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A valiosa dedicação de Leonard Griffin e os azares calamitosos do quase extinto Zé povinho

Publicado no Diário de Coimbra de 4 de Fevereiro de 2009

O colapso eventual duma fábrica de produtos artísticos (as Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro, de 1922, nas Caldas da Rainha) ocorre num momento conturbado mas, já antes, muitas unidades fabris da mesma área fecharam as suas portas deitando fora o potencial criativo que reuniam. Todos perdemos, todos continuamos a perder. A extinção da fábrica desde já, ou a prazo, atinge o ponto sensível das coisas simbolicamente caras que deveriam estar livres de tal destino e aos interessados activos caberá perguntarem-se qual é o motivo e a quem cabe a responsabilidade de tal derrocada de valores. Saber por exemplo o que tem feito a gestão de tais unidades no que toca ao estudo de novas abordagens da arte, na descoberta de novos produtos, no estudo de mercados e numa divulgação mais esclarecida da sua actividade. Uma certa visão do mundo vai sempre de mão dada com a essência de certos gestos criativos e, se não houver renovação de horizontes e consagração qualificada do que se fez no passado, as coisas morrem. Aqui entra a atitude das instituições mais ou menos académicas, mais ou menos escolares e institucionais no estarem atentas, no apoio dignificante daquilo que a sociedade produz de melhor. É sabido que o espírito conservador da cultura oficial tem preferência pelas coisas antigas e ultra-consagradas.  Cerâmica artística? Sim, mas só até ao século dezoito, se faz favor!… O passado recente é muito chato, o futuro a Deus pertence e o presente… ninguém quer comprometer-se com nada. A sociedade em geral também não está isenta de culpas, os apreciadores, os coleccionadores, os retraídos encomendantes e as demissionárias entidades públicas. Quando as coisas vêm abaixo, no instante em que as fábricas fecham, nota-se um ligeiro estremecimento, uma breve aragem gélida que perpassa. Mas tudo se aquieta logo depois na maior das calmas. As raparigas que foram pintoras de jarrões magníficos vão para a lida doméstica, as mais velhas passajam as calças de filhos e genros e os artistas activos abrem um precário cafézito lá na aldeia. Quais são as faculdades que estimulam os seus alunos a fazerem teses de licenciatura ou de mestrado a respeito de artistas vivos ou de unidades fabris ainda a laborar? Vade retro Satanás que isso é tudo da vida ainda viva e nós somos das coisas mortas, da matéria consagrada pelos séculos!… Termino esta conversa de hoje referindo sumariamente a atitude que considero exemplar do investigador e coleccionador Leonard Griffin, caso exemplar de alguém que abre caminhos na gloriosa tarefa de divulgar o que merece ser divulgado, fazendo-o de uma forma eficaz e duradoura. Não havendo aqui espaço para traçar um perfil adequado de toda a sua personalidade irei referir apenas a dedicação e o trabalho que colocou ao serviço da obra de uma ceramista inglesa, Clarice Cliff, que teve a dita de merecer a atenção estudiosa e militante deste destacado estudioso. Leonard Griffin é um cidadão inglês que veio residir para Portugal, em pleno distrito de Coimbra e que aqui vive encantado com a gente e as artes deste país. Fundou em 1982 o conhecido CCCC (Clarice Cliff Colectors Club), que produziu ao longo dos últimos 27 anos um ressurgir enérgico da imagem e do valor da citada artista, com coleccionadores espalhados por todo o mundo e cotações surpreendentemente elevadas. Se Clarice Cliff fosse portuguesa a sua obra estaria hoje enterrada debaixo do mais indecente anonimato.

Rafael Bordalo Pinheiro


A valiosa dedicação de Leonard Griffin e os azares calamitosos do quase extinto Zé povinho

Rafael Bordalo Pinheiro bem pode dar voltas na tumba do prestígio saudosista que envolve a sua palpitante obra de cidadão lúcido e artista inspirado. É num jazigo de palavras vãs que irá repousar a lembrança duma das suas invenções menores, a castiça figura do Zé povinho, permanentemente acintoso no gesto malcriado com quem ninguém se identifica porque é chato, cheira a bolor e… não vai a lado nenhum. A não ser nas páginas das teses de doutoramentos futuros, quando já não houver a mínima hipótese de ressuscitar o gesto criador de quem faz as coisas agora porque sabe e porque sente, que a sociedade deita para o lixo porque não quis descobrir nisso lucro imediato nem dar valor à dignidade cultural que de facto lhes corresponde.

Raf pen

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O “Jardim da Água” nas Caldas da Rainha e a obra artística de Ferreira da Silva

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painel de azulejos, IPO/Coimbra
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Quem primeiro me falou, já há alguns anos, acerca do artista Ferreira da Silva, foram os profissionais de azulejaria da região de Alcobaça, Porto de Mós e Caldas da Rainha. Trata-se de uma figura por todos conhecida, rodeando o seu nome uma aura de elevado respeito e consideração pela sua obra.
Um dia, o meu amigo Alcino Vala, do Juncal de Porto de Mós, que exerce o mesmo ofício que os azulejadores de fins do sec. XVIII que ali produziram, entre muitos outros, os painéis de azulejos que estão na sala dos Reis no Mosteiro de Alcobaça, levou-me propositadamente até ao Hotel da Quinta do Pinheiro, no Valado dos Frades, onde há um significativo conjunto de trabalhos de autoria de Ferreira da Silva, às quais novas encomendas se vieram juntar recentemente, numa louvável atitude de enriquecimento patrimonial daquela instituição.
Tive mais tarde a ocasião de publicar no Diário de Coimbra um comentário detalhado a respeito do notável conjunto de painéis seus que se encontram no IPO em Coimbra, quer à entrada, quer no seu interior.
Fora entretanto às Caldas da Rainha, para me encontrar com o Mestre, o que me deu a grata oportunidade de conhecer, além de outras intervenções suas de valiosa importância, o empreendimento público que ali desenvolve, com arrastadas intermitências, por iniciativa do Centro Hospitalar da cidade e que tem a designação de “Jardim da Água”.
É muito ingrato para mim falar num espaço tão reduzido a respeito do labor deste notabilíssimo artista detentor, além do mais, de uma personalidade forte e distanciada de toda a trivialidade, do exibicionismo fácil e da reverência conveniente.
O artista Ferreira da Silva é conhecido por um grande número de intelectuais e artistas do grande mundo, com os quais ombreou em talento e representação cultural. A personalidade que o caracteriza, contudo, fez dele um homem enraizado no labor oficinal que sempre tem desenvolvido com a maior eficácia criativa e infatigável persistência experimental. Detentor de uma cultura universalista, ecológica e poética, de grande independência, aprecia os espaços livres, o mundo das origens, os princípios e a liberdade inicial em clima que gosta de designar como “saudade do arqueo-sítio”.
São numerosas as obras que foi produzindo no domínio das artes do fogo, estando espalhadas pelo mundo uma grande quantidade delas, na posse de notáveis coleccionadores.

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O “Jardim da Água”, Caldas da Rainha

O Jardim da Água é um espaço cénico e um percurso pedonal que tira partido de um conjunto de materiais pré-existentes e de estruturas de encaminhamento de águas termais, aos quais se acrescentam multifacetados recursos de originalidade e um sentimento criativo sem peias.
É uma obra dominada por um empolgante sentimento de utopia, destinada a fornecer um permanente espectáculo de águas rumorejantes, circulando através de planos diversificados, animado dos mais diversos efeitos de cor e luz.
A estrutura geral de suporte associa à solidez do betão uma libérrima multiplicidade de planos com intenso dinamismo escultórico, sobre os quais a cerâmica, o vidro, o ferro e outros materiais ganham significados novos, amplificantes do seu usual valor.
Faço os mais sinceros votos para que as contradições que se adivinham por detrás da hesitante marcha dos acontecimentos não demorem a conclusão de uma iniciativa sem qualquer paralelo em meio urbano e de invulgar expressão estética, que tanto tem a ver com o legado histórico e cultural da cidade em que se encontra.

Este texto foi publicado na Revista de Informação do SBC, de Janeiro/Fevereiro de 2008

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