com a familiaridade da obra do famoso artista belga, nacionalidade de criadores surrealistas de inquestionável talento e nem por isso tão universalmente aceites, como é, entre outros, o caso de Paul Delvaux.
Isto como resposta aos meus amigos que questionavam, à saída do teatro, a impenetrabilidade duma grande extensão do espectáculo, de cuja linguagem só escassamente se haviam apropriado, e aos quais fui dizendo que me parece que o trabalho das Marionetas do Porto trouxe até nós um ensejo generosamente abundante de interessantes alusões Magritteanas.
Acontece que na transmutação de reinos que vai da pintura ao teatro, a mediação que nos oferece a  propensão literária e filosófica da obra do pintor, não é fácil nem é imediata. Uma peça desta natureza não conta com nenhuma espécie de enredo, foge ao convencionalismo de um entrecho, cabendo à nossa disponibilidade a aceitação de alusões subtis, o entendimento do jogo cénico como tal e, por acréscimo, como veículo dum certo tipo de universo comunicativo.
De muito bom efeito me pareceu a sonoplastia, reforçada por uma acordeonista em palco que até a partir de simples toques mecânicos nas chaves do instrumento ia acentuando efeitos e sublinhando ruídos. O misterioso silvo marítimo que varre incessantemente o “plat pays”; o tic-tac dum relógio de sala, quinta-essência de todos os mistérios e de todas as contradições que o pintor incansavelmente glosou, assumindo com certa volúpia o convencionalismo burguês e urbano que a própria obra contradiz e o rumorejar da água nocturna que amortalha a mais dolorosa ausência, a mãe, a dona do rosto oculto pela “écharpe”.
Vieram até nós igualmente a surda respiração íntima, os sinos e as gargalhadas, e um sem número de palavras/aforismos que na obra em apreço são tão abundantes e essenciais. Para matizar um pouco o sentido de apreciação positiva que suscita este espectáculo, como tantos outros que nos visitam, uma pequena confidência lateral, em jeito de pergunta:
será possível que algum dia irrompa do palco, sem que ninguém espere, algo de verdadeiramente provocante e inovador, que desafie o sentido de medida da tal trivialidade balofa e burguesa de que Magritte foi tido como provocador e sabotador tranquilo?
Será que a linearidade intelectual, o humor comedido e a reincidência poética serão os únicos destinos possíveis das nossas timoratas pretensões e que “ceci n’est pas …”?

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R. MAGRITTE, A traição das imagens, 1928-29

Estreia de Fuenteovejuna pelo CENDREV, no TAGV, no Dia Mundial do Teatro


Publicado Pelo Diário de Coimbra em 19 de Março de 2003

A estreia nacional de uma obra tão fecunda como Fuenteovejuna de um dramaturgo tão enorme como foi Lope de Vega honraria uma cidade capital de cultura que fosse capaz de encher uma sala de teatro como o TAGV, no Dia Mundial do Teatro.
Porque assim não foi, uso o modo condicional, na fé de que, mais por ignorância simples ou por simples cansaço de tantas inaugurações e cerimónias, haja muita gente que ali não veio para dar fé da palavra clara de Lope, “ poeta máximo del cielo y de la tierra”, génio imenso, figura vibrante e quase indescritível, protagonista sem margens do bem chamado Século de Ouro de Espanha.
O primeiro utensílio notável usado pelo encenador Pedro Alvarez-Ossório foi a talentosa versão textual de Natália Correia que, escrito em 1973, “exalta e justifica a rebelião de um povo” pelas razões de opressão, prepotência e abuso que em qualquer parte ou em qualquer momento possam, infelizmente, verificar-se.
À elegância poética que o vigor de Natália soube associar qualidade dramatúrgica, acrescentou a concepção do espectáculo uma estética de claridade e de explicitude que é raro ver-se.
Séria e replena de sentidos históricos e literários, a peça de Lope é apresentada em registo de festiva exaltação do gesto e da palavra, sendo criteriosa a utilização que é feita do potencial de razões contraditórias que o entrecho disponibiliza.
Se digo criteriosa não quero dizer enfraquecida, pelos motivos que levam Laurência a invectivar, olhos nos olhos dos espectadores, a cobardia cívica, o escapismo e a moleza indiferente dos que se deixam afundar no abandono da sua própria honra.
Se digo criteriosa, repito, não é porque a configuração do inimigo não esteja bem explícita, no Comendador e nos partidários da sua laia, sem rodeios ou complexos de dúbia complacência.
Lope de Vega deu um sentido de utilidade política à sua obra, como um dos mais distintos criadores do barroco espanhol face ao fim da Idade Média e à ascensão do poder central do estado no dealbar da época moderna. Nesta encenação de Fuenteovejuna, porém, o ódio da colectividade pelos seus opressores é temperado por uma facilidade evidente na mudança de registo que da revolta vingativa por imperiosa necessidade se transforma em alegria ingénua. Para não falar da forma explicitamente irónica com que é tratada a figura dos monarcas, a rainha prepotente e sem escrúpulos e o rei amorfo e sem carácter.
A abrir o espectáculo veio ao proscénio uma atriz que leu o discurso de Tankred Dorst para o dia Mundial do Teatro. Entre muitas coisas interessantes ali foi referenciado o seu carácter de “arte impura”, por lançar mão abertamente de tudo o que se atravessa à frente do homem e à frente da vida. Parece-me aliás que posso utilizar essa ideia para elogiar esta peça que o Centro Dramático de Évora (CENDREV) estreou no TAGV, para honrar Coimbra, com a galhardia e talento duma pequena multidão de artistas de teatro.
Se não eram tantos assim e não chegavam a ser multidão, tanto lidaram e viveram em cena que, pelo menos, foi essa a ideia com que fiquei.

Baal de Brecht, pelos Artistas Unidos, no TAGV

Publicado Pelo Diário de Coimbra em 13 de Março de 2003

Por efeito da ideologia de crise há uma série de hábitos culturais que se vão perdendo, fingindo todos que é natural que assim seja, e que não há nada a fazer.
Lembra-se o leitor duns libretozinhos que se davam ou se vendiam antes de qualquer peça de teatro? Para agravo da minha ignorância noto que rareiam nos vestíbulos teatrais. Os que sobrevivem, ganham por vezes em aparato gráfico, mas limitam-se a ser a lapela de curricula que ninguém lê ou das notabilidades patrocinantes.
Baal, Brecht, os pavores da guerra de catorze, o expressionismo alemão, todos os seus antecedentes e contemporaneidades, abrem para um universo tão imenso, que eu não sei ao certo que parcela do estar, do dizer e do sentir daquelas figuras teatrais poderá habitar entre nós como aquisição da nossa sensibilidade ou do nosso saber. Parece-me óbvio que este tipo de acontecimentos corre o risco do equívoco se ao processo faltar uma indispensável aquisição de cultura, ficando apenas como figuras de estatística, alimento curricular para quem organiza, promove e patrocina, e pouco mais…
Abre o espectáculo o grande coro de Baal, poeta com nome de deus bíblico, tremendo em seu desespero de rupturas elementares, transitário insatisfeito da vereda incómoda que do desejo cego conduz ao embotamento e que deste leva à morte. Ficamos sabendo, pois, que é no território da expressão poética que se situará mais essencialmente a condução do espectáculo.
Nem a vertente cabaretística, nem a contextualização histórico-política, nem as notações erotizantes (é evidente o pudor no desenvolvimento das figuras femininas, tão ousadas noutras encenações) virão a assumir espaço equivalente ao mito de Baal, poeta associal, devastado pelo seu radical sentido do prazer e pelo seu egocentrismo sem margens, mais do que pelo álcool, cuja fruição é um combate permanente e obsessivo, como se dum símbolo ou dum destino se tratasse.
O cenário da peça é constituído por uma volumosa estrutura multifuncional produtiva de perspectivas artificiais, onde escassos elementos de diferenciação, nomeadamente a luz e os efeitos de fumo, vão introduzindo as necessárias alternâncias ao desenrolar da acção dramática.
A música é, como vulgarmente em Brecht, um poderoso mediador, para o que muito contribui a capacidade expressiva do protagonista (Miguel Borges) no traçar duma figura musculada, impiedosa e destemida. Declamando envolto pela neblina nocturna ou cantando de guitarra eléctrica em punho como um autêntico “rock and roller”, oferece-nos uma alusão a  mitologias doutras gerações, sustentando o texto de Brecht o espectáculo, a um nível de inconfundivel caracterização.

Finda a representação, que no conjunto pode caracterizar-se como uma impressionante e notável realização de teatro, atardei-me mais um pouco pelo vestíbulo, francamente emocionado, circulando por entre os grupos de presentes, procurando sem excessiva subtileza escutar uma ou outra ressonância ou comentário apreciativo.

As vozes, moderadamente colocadas, davam-me conta duma escassa paixão interpretativa, sendo evidente que o rio de gente que ali estava se ia esgueirando, como fresca água corrente, sem estremecimentos de exaltação poética, para dentro dum quotidiano cheio do pipilar dos telemóveis e de outras imperiosas necessidades e acertos dum descuidado porvir.

Sara Maia no edifício Chiado, ou a vulgaridade do assombro

 

sara maia 2001

Publicado Diário de Coimbra  27 de Janeiro de 2003

A arte condescende muitas vezes em ser liricamente distante da realidade virando para o lado o olhar necessário e impiedoso. Solicitam-lhe outras vezes que salte de paraquedas lá de trinta mil pés de altitude onde ar não há que se respire e não se ouve a voz de quem fala por imposição desconfortável da máscara de oxigénio ou descomprometimento conveniente da máscara só-máscara. Acontece então ser tão vazio e tão inútil o seu discurso que não nos dá cansaço algum ouvi-la somente porque temos o bom senso de não lhe ligar atenção e vamos em busca de outra  ocupação da mente ou outra mais séria alegria do corpo.
O que me espanta na pintura de Sara Maia não é aquilo que tem da expressão alucinante com que tantas vezes me surpreendi na obra de Paula Rego ou da moralidade feroz e esclarecida que de longe me persegue em Otto Dix ou da desconcertante abordagem figurativa ou da virilidade cromática que me habituei em Max Beckmann.
O que me espanta é que não leio nos traços da sua contudente linguagem a atitude que poderia pertencer à generalidade das criaturas da sua idade ou da sua geração cultural. Como é possível pergunto-me que possa ter atravessado a porcelana translúcida da sua carne adolescente a antiguidade relativa de tão pesada herança de percepções.
Como é possível pergunto-me que não esteja ali o humor planificadamente cruel dos Simpson a sua claridade plastificada as suas cores metálicas e a vibração de sonoridades que sintetizadores aceleram por goelas abaixo dos devoradores de multimedia.
Uma pintura assim sejamos claros põe-nos os cabelos de pé. Altera os nossos planos de não sei que cultura predisposta a não sei que especulações. Os escândalos da reality são tão matematicamente condimentados de horário conteúdo e sequência publicitária e tão meticulosa e mesquinhamente pré-anunciados e digeridos em resumos de roda pé que já muito pouca coisa nos faz realmente ficar com medo ou genuinamente inquietos ou autenticamente tristes.
Tantas vezes nos sai uma gargalhada no momento exacto em que melhor poderiamos ficar apreensivos. Tantas vezes nos ocorre um impropério pela visão desconcertante do inimaginável tornado comezinho ou da impingência da mais boçal vulgaridade transformada em ocorrência de prodígio.
Em Sara Maia a lei da gravitação universal é posta em causa e não apenas pela ausência do velho compromisso do equilíbrio tectónico tão reconfortante para as nossas mais justificadas convicções.
Em Sara Maia os anões abundam alguns são verdes e outros impúdicos. A tutela da guardiã é ornada de medalhas e empunha cacete os pássaros esquisitos levantam vôo de cabeça a fundo as bruxas desequilibram-se pelos paus de vassoura abaixo tudo ao contrário das lendas previsíveis e de certos efeitos especiais. Na realidade oh como é frequente que uns se ponham a cavalo de outros e que estes por seu turno tenham que alancar com os primeiros. Tanto homem cão tanta mulher bicho.
E aquela da coxa grossa que ficou quase de fora da pintura e se larga à unhada à outra que está por baixo contrafeita pálida e quase ausente. O anão de feltro mole ladra para dentro da saia (é dum padre preto ou duma viúva alucinada) e o anão careca abraça numa preversão de apetites o frango assado tão conformemente arrumado na sua frigideira inox ou na sua embalagem de hipermercado.
Figurões piratas lançam os dados e puxam das cartas viciadas como vemos acontecer todos os dias baloiçando-se por cima de patetas distraídos ou de outros patetas com miolos alimentados a pilhas como aqueles que passam aos cardumes aqui na minha rua mas sem que a história nos seja contada assim fazendo de conta que tudo está como deve e que as magníficas leis da natureza não falham e que se cumprem todas as regras da ciência conhecida.
Oh paz podre oh santas alianças oh sociedades discretas oh almas simples oh bem intencionados oh ingénuos oh distraídos oh hipócritas venham cá todos que isto é connvosco este é o vosso retrato o vosso bilhete de identidade o vosso passaporte para o lado de cá da mentira.
Uma mulher gorda monta-se às costas dum homem cão gordo de chapéu e fato preto e há outro homem em mangas de camisa que lhe apalpa as mamas empoleirado num anão exausto e desfigurado pelo esforço.
Outro anão palita os dentes com uma bandeira e outro acaba por estatelar-se rapidamente para fora da própria pintura. Oh meu Deus como é vulgar este cenário. Oh meu Deus como isto é de hoje e de sempre.

sara maia 2002