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António Pedro Pita – Na iminência do caos – 1997

Texto de catálogo da exposição “regresso aos Açores” que teve lugar em Coimbra na Casa Municipal da Cultura, em Outubro de 1997, da autoria de António Pedro Pita

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“Oh show us the way to the next Whisky bar” (B. Brecht), acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites 96-98

Na iminência do caos

Costa Brites iniciou o seu percurso de pintor em Ponta Delgada, corria o ano de 1968. Colhemos a informação nas sucintas referências biográficas publicadas nos catálogos de algumas exposições. O perfil do pintor, nessas linhas, para além de breve, é de uma secura assinalável. E a sua repetição, de catálogo em catálogo, praticamente sem alterações, é um modo de se tornar expressiva. Como se o pintor Costa Brites não tivesse, como biografia, senão a que fosse constituída pelo que (de desenho para desenho, de quadro para quadro) caótica, sucessiva e/ou simultaneamente se vai exprimindo.

A biografia possível de Costa Brites reduz-se, pois, a muito pouco. Sabe-se que o pintor não frequenta o social nem é profissional de opiniões, protestos, abaixo-assinados e outros folclores. Raramente se inscreve – em todo o caso raramente como pintor – em acontecimentos exteriores aos que ele mesmo desencadeia e que o levam, cruelmente, aos limites de que os seus quadros são, não propriamente a notícia, mas o sinal.

Todavia a referência ao lugar e ao tempo das suas primícias é a citação, pelo exterior, do tempo e do lugar de um processo interior em direção às artes ou, para sermos mais rigorosos, à convicção das possibilidades redentoras da arte. Em nenhuma das várias “Notas biográficas” que conheço é omitida a condição de discípulo (ou aluno de desenho) de Jorge Valadas e do Prof. Narciso Costa ou é apagado o autoctonismo, compensado, como também se refere, pelos estudos de história de Arte e visitas sistemáticas a monumentos, galerias, museus, etc.

Ah, não ter sido Madame de harem!.../grafite e acrílico s/ tela/ Costa Brites 1996

Ah, não ter sido Madame de harém!… (Bernardo Soares) /grafite e acrílico s/ tela/ Costa Brites 1996

Por conseguinte, quem inicia o percurso de pintor é um jovem, mas não muito (confiram-se as datas), que na situação político-cultural de Ponta Delgada em 1968 quis dirigir o gosto e o talento, de que porventura já dera provas e fora reconhecido, para uma construção artística a inscrever voluntariamente num horizonte de emancipação individual e social.

Seria deslocado analisar agora com pormenor as especificidades desse momento riquíssimo. Limito-me a um aspecto. Em Dezembro de 1970, Costa Brites apresenta-se em exposição individual, sob o título Formotemas. Nos títulos dos quadros e nos trechos selecionados para o catálogo Herberto Hélder e António Sérgio, Bertrand Russel e Ray Bradbury, Aldous Huxley e Antero., Hiroshima, Carlos Faria, Lima de Feitas e Nagasaqui são convocados como pontos de referência de uma atitude estética e existencial. Mas um breve texto do pintor define os termos da sua vontade de expressividade pictórica.

Dois anos depois de 1968. 1968 foi, não o esqueçamos, o ano das revoltas estudantis (Paris, Berkeley) e o ano da invasão da Checoslováquia pelo exército soviético. O desejo de revolta ganha contornos inéditos: ilimita-se nos gestos radicais dos estudantes tornados intérpretes da Insatisfação e sofre o duro revez da prova da prática. Ao concreto tornado cena de uma tragédia de que se não antevia desenlace só o poder da imaginação parecia poder contrapor-se. Por isso, a intervenção política da arte implicava também uma rutura com as várias soluções realistas que durante trinta anos quase hegemonizaram a identidade.de uma arte combativa.

Para Brites, tudo gira em torno da polaridade guerra/conformismo. E as artes são a “única eventualidade regeneradora do carácter dos homens, caso as sociedades lhes permitam — nas vésperas muito iminentes do último grande delírio — uma parceria franca com a generosidade, a mansidão e a inteligência”.

As obras desse período testemunham a conquista do espaço do quadro por uma fabulação onírica a que não são alheios o cinema, o surrealismo e a pop-arte. Fixada residência em Coimbra (1971), Brites consagra-se, ao longo da década de setenta, ao apuro das soluções técnicas (= estéticas) para a expressão do seu imaginário próprio.

Habemus PDM!... /acrílico s/ tela/ Costa Brites, 1997

Habemus PDM!… /acrílico s/ tela/ Costa Brites, 1997

É o momento de dizer que a pintura de Costa Brites:

a) toma forma no interior de um imaginário complexo: riquíssimo pela variedade de formas que assume; assombroso, para não dizer monstruoso, pelas figuras que regista.

b) em nenhum momento cedeu à tentação do realismo.

É uma pintura da transfiguração ou, para sermos mais rigorosos, de alguns modos possíveis de transfigurar e, por isso mesmo, uma pintura desinteressada da realidade por compromisso com o real. À distância de quase trinta anos interessa-me anotar a coerência deste percurso, uma coerência que se não desenvolve sob o modo da repetição de problemas e soluções mas sob o modo do incessante desenvolvimento de um núcleo imagético fundamental. Disto mesmo nos apercebemos se tentarmos captar os regimes de transfiguração que operaram, mais ou menos ciclicamente, no devir da sua obra.

Georges Bataille: “Pode definir-se a obsessão da metamorfose como uma necessidade violenta, confundindo-se por outro lado com cada uma das nossas necessidade animais, que leva o homem a separar-se de imediato das atitude exigidas pela natureza humana “.

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Diógenes e os pássaros de pedra / óleo s/ tela s/ platex/ Costa Brites, 1995

No primeiro período do trabalho de Costa Brites o sonho é o modelo da transfiguração e a chave do processo de metamorfose. As suas figuras, que estão próximo da melhor banda desenhada (falo de Burne Hogarth ou de Guido Crepax, por exemplo), definem um universo surreal. O animal da noite que percorre o corpo dos homens vem à luz do dia na superfície da tela ou da folha. As obras de Brites, ao longo dos anos setenta, percorrem territórios alheios aos da chamada pintura retiniana. É, como queria Breton, uma pintura da concretização das imagens presentes ao espírito. As fulgurações que ocupam a tela ou a superfície do desenho nascem de um trabalho de visionário e não do esforço do observador mesmo, e principalmente, se os objetos do olhar visionário são mais reais do que os objetos observados. São eles e não estes que tudo decidem da própria conformação do real. Os rostos de cujos olhos nascem outros rostos e mãos libertas ou prisioneiras ou as espingardas em flor que irrompem da terra (um desenho de 1972} poderão constituir a suma de uma estética que se concretiza em muitas obras de diferente dimensão e alcance mas que constitui um primeiro nível de maturação desta pintura transfiguradora. Costa Brites transfigura a realidade pelo sonho e é para a maior expressividade possível desta transfiguração que faz apelo a sua transcrição de estados oníricos. O sonho é o real da realidade.

Em 1980, Costa Brites “abre um ciclo de novas exposições tendo como motivo centra! o estudo da paisagem urbana de Coimbra”. (Socorro-me, ainda, das “Notas biográficas” publicadas nos catálogos). Trata-se de um parêntesis figurativo? Se é pertinente a nossa afirmação anterior de que Brites jamais cedeu ao realismo, como compreender este longo período de atividade do pintor, para mais intensa e produtiva? A questão não é fácil. Como já tive oportunidade de escrever, este ciclo da obra de Costa Brites tornou-se responsável por múltiplos equívocos que, a um tempo, fizeram lavrar o seu sucesso num regozijo minado e constituíram um obstáculo à inteligibilidade da obra toda de Costa Brites. É contudo um ciclo essencial.

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lugar longe preparado para um sonho / acrílico s/ tela s/ platex / Costa Brites, 1993

É uma outra referência central do surrealismo — o belga René Magritte — que me parece pertinente evocar, pela exemplar radicalidade do seu alcance, para esclarecer o afloramento deste ciclo na obra de Costa Brites bem como as relações desse ciclo com a obra antecedente e consequente do pintor. Não quero reproduzir o que já escrevi a propósito, em l988 e em l991. Para esses textos remeto o leitor eventualmente interessado. Mais me interessa agora aferir uma outra pertinência, a das palavras de Georges Bataille que escolhi para percorrerem, como fio de aclaramento, todo este texto. O ciclo que Brites consagra — como se diz — ao estudo da paisagem urbana constitui, do meu ponto de vista, ainda uma transfiguração. O que a decide não é a identidade da figura transfigurada. Neste ciclo, Brites não toma um caminho diverso do ciclo anterior do seu trabalho. Pelo contrário: aprofunda os meios e a lógica da transfiguração.

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Quanto aos meios: toda a obra de Brites, mesmo a pintura que dela mais longe parece estar, assenta no domínio prodigioso da técnica de desenho. O ciclo em referência é o do desenvolvimento sistemático, poderíamos dizer: exaustivo, das imensas possibilidades expressivas da grafite e do nanquim. Com este exercício paciente, Brites não se afasta, senão aparentemente (e para além da consciência que o artista possa ter de todo o processo), do ciclo anterior, no qual o desenho já ocupara um lugar de grande importância. O período do estudo da paisagem urbana é, antes de mais, o estudo dos meios adequados à transposição pictórica da cidade.

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Quanto à lógica: artisticamente, é secundário o motivo transfigurado. A figura, como se sabe, não é unicamente o corpo humano. Ora, o corpo transfigurado não é, agora, o humano ou o animal. É a cidade, a rua, a casa, a pedra, a cal. Brites investe o apuro das formas do fantasma da fotografia. Neste ponto, que é indiferente saber se correspondeu ou não a um programa consciente do pintor, é que a breve citação do projeto de Magritte se me afigura de alguma utilidade. Como já foi escrito, “tornando-se surrealista, um ano após o Manifesto de Breton, Magritte escolheu ser um pintor realista para quem o real — o que toda a gente vê facilmente — é o meio privilegiado de fazer oscilar o convencional para o enigma e, assim, revelar tanto quanto possível o mistério que aí se encontra”. Ora, se no primeiro ciclo do seu trabalho a lógica da transfiguração consistiu em projetar a verdade do sonho sobre a aparência da realidade para que o real se fizesse aparecer e sentir, agora Costa Brites toma uma das vias desde o início possíveis para permanecer no exterior da tradição realista: levar a realidade até ao enigma para gerar, no espaço da projeção do enigma sobre a realidade, uma interrogação sobre o real.

O que nos leva ao reencontro de Bataille. A cidade de Costa Brites foi sempre uma cidade deserta. Mas se, num primeiro momento, era uma cidade pujante de cor (é provável que Brites tenha apurado aqui o enorme domínio do trabalho com a cor que se revelará da maior importância no ciclo posterior do seu trabalho), torna-se depois uma cidade em lenta mas inexorável descoloração, até atingir em obras mais recentes, pelo aprofundamento do recurso à grafite, a figuração da pedra corroída e da decadência da cal. Esta cidade não é habitada porque não é habitável. As cidades habitadas, mas igualmente inabitáveis, são as cidades do conformismo (tópico de 68) em que os homens só têm espaço para o pior de si mesmos – o pior, isto é: o tão conforme a todos os outros que nem sequer é visível. Por isso, talvez, a cidade é deserta. A cidade ocupa (também em sentido militar) todo o espaço do quadro. A cidade não tem espaço para a irrupção da força animal que transfigura.

A reinvenção do azul, acrílico s/ tele s/ platex, Costa Brites 1997

A reinvenção do azul, acrílico s/ tele s/ platex, Costa Brites 1997

As obras mais recentes de Costa Brites constituem o fulcro de esta exposição. Não será exagero afirmar que entre elas encontramos algumas das obras mais belas de todo o percurso do artista. Mas dizê-lo é incaracterístico e insignificante embora a complexidade de estas obras não facilite nem o trabalho da análise nem a proximidade do sentimento.

Brites condensa por vezes em cada uma delas várias coordenadas anteriores. Do seu passado remoto ou próximo conserva a paixão pelo rigor do desenho. Agora, todavia, é o trabalho da cor que ocupa a primeira linha do nosso olhar. Para a meticulosa organização do diálogo, por vezes tornado conflito, entre cores e matizes é indispensável volver a mais intensa disponibilidade de que formos capazes.

Mas é insuficiente. Se, em obras anteriores, principalmente do ciclo urbano, Costa Brites já conseguira, na mesma superfície, uma pluralidade de problemas e soluções — o que rapidamente se sintetiza na fórmula: vários quadros num só quadro — agora radicaliza de dois modos o procedimento.

A) Acentua a dimensão narrativa de algumas obras: o quadro deixa de centrar-se unicamente numa figura; em vários quadros, mais do que o devir temporal, é verdadeiramente de uma narrativa, ou fragmentos dela, que se trata.

B) Violenta a superfície da tela e opera ruturas de nível, desnivelamentos, descontinuidades de esquadria.

o oiro e o vento, grafite e acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites 1996

o oiro e o vento, grafite e acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites 1996

Em algumas obras recentes, desdobra os planos de representação e deixa à expressividade da cor o lugar central, como que a emergência na tela de um para-além-dela. Nessas obras do que se trata é verdadeiramente de um conflito, não de um diálogo nem de uma tensão, entre o espaço superficial e o espaço interior da tela. Não se trata de reativar o recurso estilístico da ilusão visual. Trata-se de reconsiderar a problemática da representação não nos terrenos da metalinguagem mas como adequada solução estilística para a expressão do monstruoso imaginário de Costa Brites.

Agora, o pintor subordina a representação deste imaginário às determinações de uma vontade imperativa. O que se perde em espontaneidade ganha-se em rigor e clareza. Brites faz de cada quadro uma síntese de todo o seu percurso. Recupera motivos e inspirações. A superfície da tela é o espaço da metamorfose integral dos corpos, Os membros e os órgãos reorganizam-se em múltiplas figuras, múltiplos corpos, monstros, levados com frequência ao limite de puras formas, irreconhecíveis, ameaçadoras, que vêm ao nosso encontro sopradas por um vento que não sabemos de onde vem.

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“somos as aves de fogo por sobre o campos celestes” (H.Helder) – acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 2000

As figuras da produção mais recente de Costa Brites já não são identificáveis com nada anterior ou exterior às telas em que ocorrem. Mas a superfície da tela é a pele de um espaço de acolhimento: “acolhemos em nós não só Deus mas todos os seres que reconhecemos, incluindo os que não nomeamos: somos o cosmos na medida em que o conhecemos e sonhámos” (Nietzsche}. Mas a superfície da tela é o lugar de um florescimento: “do animal e da planta devemos aprender o que é florescer : e depois aprender de novo tudo o que se refere ao homem” (Nietzsche).

As figuras da produção mais recente de Costa Brites são formas em processo de metamorfose, corpos que mudam por exigência da sua própria força, num devir que transforma a superfície da tela no lugar convulso onde o inesperado pode irromper e o caos está iminente.

António Pedro Pita