Publicado Diário de Coimbra 7 de Dezembro de 2001
Tenho à minha frente e manipulo alguns esmaltes coloridos da autoria de Carlos Lobo, nome que lanço à escrita sem os adjectivos brilhantes que os homens merecem apenas depois de mortos.
Carlos Lobo com seu rosto limpo e bem barbeado caminha pela rua com vários papéis debaixo do braço. Não vai depressa nem devagar, mas sentimos nos seus passos uma segurança e uma delicada determinação.
Irá visitar um amigo necessitado de apoio? Irá à abertura dum acontecimento artístico ou mandar uma carta urgente para um continente distante? Provável é que vá encontrar-se com outros militantes da cultura ou reunir-se com ex-colegas envolvidos em problemas de trabalho e desemprego, carentes da solidariedade quente daqueles que se encontram na mesma situação, os únicos que podem trazer alento e estímulo verdadeiros.
Onde irá Carlos Lobo com seu olhar tranquilo e a voz serena que tanto invejo?
Não saberei nunca e todas essas hipóteses são possíveis. Certo é que vai seguro e não caminha em vão. Debaixo do braço alguns papéis preciosos, destino certo de ideias variadas, pensamentos coloridos preenchidos de intenção e sonho. Ou simplesmente o dom organizado e voluntário duma ilusão magnífica.
Acaricio outra vez o corpo ondulado dos esmaltes coloridos pelo pó mágico transfigurado pelo calor do pequeno forno laborioso, densamente cercado por um universo de alfaias e produtos e artefactos metodicamente alinhados.
Mergulho na vibração espontânea que só as coisas carinhosa e longamente elaboradas possuem, atravessadas pela indeterminação da fantasia e pela casualidade da revelação que apenas à natureza infinita diz respeito.
São obras de expressão condensada que oscilam entre a candura figurativa de visões ingénuas e o desafio enorme da visão abstracta. Quer num quer noutro extremo desse universo existe contudo a marca constante dum diálogo respeitoso e inteligente com materiais de utilização subtil e misteriosa. Um elaborado processo de descoberta e encantamento.
O consenso de simpatia e de afabilidade que geram os espíritos da categoria de Carlos Lobo tornam quase dispensável mais esta conversa de pintor. Todos o conheceram e todos o estimaram. Todos vão elogiá-lo e dizer que pessoas assim fazem imensa falta.
A ilusão contudo também cansa, e olhar para o mundo e procurar entendê-lo em toda a sua conflagração de paixões divergentes é como descer uma escada de expectativas que parece não ter fim.
Enquanto estivermos vivos é que vale a pena dar atenção às pessoas, escutar a mensagem quente e útil que possam querer transmitir-nos. Todas os homens bons que desaparecem são mais uma razão para dar ouvidos àqueles que ainda estão disponíveis e generosamente interessados em prestar seu contributo.
A sociedade concorrencial possui uma lógica impiedosa de categorizar os indivíduos por uma determinada ordem de notabilidades incontestáveis.
A essa norma se sujeitam todos os cidadãos, todos os artistas, todos aqueles que possuem uma ideia generosa e útil escondida em seu coração. O mais certo é que a sociedade não lhes dê ouvidos, e vá ficar perdida mais uma preciosa razão para sentir que se deu um pequeno passo em frente na salvação da própria humanidade.
Na “Invenção do Dia Claro”, disse Almada em seu discurso pitoresco que “quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade”.
Carlos Lobo nunca foi uma alta individualidade
Que bom para ele, e que bom para nós que possa um homem ser uma criatura insigne, sem ter que levar uma estátua, ou uma medalha, ou um cargo público, e permanecer vivo como ele por certo fica na lembrança de todos aqueles que o conheceram.