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António Pedro Pita – Um lápis enquanto sonho / Setembro de 1993

Alta-Quebra Costas, acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites

Alta-Quebra Costas, acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites

1. Ao inaugurar mais uma exposição, Costa Brites apresenta o seu primeiro livro, Visualidades.

A ele pertencem estas palavras: “as minhas opções são assumidamente alheias à necessidade – que não quer dizer indiferença – da determinação “moderno/não moderno”. Gostaria de sugerir que tal alheamento tem sido responsável por uma leitura superficial deste universo pictórico ao incluí-lo imediatamente num desses polos (o não moderno) e demasiado rápida para aperceber-se das subtilezas de que se alimenta este filho longínquo, mas não tardio, da constelação surrealista, cuja peculiar figuração muito deve às lições da pop-art, à importância do enquadramento cinematográfico, à fotografia e à utilidade expressiva da colagem. Que a reconstituição deste trajecto – desde as primícias de 1968, no meio culturalmente vivo que o arquipélago dos Açores (já) era, até às soluções estéticas actuais – seja difícil, insólita ou paradoxal, consoante o observador, não me custa admitir. Mas não me é menos claro que uma tal reconstituição – possível, unicamente, através de uma retrospectiva que, além da pintura, exponha também o desenho e o trabalho gráfico – evidenciaria alguns possíveis modos de apropriação de tendências fundamentais das artes plásticas do nosso século. Pela frontalidade com que interpela o espectador esclarecido, pela radicalidade com que elabora a fascinação fotográfica e pelo território frágil em que obriga a estabelecer critérios e desenvolver argumentos, a pintura de Costa Brites exige uma pausa reflexiva quase pelas mesmas razões em que, à primeira vista, parece dispensá-la. E é no ligeiro movimento implicado neste quase que tudo se joga. Não é a pintura, todavia, que em primeiro lugar deveria referir. Mas este livro, o primeiro livro de Costa Brites, intitulado Visualidades.

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 2.“A obra dum artista é indesculpável, seja qual for a roupagem de que se cinja” (Costa Brites).

O que é este livro? Uma autobiografia oficinal? Uma reflexão teórica sobre o fazer-se da pintura e as suas condições, estéticas e históricas? Uma colectânea de poemas? Uma espécie de diário pessoal e de trabalho? Serão estas, contudo, as perguntas justas, quero dizer, ajustadas ao livro a que se reportam? Suponho, de facto, que só de um outro modo é possível adequarmo-nos a este dispositivo textual, ver e saber o que o livro nos propõe: porque não sendo em rigor uma autobiografia oficinal nem uma reflexão teórica nem um diário, nem um ciclo poético, e não sendo também nem paráfrase nem explicitação do que o pintor já exprimira em tela, Visualidades fala de um momento anterior à pintura mas sem o qual a pintura não existiria, sua condição razoavelmente obscura. Será possível, porventura, traçar o gráfico desta obscuridade pelo carácter “poético” ou “racional” da escrita de Costa Brites. Que as aspas nos ajudem a aludir a um problema que não pode agora ser desenvolvido. Notemos, de passagem, este aspecto curioso: a segunda parte, “poética”, intitula-se “Ecos da cidade e outras coisas“; como se o sujeito da escrita fosse o local de ressonância de um som e de uma voz que vêm de longe, de uma origem porventura inacessível ou indeterminável, e que por isso mesmo precisa dessa ressonância para determinar-se, precisa de uma escuta que, ao mesmo tempo, seja acolhimento, interpretação e significação. Na primeira parte, “teórica”, “Falas do pintor“, o artista desenha os limites da sua perspectiva, refere momentos de um processo de tomada de consciência teórica. Subiste o problema fundamental da articulação destes dois níveis: o facto de Costa Brites nos propor, como totalidade, um Livro Primeiro (“Falas do pintor“) e um Livro Segundo (“Ecos da cidade e outras coisas“) sugere a ligação, que deve ser meditada, entre 1) o Objecto que se dá em eco, 2) a subjectividade que interpreta o eco, 3) a mão que exprime pictoricamente.

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3. O Objecto que se dá em eco é a Cidade. Mas a Cidade é uma realidade contraditória: comunhão e isolamento, silêncio, ruído e morte, júbilo de existir, “experiência alucinante de viver”. Leia-se: “Eu sou uma dor que caminha ausente/ Estou aqui à espera e ninguém me encontra”. Mais do que um desencontro pessoal, de expectativa frustrada, é aquele descentramento de uma dor que, ao ser subjectivada, radicaliza um essencial mecanismo de alienação, que nos fornece um traço forte da Cidade que já não é “lugar de encontro e de diálogo”. Não sejamos iludidos pelas palavras: há em vários destes textos e em especial no sentido gerado pelo conjunto uma raiz que excede o humanismo balofo das boas intenções. Escrever: “Já não existe espaço na minha carne/ para o sentido da força/ para a coragem do prazer”, é reivindicar um espaço próprio de afirmação do desejo; mas fazê-lo é rasgar os próprios limites do humanismo, como mostra a difícil recuperação humanista de Espinosa e Nietzsche, que fizeram desta afirmação um eixo fulcral.

Espaço, pois: “espaço na minha carne” 1) traduz, na terminologia de Costa Brites, a condição primeira para superar a indeterminação, para ir além da facticidade. Como se fosse necessário, para o advento de um (do) sentido, uma espécie de dilaceração íntima, um rasgo na compacticidade do ser, uma descontinuidade – a inscrição, na própria imanência, de um ponto de fuga , mistério, mar (“Eco distante de encontrar meu mistério/ minha fuga/ meu mar interior”). Neste sentido, a alusão à “cidade sem espaço” é particularmente significativa. A Cidade não é só uma concretização do espaço: a Cidade é uma concretização convivial do espaço (“a civilização do espaço é um acto cultural”): deverá permitir falar de janela para janela e da janela para a rua, ser generosa para velhos e crianças, ser possibilidade de silêncio e paz. O espaço na cidade, para existir, necessita da “aragem de mistério, inspirador e fecundo, que invoca em cada objecto a presença transitória, mas eficaz, de cada ser e de cada ideia”. Isto é: para existir como tal, a Cidade não pode extinguir o mistério, a marca individual, a voz solitária.

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4. Submetida a um rápido processo de crescimento desregulado e especulador, a Cidade desenvolve até ao paroxismo uma contradição: é preciso reduzir o espaço para acolher mais gente que precisa de mais espaço para viver. Em rigor, o Objecto que se dá em eco neste livro de Costa Brites é a Cidade assim dilacerada, ou melhor, é a própria contradição que dilacera. Compreende-se, deste modo, que à Cidade-real, desfigurada e pobre, triste e sem alma, seja contraposta não propriamente uma Cidade-ideal, que seria o positivo da outra, mas uma Cidade-mito, fundamento íntimo da própria ideia de Cidade. Mais demorada reflexão sobre este ponto permitiria desfazer um duplo equívoco: o de considerar a pintura de Costa Brites subordinada ao fascínio da fotografia e o de a ligar imediatamente à representação de algumas cidades (Coimbra, Leiria, etc.). Pelo contrário: a verosimilhança, nesta pintura, é o campo (arriscado, subtil, irónico) de um jogo que o pintor iniciou há muito com os leitores da sua pintura. Porque, em verdade, nenhuma cidade real é o referente desta pintura. Na tarefa de representar a Cidade-mito, Costa Brites realiza, com a maior coerência, uma pintura, como se diz, “sem pessoas”, uma vez que o mito é uma estrutura pré e trans individual que, precisamente, ordena e dá inteligibilidade à vida das pessoas. Fica reservado ao rigor geométrico do traço, ao diálogo das cores, à harmonia das superfícies, à obsessão pelo detalhe o trabalho de nos representar possibilidades de um espaço aprazível, comum, feliz, misterioso, percorrido de “verdades assombrosas” e de “sonhos de aventuras”.
5. “O artista escolhe tal assunto porque ele lhe é consubstancial, porque este assunto desperta nele uma certa emoção, sustenta uma certa interrogação; não se trata de copiar mas de dar através dele um equivalente sensível tanto da significação afectiva como intelectual que este assunto tem para ele: Rouault não pintou um Cristo mas através do Cristo um equivalente pictórico do que o Cristo significa para ele. O objecto é representado na sua verdade, pelo menos na verdade que dele o artista conhece, e não na sua realidade lisa e insignificante”. 2)

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6. Ao reconhecimento, “Olha a Rua das Flores!”, deverá substituir-se uma interrogação: “Qual é a cor da felicidade?”

7. Recordemos o debate entre os desenhistas e os coloristas: “O desenho imita todas as coisas reais, enquanto a cor só representa o que é acidental” (Le Brun). Compreende-se pois que os racionalistas privilegiassem o desenho, em nome de uma “transcrição” fiel da realidade.

Mas o lápis de Costa Brites (“Pego num lápis enquanto sonho”), exacto, rigoroso como uma navalha, está no limiar de uma aventura. Imita. Mas não imita o que se vê, “coisas reais”. Desenha serpentes, estrelas. Primeiro, o lápis, como uma navalha. Todo o trabalho de reconstrução (que é também adivinhação 3) ) do mundo, que a pintura é, começa aí. Porém, o facto de Costa Brites relacionar o lápis e o sonho (o exercício da razão e o seu adormecimento) é muito significativo, e a própria estrutura da frase enigmaticamente sugestiva. Pegar no lápis enquanto sonha para pintar (quer dizer, reconstruir) a Cidade, mais do que subordinar o rigor da mão que desenha ao adormecimento da consciência, significa inscrever aquele rigor neste adormecimento. Ou ainda, para retomar considerações iniciais, significa que toda a consciencialização (“pego no lápis”) nasce da obscuridade (“enquanto sonho”). Mas há na formulação do pintor uma outra possibilidade: pegar no lápis enquanto sonho poderia ser um modo de designar a matéria de que o lápis é feito. Hipótese não desprezível, à luz da doutrina do referido debate e da importância do desenho na estruturação da Cidade-mito de Costa Brites. Como se, afinal, o lápis – este lápis: “o lápis enquanto sonho” – resolvesse a contradição entre a consciencialização e a obscuridade. Como se, a mais de saber os contornos exactos de serpentes e estrelas – este lápis, antes de reconstruí-las, adivinhasse a cor da solidão e da melancolia.

ANTÓNIO PEDRO PITA

Figueira da Foz, 1 de Setembro de 1993

1) – O que se escreve agora, quanto a este ponto, poderá ser lido como eco da conhecida tese de Maurice Merleau-Ponty: “Mon corps est de la même chair que le monde”.

2) – Mikel Dufrenne, Phénoménologie de l’expérience esthétique – I, PUF, Paris, 3ª ed, 1992, p. 393-394.

3) – Costa Brites: “Se pinto, adivinho e reconstruo o mundo”.

Pedro Dias – Exposição Museu Machado de Castro, 1989

Texto de catálogo da Exposição que teve lugar em Coimbra no Museu Nacional de Machado de Castro em Novembro de 1986, organizada pelo então director Professor Pedro Dias, e de autoria do mesmo.

O mesmo texto, com algumas alterações de carácter curricular foi publicado pelo Departamento de Cultura do Concello de Vigo, por altura da exposição naquela cidade de trabalhos integrados no Encontro Vigo Coimbra, em Maio de 1989

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Quase todas as cidades de características peculiares ou fecunda história tive­ram os seus pintores, artistas que as compreenderam, que as amaram e souberam captar aquilo que as individualizava e tornava distintas das restantes. Poderá dizer-se que, até hoje, tal não aconteceu com Coimbra, pese embora que os seus recantos mais típicos ou a larga mancha do seu casario modesto em anfiteatro cubra centenas de telas, a maioria das quais executadas já neste século.

Parecerá isto uma contradição, mas não é a mesma coisa ser um pintor da cidade ou alguém que pinta a cidade. O primeiro é o que a ela se dedica de alma e coração, exclusivamente, permitindo-se, quando muito, uma escapadela a um tema marginal, para logo regressar. O segundo usa a cidade como motivo, de quando em vez, como mais um dos do seu reportório. Foi isto o que se passou com Cristino, ainda no final de Novecentos e sobretudo com Fausto Gonçalves e José Contente, mais recentemente, só para citar alguns dos que já nos deixaram, há várias décadas.

Alta - Bota Abaixo; acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 1984-86

Alta – Bota Abaixo; acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 1984-86

Coimbra não teve até hoje, como Lisboa teve Carlos Botelho e o Porto António Cruz, quem a elegesse como motivo primeiro e permanente da sua arte. Por isto, se outras razões não houvesse, a pintura de Costa Brites teria já de ser tomada em conta.

Mas a representação da cidade na pintura ocidental não foi sempre a mesma. Entrando pêlos séculos dentro, vamos encontrar a urbe como mero marco de refe­rência de passos da História Sagrada ou da crónica dos feitos dos grandes deste Mundo, seja na iluminura ou nas tábuas e murais que, na Idade Média, decoravam as casas das instituições religiosas. Como entidade autónoma, merecedora do primeiro ou exclusivo plano, apenas temos Jerusalém, a terrestre ou a celeste, consoante os casos, mas, sempre, uma construção ideal.

Na Renascença e no Barroco a cidade é o cenário, é apenas o espaço onde o homem desenvolve a sua actividade ou o marco que evoca o lugar de martírio ou de milagre das hagiografias ou da Vida de Cristo.

Santa Clara-a-Nova, acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, Costa Brites, 1987

Santa Clara-a-Nova, acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, Costa Brites, 1987

Seria necessário esperar por Canaletto e Guardi, para que a cidade se tornasse digna de ocupar o trono das Musas, fundindo-se assim a fonte de inspiração com o próprio objecto. Mas foi breve a vida deste realismo urbano.

Estes dois pintores, e esquecemos necessariamente outros menores, dedica­ram-se a Veneza com paixão, souberam vê-la e, mais que isso, transcrevê-la. A sua identificação com as águas da laguna, as fachadas das igrejas e palácios e com os corsos foi tal que, nas suas telas, Veneza não só se vê, como se ouve, se cheira e se sente.

O Romantismo e a viagem, esse primeiro turismo, provocou o incremento das pinturas de cidades, mas agora só interessavam as recordações, os trechos mais pito­rescos, os apontamentos monumentais.

O caso de Costa Brites está, indiscutivelmente, mais próximo dos de Canaletto e Guardi que de qualquer outro pintor que antes referimos. Para ele Coimbra é o objecto exclusivo da sua arte, que estuda, descobre, entende, vive e representa. Porém, este artista não é o fotógrafo da cidade, o pintor-fotógrafo melhor dizendo, que hoje, aliás há já um século, não tem razão de existir. A Coimbra de Costa Brites não é a real, como à primeira vista parece. Nem todos aqueles telhados lá estão, nem todas as cores são aquelas, nem todas as ruas têm aquela inclinação. Mas é Coimbra, indiscutivelmente, que todos vemos nas suas telas, que todos reconhecemos e, mais que tudo, profundamente sentimos.

Chiado, Praça Velha / acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 1986

Chiado, Praça Velha / acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 1986

Como é então isto possível. Como explicar que tomemos, de novo, a nuvem por Juno, que aceitemos a ilusão por realidade, sem um protesto. É aqui que reside o grande mérito do artista. É por isto que é artista e não artífice.

Ele capta o que há de essencial, enfatizando-o, desprende o acessório ou relega-o para um plano secundário, de quase adorno. Não se limita a olhar e reprodu­zir, antes interpreta as formas, as cores, os espaços e recria-os, balançando entre a verdade e a miragem.

Este processo não é fácil, não é imediato, e Costa Brites tem vindo a aperfeiçoá-lo. Pouco a pouco as pessoas foram varridas das telas, saíram das ruas, os meios de transporte volatilizaram-se e apenas ficou a paisagem urbana — paredes, vias, árvores, etc. Mas a Coimbra de Costa Brites nem por isto é uma cidade fan­tasma. Não notamos a falta das gentes nas ruas. Pelo menos nós, os que aqui nasce­mos ou que aqui vivemos já há muito tempo. Porque, afinal, como o amante ciu­mento, todos queremos a cidade apenas e só para nós. Por isso aceitamos a ausência dos outros, mais, aplaudimo-la, para, no silêncio daquela luz fria e uniforme a pos­suirmos ou sermos por ela possuídos, numa cumplicidade em que o secretismo é parte fundamental.

Rua dos Bazares, acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 1992

Rua dos Bazares, acrílico s/ tela s/ platex, Costa Brites, 1992

Em toda esta pintura, há o mérito de a ela aderirmos de imediato, somente quando amamos o objecto há muito e não à primeira vista.

Percorrer a obra de Costa Brites não é apenas um passeio turístico por mais uma cidade, pitoresca aqui, monumental acolá. Percorrer a obra de Costa Brites é penetrar fundo na essência de um espaço vivido e construído por gerações, de onde o artista previamente arrancou tudo o que podia distrair a atenção, desviar o olhar e perturbar os sentimentos.

Trabalhos morosamente elaborados, eles estão longe de ser frios, calculistas e pretensamente rigorosos. Apenas que nem todos amam da mesma maneira. À fugaz paixão, violenta até, dos impressionistas, opõe-se aqui a constância de quem saboreia cada momento, longa, longamente.

 

Pedro Dias

Carlos Lobo, um olhar aberto no meio da multidão

Publicado Diário de Coimbra 7 de Dezembro de 2001

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Esmalte de Carlos Lobo

Tenho à minha frente e manipulo alguns esmaltes coloridos da autoria de Carlos Lobo, nome que lanço à escrita sem os adjectivos brilhantes que os homens merecem apenas depois de mortos.

Carlos Lobo com seu rosto limpo e bem barbeado caminha pela rua com vários papéis debaixo do braço. Não vai depressa nem devagar, mas sentimos nos seus passos uma segurança e uma delicada determinação.
Irá visitar um amigo necessitado de apoio? Irá à abertura dum acontecimento artístico ou mandar uma carta urgente para um continente distante? Provável é que vá encontrar-se com outros militantes da cultura ou reunir-se com ex-colegas envolvidos em problemas de trabalho e desemprego, carentes da solidariedade quente daqueles que se encontram na mesma situação, os únicos que podem trazer alento e estímulo verdadeiros.

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Onde irá Carlos Lobo com seu olhar tranquilo e a voz serena que tanto invejo?

Não saberei nunca e todas essas hipóteses são possíveis. Certo é que vai seguro e não caminha em vão. Debaixo do braço alguns papéis preciosos, destino certo de ideias variadas, pensamentos coloridos preenchidos de intenção e sonho. Ou simplesmente o dom organizado e voluntário duma ilusão magnífica.

Acaricio outra vez o corpo ondulado dos esmaltes coloridos pelo pó mágico transfigurado pelo calor do pequeno forno laborioso, densamente cercado por um universo de alfaias e produtos e artefactos metodicamente alinhados.
Mergulho na vibração espontânea que só as coisas carinhosa e longamente elaboradas possuem, atravessadas pela indeterminação da fantasia e pela casualidade da revelação que apenas à natureza infinita diz respeito.
São obras de expressão condensada que oscilam entre a candura figurativa de visões ingénuas e o desafio enorme da visão abstracta. Quer num quer noutro extremo desse universo existe contudo a marca constante dum diálogo respeitoso e inteligente com materiais de utilização subtil e misteriosa. Um elaborado processo de descoberta e encantamento.
O consenso de simpatia e de afabilidade que geram os espíritos da categoria de Carlos Lobo tornam quase dispensável mais esta conversa de pintor. Todos o conheceram e todos o estimaram. Todos vão elogiá-lo e dizer que pessoas assim fazem imensa falta.
A ilusão contudo também cansa, e olhar para o mundo e procurar entendê-lo em toda a sua conflagração de paixões divergentes é como descer uma escada de expectativas que parece não ter fim.
Enquanto estivermos vivos é que vale a pena dar atenção às pessoas, escutar a mensagem quente e útil que possam querer transmitir-nos. Todas os homens bons que desaparecem são mais uma razão para dar ouvidos àqueles que ainda estão disponíveis e generosamente interessados em prestar seu contributo.
A sociedade concorrencial possui uma lógica impiedosa de categorizar os indivíduos por uma determinada ordem de notabilidades incontestáveis.
A essa norma se sujeitam todos os cidadãos, todos os artistas, todos aqueles que possuem uma ideia generosa e útil escondida em seu coração. O mais certo é que a sociedade não lhes dê ouvidos, e vá ficar perdida mais uma preciosa razão para sentir que se deu um pequeno passo em frente na salvação da própria humanidade.
Na “Invenção do Dia Claro”, disse Almada em seu discurso pitoresco que “quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade”.

Carlos Lobo nunca foi uma alta individualidade

Que bom para ele, e que bom para nós que possa um homem ser uma criatura insigne, sem ter que levar uma estátua, ou uma medalha, ou um cargo público, e permanecer vivo como ele por certo fica na lembrança de todos aqueles que o conheceram.

TÚLIA SALDANHA; Curriculum Vitae resumido

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O seguinte “curriculum vitae” (resumido) da artista Túlia Saldanha foi inserido num breve catálogo, cuja capa acima se reproduz, de uma sua exposição realizada por iniciativa dos Serviços Culturais da Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros, de 24 a 30 de Junho de 1987.

Túlia Saldanha nasceu em Perêdo, Macedo de Cavaleiros em 1930. Foi sócia do Círculo de Artes Plásticas des­de 1967 e fez parte do Corpo Docente desde 1974.

Algumas exposições colectivas:
1968

Em Coimbra: − no Museu Machado de Castro; − no CAPC;
Em Amarante:
− no Centenário de Amadeu de Sousa Cardoso
1971
Em Coimbra:
− “A Floresta”, no CAPC;
No Porto:
− “O Presente”, na Galeria Alvarez;
Em Óbidos:
− na Galeria “Ogiva”
1973
Em Coimbra, no CAPC:
− “Minha Coimbra Deles” e “Aniversário da Arte”.
1974
“Projectos Ideais” na Sociedade Nacional de Belas Artes (S.N.B.A.) em Lisboa
1975
“Semana de Arte na Rua” em Coim­bra
1976
“Alternativa Zero” em Belém, Lisboa,
Encontros Internacionais de Arte na Póvoa de Varzim
1977
“Mitologias Locais” na S.N.B.A. emLis boa,
Cooperativa Árvore no Porto,
Encontros Internacionais de Arte nas Caldas da Rai­nha
1980
Participações:
na SACOM 2 Museu Vostell em Malpartida de Cárceres, Espanha,
“Panorama das Galerias” na Galeria de Arte Moder­na em Belém,
“a Caixa” na Galeria Diferença Lisboa
1981
“25 Artistas de Hoje” no Museu de Ar­te Moderna na Universidade de S. Paulo Brasil, “100 Horas a Desenhar” na Galeria do Chiado em Coimbra
1982
Bienal Internacional de Vila Nova de Cerveira
1983
“30 Horas a Desenhar” Instituto Alemão em Lisboa,
“Exposição Nacional de Desenho” na Cooperativa Arvore, no Porto,
“O Papel como Suporte” na S.N.B.A. Lisboa
1984
“Anti-Heróis, Malditos e Marginais” em Lisboa;
“Pipxou” − Inverno 84 − Galeria Diferença Lisboa
1985
Intervenção no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian Lisboa
1986
II Bienal Nacional de Desenho/85 na Cooperativa Árvore, no Porto;
Faculdade de Direito de Coimbra;
“Agitarte” em Aveiro;
Casa Museu Teixeira Lopes em Vila Nova de Gaia;
Faculdade Psicologia Universidade de Coimbra.
1986
Festa para Ernesto de Sousa;
Como elemento do Grupo de Intervenção do CAPC, participação nos Encontros Internacionais de Arte Caldas da Rainha,
em Coimbra, na S.N.B.A.,
no IADE, no Café Brasileira em Lisboa, etc.
Exposições individuais:
1969, 70, 71 CAPC Coimbra
1974 Galeria Dois no Porto
1976 no CAPC
1979 Gal. Diferença Lisboa
1982 no CAPC Coimbra
1985 na Galeria Diferença em Lisboa
1986 Teatro Gil Vicente Coimbra.
1986 Galeria QUADRUM, Lisboa
1987 Desenho e Pintura Macedo de Cavaleiros
1987 Galeria Almada Negreiros, (aquisições Recentes) S.E.C.
1987 Abertura do Museu de Arte Moderna (Casa de Serralves), no Porto.

Chamo a atenção dos visitantes para a crónica de minha autoria a respeito da memória pessoal que tenho dessa insígne artista e pessoa de raríssimas qualidades humanas, abaixo publicada.

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Esta imagem representa as capas de duas edições do CAPC que me foram oferecidas pessoalmente por Túlia Saldanha e que guardo como importantes documentos da actividade daquela instituição, respectivamente, durante os anos de 1979 a 1980 e de 1981 a 1983.

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Uma artista de elevado nível que Coimbra faz por ignorar

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À “minha Túlia”, a homenagem simples tão só de uma criança
Este artigo foi publicado no Diário de Coimbra no dia 03 de Dezembro de 2006, no espaço “Temas de Domingo”, pg. 20.

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Túlia Saldanha e Inês Paulino, no CAPC, no começo dos anos 80

Carta à minha estimada amiga Túlia Saldanha,

Tenho muita pena de não ter podido estar presente no último encontro que tinha marcado consigo. Realmente estava mal informado sobre o seu estado de saúde quando vi o anúncio de que iria fazer parte dum painel de especialistas para discutir, no contexto das iniciativas da ARCO em Madrid, as actividades pedagógicas ligadas ao ensino e divulgação das artes plásticas, há cerca de uma dúzia e meia de anos atrás.
Já não pudemos encontrar-nos e tive de conformar-me com a sua ausência devido a motivo de força maior. A notícia do seu falecimento consternou, como é tão abundantemente sabido, uma boa mão-cheia de amigos desta velha cidade e tantos outros admiradores que, fora dela, tiveram o privilégio de consigo trabalhar e de consigo viver o gosto e a paixão da arte.

Muitos são os eleitos mas poucos os escolhidos

À engenharia das preferências colectivas e das homenagens públicas se pode aplicar a mesma frase que se aplica a muitas outras situações: diz-me como e quanto homenageias e eu dir-te-ei quem és. Lembro-me disto, Túlia, porque sou reincidente em homenageá-la muito singelamente, por palavras breves mas calorosas de sincera admiração.Por mim não fica a sociedade em falta consigo em salientar o valor seguro do seu labor metódico ao serviço de toda a cultura e de todas as artes, mas, acima de tudo, ao serviço da arte sem academias, nem medalhas, nem poses estudadas, da sua preciosa dedicação pela sensibilidade das pessoas em si mesmas.
Confesso-lhe que tenho tentado uma e outra vez convencer todas as pessoas com quem converso de que há uma enorme dívida pública para com a lúcida atenção que dedicou às artes, às suas técnicas, ao seu exercício oficinal e, principalmente, à sensibilizada percepção dos seus valores mais profundos.

A Túlia pertencia à rara multidão dos eleitos, mas não granjeou a condição de escolhida, por culpa de modéstia própria e do funcionamento fatal da sociedade em que viveu. Venho por isso contar-lhe a pequena palavra de uma criança, em substituição de uma grande homenagem institucional, tentando disfarçar o pecado de ocultação que têm cometido todos os seus contemporâneos e sobretudo os que foram testemunhas, utentes e beneficiários directos, individuais ou colectivos, dessa mesma obra e dessa mesma atenção; A homenagem sem preço do afecto de um menino.
Além de artista e dinamizadora cultural exerceu a minha amiga a profissão de educadora, actividade da qual foi afastada ao final da sua carreira, por um processo burocraticamente lamentável e verdadeiramente kafkiano que talvez pouca gente conheça.Anos antes, porém, fora educadora num infantário do qual era utente um filho meu, criança que, como tantas, lutava com certas dificuldades de enquadramento devido à timidez e à incapacidade de reagir perante o meio já agressivo da comunidade infantil. A problemática que viveu foi um tanto perturbadora, sucedendo-se as conjecturas improdutivas de outras educadoras e até da directora do estabelecimento em causa.
A produção de opiniões em nada resultou até que tivemos a sorte de vir para o infantário Túlia Saldanha, que estabeleceu com o menino um relacionamento sem problemas, que conseguiu integrá-lo no colectivo e que fez desabrochar nele a capacidade límpida duma natureza somente tocada de alguma raridade, sem patologias negativas.
A amizade entre menino e educadora, centrada principalmente no trabalho de expressão plástica que desenvolvia, foi tão caloroso que, desde então, Túlia Saldanha perdeu o seu nome artístico para ser bem conhecida entre nós da forma como passou a designá-la esse menino: “a minha Túlia”.

Fique pois sabendo, além disso, que aqui em casa, falando-se de artistas, não viramos todos o rosto para o mesmo lado donde sopra o vento das amenas conveniências da unanimidade. Artistas, apreciamos todos, e a todos dedicamos a atenção que a obra justifica e merece. Mas não queremos ver na paisagem apenas o lado onde bate o sol das preferências sem questionamentos raros. E a si, cara amiga, para além do conhecimento que temos da grande obra por si desenvolvida e da sua total indiferença pelas homenagens deste mundo, creia que ficou “a minha Túlia” para todo o sempre, no imaginário de uma pequena família sem importância que rememora o seu trabalho inteligente como um bálsamo, e a sua perspicácia humana como um acto produtor de futuro em harmonia e felicidade.

Ainda a respeito de Túlia Saldanha e do CAPC, escrevi mais tarde – numa crónica publicada no Diário de Coimbra, o seguinte:

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Túlia Saldanha, uma presença inesquecível

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“…No dealbar dos anos setenta, quando cheguei a Coimbra, o CAPC era ainda procurado por interessados praticantes que aqui vinham propositadamente frequentar os seus ateliers, sendo dignificante em futuras carreiras artísticas a menção desse facto nos curricula respectivos.
Datam dessa década e da seguinte as visitas que ali fui fazendo, sendo para mim do maior significado a excelente convivência artística e cultural que pude travar nas antigas dependências da Rua Castro Matoso com artistas como Túlia Saldanha e Inês Paulino, para citar apenas dois nomes distintos.
O período seguinte foi caracterizado por convulsões e acontecimentos do mais variado teor que evidenciaram o Círculo como centro de realizações, debates, encontros, participações activas, sessões de divulgação, confronto de atitudes, etc.
As mudanças registadas, no percurso das quais o infausto desaparecimento de Túlia Saldanha não deixou de ser um notável ponto de viragem, associaram-se ao montante geral de transformações da própria sociedade, apagando de forma duradoura aquilo que fora e não mais voltou a ser.
Até aí ligado ao convívio artístico e à aprendizagem e divulgação oficinal das artes com carácter plural e de acentuada modernidade, o CAPC situou-se a partir de então no horizonte da “emergência” da arte contemporânea, numa tendência conceptual que acentuou a “desmaterialização” da arte e o isolamento progressivo da instituição, tendo alguns dos seus mentores mais avançados – o que não deixa de ser curioso – liderado a eclosão do que hoje é um importante núcleo universitário privado do ensino de Belas Artes…”

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Na Galeria Sete, pinturas de Miguel Telles da Gama e Pedro Pascoinho

Publicado no Diário de Coimbra no dia 17 de Abril de 2010

Recomendo a todos os interessados pela pintura uma visita à exposição “Permanências” que se encontra na Galeria Sete, ao fundo da Avenida Elísio de Moura, desde o dia 10 de Abril, com obras de Miguel Telles da Gama e Pedro Pascoinho. Os dois artistas evidenciam personalidades artísticas bem caracterizadas e as obras respectivas encontram-se devidamente apresentadas no espaço disponível de modo a não confluírem no mesmo horizonte contemplativo.
Os dois núcleos de obras são completamente diferentes, mas, a oportunidade de ver um conjunto primeiro e o outro logo depois, oferece um desafio mais ao visitante: o de poder viajar entre dois pólos de uma mesma fidelidade a princípios de observação e caracterização do universo das coisas sensíveis, podendo aproveitar a oportunidade para elaborar na mente um conjunto estimulante de relacionações não forçosamente comparativas, mas de valorização mútua de entidades contrastantes.
Entidades contrastantes, poderia ser esse porventura um outro título para a mesma realização conjunta, dado que é o que se nos depara ali: uma dualidade de confrontações, cada uma com a sua temperatura específica, o seu clima visual e a sua intensidade própria.

Na Galeria Sete, pinturas de Miguel Telles da Gama e Pedro Pascoinho


Miguel Telles da Gama apresenta-nos uma galeria de seres anónimos, fragmentários, oclusos, reduzidos a uma teoria de cores neutras, evidenciando a categoria de objectos escultóricos que oferecem pose em silêncio distanciado, página de modelos recortada pela tesoura criteriosa dum esvaziamento premeditado, sistemático, sem piedade.
Essas captações sintéticas afirmam o temperamento fotográfico de cada fragmento, materializado mediante o exercício cuidadoso de uma pintura meticulosa, obediente à focagem, à solidez, ao claro-escuro, ao capricho volumétrico dos tecidos, reminiscência da presença inapagável dos panejamentos da grande pintura.
A força do contraste, neste caso, é-nos revelada pela contraposição de tais elementos com planos de cores fortes, tornados objecto visível por intermédio de um expediente vocabular, título ou legenda de uma circunstância anexa ao sentido gráfico que envolve a totalidade das composições.


Pedro Pascoinho desenvolve perante o nosso olhar um teatro de confrontações de forte poder sugestivo, apoiado numa sistemática exploração de recursos gráficos do universo das revistas vindas do outro lado do Atlântico e de além Mancha, os “magazines” repassados pelo tipismo das gerações de entre guerras, dos seus trajes, adereços, apetrechos e ambientes de trabalho.
Essas figurações desenvolvem entre si uma dose de nonsense e de indeterminação que abrem para o mistério insolúvel amparadas muitas vezes por um manto de espesso negrume que marca a sua presença com uma plasticidade viscosa sem apelo.
O sistema de contrastes é acentuado (também) mediante as diferenças de escala de elementos contrapostos, expediente narrativo que por vezes assume o carácter de uma verdadeira abordagem psicanalítica, queira ou não queira a opção inicial que os colocou sobre a tela.
A execução plástica é fluente, intuitiva, as cores oscilam todas em torno de uma gama abatida na área de tons terrosos aquecidos pela maturidade das coisas antigas, alma residual de papéis deixados a amadurecer nas prateleiras de verão dum sótão de irrecuperável memória.

Pedro Pasc


Os suportes de Pedro Pascoinho acusam, em coerência com o clima plástico que os anima, uma tendência para a originalidade, para o suavemente inacabado, para a margem difusa, para o uso sofisticado de processos simples mas cheios de requinte.

O painel de azulejos do Instituto do Emprego de Coimbra, de Eduardo Nery, na Avenida Fernão de Magalhães, em Coimbra

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Aspecto do painel de azulejo “Jardim da Manga”

Este comentário foi publicado no dia 26 de Fevereiro de 2010 no Diário de Coimbra

Depois de ter falado em datas muito diferentes e distanciadas do painel de azulejos do Montepio Geral e do trabalho de cromatismo urbano do ex-Edifício dos CTT, faltam-me ainda mencionar duas outras obras da concepção de Eduardo Nery que se encontram nesta cidade e que podem ser observadas em espaços públicos. Uma encontra-se no Instituto do Emprego e Formação Profissional, no nº 660 da Avenida Fernão de Magalhães e outra num dos corredores do Centro Cirúrgico de Coimbra, na Espadaneira, ao lado direito da estrada que conduz a Taveiro.
É a primeira destas duas que vai ser aqui hoje brevemente analisada no que tem de plástico-simbólico e no que significa para um espaço público ser prendado com um elemento de valorização patrimonial e artístico, usando para mais essa (dita) singela e muito particular técnica das artes decorativas, tida como sendo um dos mais genuínos exemplos do génio criativo da alma lusa. Mais uma vez se deve a sua criação à centralidade lisboeta pois deriva de uma opção de encomenda tomada na capital pela direcção do então designado Instituto de Emprego que no decurso dos anos oitenta tinha alguma dinâmica interna quanto a aquisições directas para a decoração de espaços onde instalava os seus serviços. Aliás, foi também uma empresa de Lisboa que foi encarregada da execução do painel e da sua aplicação no local em 1988, a Azularte, Lda.
Tem a particularidade de conter uma alusão ao património arquitectónico da cidade de Coimbra, mas essa escolha deve-se à sensibilidade do artista e às suas memórias e não a qualquer outra razão específica.
É um trabalho que tem como suporte os mesmos azulejos de chacota grossa que fazem o regalo de espaços nobres e selectos mas que oferece para além disso a sugestão do fantástico e do inesperado: o familiar mas esteticamente requintado templete do Jardim da Manga arranca para o céu como se fosse uma nave espacial, quebrando a serenidade monástica do convento de Santa Cruz em cujo segredo tantos anos viveu, rodeado de silêncio e de pensamento. É uma ruptura feita a partir da naturalidade tranquila dum painel à maneira do Sec. XVII, conformado com o seu branco e azul e com a sua perspectiva renascentista, em cujo ponto de fuga se opera a “explosão” dinamizadora da figura que ascende aos céus animada de velocidade e evidenciada pela cor amarelo laranja. As próprias peças cerâmicas que no motivo inferior se encontram ordenadas em malha vertical/horizontal, ganham um dinamismo que passa pela meia esquadria e atinge a inovação de deixar vazios certos sectores do painel que revelam a própria base do reboco de suporte, com azulejos aplicados “ao acaso”, animados pelo acidente explosivo da inesperada “nave do futuro”…
A transformação que a realidade presente veio trazer ao ambiente claustral de antanho não é excedida em muito pela sugestão da nave espacial já mencionada. Para os frades que ali leram e pausadamente meditaram, a passagem de milhares de automóveis e autocarros, o rio de gente e o ruído, pouca diferença fariam da explosão de uma nave que os derrubasse de espanto e de antecipação mágica. Aqui, como em muitas situações da vida, a realidade equivale a própria ficção e rouba lugar ao sentimento de surpresa ou à capacidade de ilusão que resta no nosso espírito.
Esforçando-se por alcançar alguma coesão com o espaço envolvente, Eduardo Nery insistiu em alargar a sua intervenção à barra inferior e aos pilares de suporte, para criar uma complementaridade com a arquitectura do local e para que o tema do painel não parecesse tão despojadamente casual como em princípio poderia ficar se lhe faltasse esse remate ambiental.

O painel de azulejos do Instituto do Emprego de Coimbra, de Eduardo Nery, na Avenida Fernão de Magalhães, em CoimbraO mesmo painel numa visão mais geral. Notar a barra inferior que se prolonga mais para a esquerda e a cobertura azulezar do pilar situado ao lado direito da imagem, referidos no texto acima

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Fotografias de J.M.F. Coutinho na Livraria Almedina estádio, em Coimbra

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lagrima

 

Publicado hoje, 15 de Janeiro de 2010, no Diário de Coimbra

Fazer fotografia pode ser um simples passatempo ou uma vaga vocação de registo de imagens marcada pelo sentido da contingência do tempo, das coisas ou dos seres.
Há, contudo, um reduzido número de pessoas que fazem fotografia como um pintor pinta, como um actor de teatro representa ou como um poeta constrói os seus poemas. Ou seja, para sobreviver. Para manter com a realidade e toda a complexidade de que ela se reveste uma ligação mais estreita, essencial e expressiva; uma tentativa de equilíbrio de forças que nos restitua aquele sentimento indispensável de pertença, de domínio, de entendimento das coisas.
Registar as imagens, por conseguinte, como tentativa de materializar impressões que merecem sobreviver e que jamais “aconteceriam” para além do seu segredo mágico, salvas da infinitude das coisas desconhecidas pelo privilégio do olhar.
O fotógrafo torna-se pois intérprete e tradutor de uma coisa imponderável, diferente e destacada do próprio objecto da imagem em si, uma transcendência nova, uma criação, em suma.
J.M.F. Coutinho é um fotógrafo que se situa exactamente nesse ponto de vista, tendo além disso o hábito de querer arrastar consigo uma quantidade de outros artistas, na senda de uma procura sem fim. Serve-se de todos os meios das modernas tecnologias ao seu alcance para fazer confluir inventores de imagens, praticando uma militância de generosidades que se torna rara na voragem de indiferenças de um quotidiano tantas vezes vencido pelo turbilhão das imagens sem sentido, pela torrente invasora do excesso televisivo, publicitário, propagandístico.
Olhando um conjunto de fotografias suas organizo o que vejo entre dois extremos tipológicos. Num deles amostras da realidade, objectos e seres nomeáveis, marcados entretanto por uma economia expressiva que os coloca muito perto do silêncio, da solidão e duma preocupação de mostrar apenas o essencial. No outro extremo a componente documental vai-se rarefazendo, dando lugar a uma visualidade pura, transformando o objecto ou a porção captada do real em exploração de texturas compactas ou densidades subtis. A luz, a água, a transparência ou a natureza palpável de objectos ainda perfeitamente identificáveis, por vezes, transformam-se em “acontecimentos” autónomos que não ouso classificar de abstractos, mas que independem largamente da sua matriz visual primária. Uma tal procura torna essencial o visível conferindo-lhe uma dimensão filosófica pela austeridade dos meios, sem lhe furtar a componente poética pela carga de “equívocos” ou de mistério que consigo transporta. No meu entender a sólida substância de que se constroem muitos dos trabalhos de J.M.F.Coutinho torna fácil memorizá-los. Tomo por isso a liberdade de os purificar da sua categoria de objectos legendados, ou legendáveis. E ao folhear as suas imagens, quanto mais olho, mais vejo. É este, penso eu, a função primordial da diligência de qualquer artista de artes visuais: dar a “ver”, de forma amplificante, uma certa captação das infinitas faces do mundo. Amplificante, no sentido em que daquela única imagem podemos extrair muitas imagens, ou muitas percepções do mesmo objecto retratado. O objecto ganhou vida própria, transformou-se numa entidade autónoma face ao próprio motivo e à sua circunstância.

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Fotografias de J.M.F. Coutinho na galeria da Livraria Almedina, ao estádio Municipal da cidade de Coimbra.

No Edifício Chiado “ciranda de muitas luas” de Roberto Chichorro

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Publicado no Diário de Coimbra de 3 de Novembro de 2009

Em mais uma realização em torno da ideia da pintura como visão do mundo oferece-nos presentemente a Galeria de Exposições Temporárias do Museu Municipal da Cidade de Coimbra uma “ciranda de muitas luas” construída com obras de vária natureza da autoria de Roberto Chichorro.
A mostra evidencia uma cuidadosa generosidade expositiva, com reminiscências do trabalho do artista em obras de certa antiguidade, mescladas com outras de mais recente produção e com exemplares de várias modalidades de expressão artística.
Diz-me o dicionário que uma ciranda é uma joeira ou uma espécie de dança popular. Mais me diz que cirandar é “andar de um lado para o outro nas lides da casa”.
Tenho dificuldade em fixar-me em cada uma destas opções, embora o nome por si mesmo, ainda que distante de qualquer significado, já tenha seu movimento garboso e uma graciosidade inexplicável.
As muitas luas coroam a totalidade de sentidos com uma solenidade nocturna que está bem expressa num abundante número de obras de Chichorro que – não obstante – nos oferece uma pintura feliz.
Dizer pintura feliz não é dizer pouco, embora as categorizações habituais não se conformem com uma tão grande simplicidade classificativa e prefiram afirmar coisas mais substanciais de nível “onírico e surreal” ou envolvendo a sugestão do “cubismo pictórico”.
Eu dou-me por satisfeito chamando esta arte pelo nome, dizendo que é feliz, poética, aromática e suavemente nocturna.
Se a chamo nocturna, acrescento que é feérica, vibrante de cores, e as luas – de facto – transportam consigo a carícia morna de noites cálidas de odores acentuados.
As figuras presentes convivem frequentemente com animais até ao ponto de se resolverem em metamorfismos como ressonância de energias secretas e mitologias remotas. Porém, além da sugestão simbólica da música há como que uma gravidade nostálgica em todos os presentes, um silêncio contemplativo de inseguras expectativas.
Abstenho-me quanto à familiaridade anunciada entre esta pintura e a de Chagall, e também não me perco em considerações complexas de africanidade relativa naquilo que toda a pintura pode ter de localmente imagético ou de apelo universalizante.
A pintura de Roberto Chichorro, apesar de fortemente intuitiva, solta, impregnada do gesto livre, construída à base de manchas que entre si travam um diálogo permanente de correspondências e contaminações tonais, parece-me predominantemente cerebral. Cada figura ou cada grupo de figuras se apoia ou é enquadrado “cenograficamente” por elementos estruturantes de raiz geométrica, mesmo que muitas vezes habilmente atenuado o seu efeito mediante a liberdade do tratamento cromático e com o apoio de variado leque de soluções de complemento gráfico.
A variedade de espaços assim dinamicamente modulados é intuitivamente apropriado pelo pintor das mais variadas formas, entregue a uma evidente espontaneidade de execução e ao notório prazer de acrescentar tonalidades contrastantes, gestualismos variados, tracejados, referenciais de registo caligráfico, etc.
Por detrás de algumas figuras ergue-se a estruturação geometrizada de painéis ou tapeçarias numa simpatiquíssima alusão às artes cerâmicas, de que o artista não deixa de dar testemunho em obra feita noutro sector da sua produção, que se alarga em exemplos eloquentes de imaginário escultórico pleno do referencial surrealista.

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A não perder, obras artísticas de Roberto Chichorro no Museu Municipal de Coimbra, Edifício Chiado, até 21 de Novembro.

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“Margens do mundo” de Alcina Almeida na Casa Municipal da Cultura

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“Margens do mundo” de Alcina Almeida na Casa Municipal da Cultura
Publicado no Diário de Coimbra de 27 de Abril de 2009

Repasso pelas palavras que escrevi em Dezembro de 2005 a respeito da exposição que Alcina Almeida efectuou na mesma Casa Municipal da Cultura onde se inaugurou, no passado dia 17 de Março, uma nova exposição sua. Poderia repetir quase tudo o que disse nessa ocasião não só por ser verdade, mas também por se recolocarem algumas das razões então apresentadas quer quanto à atitude da artista enquanto pessoa, quer no que toca ao conjunto de obras apresentadas.
Uma diferença essencial convém entretanto assinalar: se nessa primeira exposição nos apresentara um significativo conjunto de trabalhos de rara solidez plástica e de invulgar concentração emocional, ousa agora empreender o que não custa designar como uma exposição “de juventude”, ou seja, a apresentação de uma variedade de novos caminhos correspondente à diversidade de explorações entretanto efectuadas, marcadas por equivalente sentido de responsabilidade e amadurecimento estético.
A pintura abstracta, seja qual for o grau de informalismo respectivo ou as possíveis conotações de lirismo que consigo transporte, é agora um território definitivamente assimilado pela generalidade dos frequentadores de museus e galerias. Já ninguém se desconcerta perante linhas, pontos e planos ordenados de forma mais ou menos arbitrária de acordo com as visões e percepções da intuição plástica do artista, cujo olhar está liberto de todos os escolhos e turbulências do universo das coisas nomeáveis.
O suporte vazio acolhe o trabalho criativo da forma mais descomprometidamente livre, o que não significa que entre matéria e entendimento, entre gesto e olhar, não tenha de estabelecer-se uma elaborada teia de compromissos que pressupõem o método, o esforço coerente e a adopção de códigos estáveis.
Esta ordem de razões encontra-se suficientemente exemplificada mediante alguns dos conjuntos de obras que Alcina Almeida nos apresenta, pelo sentido de projecto que os anima e pela coesão plástica que evidenciam.
Sobre as suas telas desenrola-se um desfile incessante de novos seres ou entidades significativas, organicamente dispostas em confrontações dinâmicas, de peso, espessura e densidades variáveis, que desafiam leituras sucessivamente diversas e percepções capazes de se alterarem de acordo com a disponibilidade e a predisposição de quem as observe.
O gesto, o tempo e os acasos da execução encontram-se documentados aqui e ali, por vezes de modo evidente e outras quase imperceptivelmente referenciados. Nalguns casos pode identificar-se uma atitude de quem ousou conduzir o seu trabalho até às últimas consequências, noutros se poderá dizer que a pintora se ficou pelo que era essencial, deixando a cargo do observador a tarefa de adivinhar o que não falta porque se encontra determinadamente subentendido.
No remate das impressões que aqui resumo a respeito do trabalho da artista, tomo a liberdade de citar uma frase que escrevi no já citado texto de há quatro anos: Alcina Almeida é profundamente pessoa ao mesmo tempo que se revela a si mesma como talentosa artista, cujo pensamento flui em cada gesto, exprimindo-se com elegância e gosto em praticamente tudo o que faz.


A respeito dos públicos que continuam a frequentar salas de exposições observar-se uma instabilidade acentuada do olhar, uma pressa – ou uma incapacidade – de mergulhar de forma decidida na espessura significativa das obras expostas.
A elementaridade do “gosto, não gosto” fica sempre aquém duma capacidade de leitura sustentada, da coragem duma decifração mais íntima, pertinente e espiritualmente produtiva de explorações autónomas e criativas.
Quanto à disponibilidade do corpo social para apoiar e estimular a criatividade do espírito cultural e artístico, então, nem é bom falar. O alheamento demissionário é de regra.
As altas dignidades de outros tempos guardaram para nós o espólio de uma atenção que, se não era distintamente intelectualizada, teve a virtude de conservar o território revisitável de requintes de várias épocas e do seu sentimento lúcido.
A desaceleração no interesse pela obra de arte como testemunho de valores produtivos não denuncia uma simples alternância de propósitos culturais, ao que julgo. O que está em causa é uma autêntica perturbação sistemática dos valores da duração espiritual.

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O ex-edifício dos CTT, os males que nunca vêm só e a cor que é alma de cidades

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A cor das cidades não é um factor casual e despiciendo do seu carácter e do seu espírito. Os edifícios que nelas existem podem ser mais ou menos opulentos, os locais onde se encontram e por onde circulam os seus habitantes podem ter um cunho mais ou menos notável, e são o seu corpo.
A cor duma cidade, como a sua luz, os seus odores, a música do falar dos que nela habitam são, contudo, a sua alma, a parte mais subtil do seu património sensível.
Uma das formas mais perversas de desacautelar a imagem de qualquer coisa, seja pessoa, casa ou cidade, é deixar que tudo se vá gradualmente desqualificando, vá decaindo até ao ponto em que já não vale a pena pegar em nada porque tudo se encontra sem remédio.
As recentes notícias a respeito do que foi o edifício dos CTT na Avenida Fernão de Magalhães são o pretexto para falar desse aspecto das coisas e para abordar também alguns aspectos anti-estéticos daquela poluidíssima artéria da cidade de Coimbra.
Tenho comigo a gravação de uma conversa que mantive em 2004 com o pintor Eduardo Nery, autor da cor exterior desse edifício traçado nos anos oitenta pelo arquitecto José Oliva Martins de Carvalho, durante a qual abordou com detalhe as suas obras existentes nesta cidade e, bem assim, os critérios subjacentes a essa encomenda que, diga-se de passagem, não lhe foi feita por entidade aqui sediada mas sim pelos serviços centrais dos CTT (tudo ou quase tudo entre nós tem de “passar” por Lisboa, como é sabido).
Possuo também o volumoso catálogo duma importante exposição de Nery realizada em 1997 na Fundação Calouste Gulbenkian que tratou de aspectos da sua arte pública. Na página 207 pode ver-se uma bela foto a cores do referido edifício, cujo triste destino visual tenho acompanhado.
É neste ponto que me ocorre concluir que um mal nunca vem só, dado que as inquietações pelas quais passa um dos mais notáveis edifícios da baixa de Coimbra não se limitam aos problemas intrincados de que falam os jornais. Comparando os diversos aspectos de desvirtuamento que evidencia na actualidade e a fotografia que foi tirada em 1985, por altura da sua construção, mete dó, para dizer o mínimo.
Quem queira observar a baixa desta cidade com um olhar renovado e comece pela Avenida Fernão de Magalhães, terá no ex-edifício dos CTT um lamentável exemplo de como as coisas não devem ser feitas, deixando-se acontecer o pior possível a um edifício que teve uma notável nobreza inicial. A sua fachada principal foi sendo alterada, quebrados e eliminados alguns dos elementos rítmicos de melhor efeito e, da pintura inicial e dos critérios estéticos sob os quais foi idealizada, não restam nem os mais pequenos vestígios.
Para compor o ramalhete de alterações, uma escada metálica exterior de cores militares e conspícuas condutas de ar descaracterizam totalmente a fachada lateral do edifício. O alinhado harmonioso e dinâmico das suas fachadas principais em betão possuía acentuações cromáticas de óptimo efeito, com pontos fortes na torre lateral que confina com o prédio vizinho e na que flanqueia à esquina a entrada principal. O laranja forte era distribuído em camadas horizontais de cima para baixo em tons cada vez mais claros, numa época em que os arquitectos e o próprio gosto dos cidadãos não estava ainda adaptado a cores intensas nas edificações urbanas.
O colorido do edifício suscitou alguma polémica na altura em que foi inaugurado. Penso que a instituição proprietária (sediada em Lisboa…) não terá desenvolvido o esforço necessário ao esclarecimento dum projecto plástico que era inovador, com efeito, mas que tinha por detrás de si uma sólida justificação teórico-crítica e que deveria ter sido mantido no seu melhor para benefício dos seus detentores e da cidade em geral. Não houve coragem, como a própria realidade documenta, para fazer isso.
Cruzar a Avenida Fernão de Magalhães de uma ponta à outra é uma longo trajecto para efectuar com um olhar distraído e ausente, para que não morramos de susto, tentando respirar o mínimo possível para não prejudicar os pulmões. O ex-edifício dos Correios serve para demonstrar que um mal nunca vem só e que também foi derrotado pela insidiosa fumarada dos milhões de automóveis e pelo desleixo negligente de quem deveria ter tomado conta dele.Edif-CTT


Mário Branco expõe em Coimbra, no Museu Municipal, Edifício Chiado

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Este comentário foi publicado no Diário de Coimbra de 30 de Setembro de 2008

Esteja atento o cidadão interessado e não desista de ver. Os mesmos artistas que desde há milénios procuram comunicar com o presente futuro das sensibilidades vivas permanecem activos, mau grado a fome aparente de verdade e de paixões autênticas. O fantasma das culturas burocráticas permanece e alimenta-se de espectáculo, mas aqueles que teimam encontrar, sempre acharão. Mário Branco mostra um belíssimo conjunto de obras de pintura na galeria de exposições temporárias do Museu Municipal, no Edifício Chiado, outrora centralidade única de centralidades agora repartidas e é uma presença que vem deliberadamente ao nosso encontro. Os trabalhos que nos mostra evidenciam bem uma metamorfose positiva das linguagens da contemporaneidade, neste caso coerentemente associada à corrente das artes próximas do homem e da sua essência comunicativa.
Nada de chapadas de tinta aleatoriamente garatujadas por cima de enormes telas, ou exercícios de neo-qualquer-coisa confiantes na perplexidade de contemplantes anulados pelo acetinado de “meios” que dispensam completamente a “mensagem”.
Mário Branco, pelo contrário, aborda sem complexos uma ampla diversidade de condimentos expressivos não fugindo à variedade de formatos que oscilam entre o delicadamente intimista e a alargada dimensão de alguns dos seus vórtices de impressionante efeito. As variadas caligrafias que põe em prática vão desde a administração mecanicista da matéria da pintura em escorrências, sobreposições e arrastamentos, etc., até à execução a pincel de “mimos” de expressão cuidada, sem receio de evidenciar amor e preceitos técnicos. As suas composições abrangem uma variedade de formatos sugestivos do “retrato” e da “paisagem” mas, na maioria dos casos, revelam estruturações impossíveis de designar por palavras. Como qualquer artista em liberdade não foge à diversidade. Se evidencia coerência plástica, porém, não nos reduz à monotonia de estar a ver sempre “o mesmo quadro”, apelando à decifração das fases construtivas e desafiando-nos a adivinhar o itinerário de gestos felizmente complementares. As suas massas cromáticas tanto se afirmam por empastamentos convictos ou cores firmes, como em lavados e transparências subtis, aqui e ali acentuados por tracejamentos a pastel ou carvão e projecções de tinta diluída que surgem onde é oportuno e não apenas “onde calha”. A paleta de cores assenta numa semântica serenamente nostálgica, embora sejam abundantes os pontos de exclamação, as acentuações e – em casos precisos – a surpresa de uma excepção. Visite exposições de pintura, caro leitor. Vale bem a pena e ensina os olhos a ver. Mas não vire o rosto para o lado à primeira impressão. Persista um pouco e tente mergulhar lentamente na arquitectura dos sinais. Assim se aprende a ler o pensamento e se lava a mente da pressa confusa das imagens sem alma.

Nota de remate:

Consequência das restrições cumulativas a cujo cerco o cidadão se vai habituando (e que pesam fatalmente pela negativa) o pequeno catálogo anteriormente oferecido equivale agora aproximadamente ao preço de quatro litros de gasolina. Sinal dos tempos em que o espavento das derrapagens dos biliões se tornou uma praga “paulatinamente” ignorada por motivos de “conformação”.
Mário Branco no Edifício Chiado, até 25 de Outubro de 2008.

O “Jardim da Água” nas Caldas da Rainha e a obra artística de Ferreira da Silva

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painel de azulejos, IPO/Coimbra
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Quem primeiro me falou, já há alguns anos, acerca do artista Ferreira da Silva, foram os profissionais de azulejaria da região de Alcobaça, Porto de Mós e Caldas da Rainha. Trata-se de uma figura por todos conhecida, rodeando o seu nome uma aura de elevado respeito e consideração pela sua obra.
Um dia, o meu amigo Alcino Vala, do Juncal de Porto de Mós, que exerce o mesmo ofício que os azulejadores de fins do sec. XVIII que ali produziram, entre muitos outros, os painéis de azulejos que estão na sala dos Reis no Mosteiro de Alcobaça, levou-me propositadamente até ao Hotel da Quinta do Pinheiro, no Valado dos Frades, onde há um significativo conjunto de trabalhos de autoria de Ferreira da Silva, às quais novas encomendas se vieram juntar recentemente, numa louvável atitude de enriquecimento patrimonial daquela instituição.
Tive mais tarde a ocasião de publicar no Diário de Coimbra um comentário detalhado a respeito do notável conjunto de painéis seus que se encontram no IPO em Coimbra, quer à entrada, quer no seu interior.
Fora entretanto às Caldas da Rainha, para me encontrar com o Mestre, o que me deu a grata oportunidade de conhecer, além de outras intervenções suas de valiosa importância, o empreendimento público que ali desenvolve, com arrastadas intermitências, por iniciativa do Centro Hospitalar da cidade e que tem a designação de “Jardim da Água”.
É muito ingrato para mim falar num espaço tão reduzido a respeito do labor deste notabilíssimo artista detentor, além do mais, de uma personalidade forte e distanciada de toda a trivialidade, do exibicionismo fácil e da reverência conveniente.
O artista Ferreira da Silva é conhecido por um grande número de intelectuais e artistas do grande mundo, com os quais ombreou em talento e representação cultural. A personalidade que o caracteriza, contudo, fez dele um homem enraizado no labor oficinal que sempre tem desenvolvido com a maior eficácia criativa e infatigável persistência experimental. Detentor de uma cultura universalista, ecológica e poética, de grande independência, aprecia os espaços livres, o mundo das origens, os princípios e a liberdade inicial em clima que gosta de designar como “saudade do arqueo-sítio”.
São numerosas as obras que foi produzindo no domínio das artes do fogo, estando espalhadas pelo mundo uma grande quantidade delas, na posse de notáveis coleccionadores.

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O “Jardim da Água”, Caldas da Rainha

O Jardim da Água é um espaço cénico e um percurso pedonal que tira partido de um conjunto de materiais pré-existentes e de estruturas de encaminhamento de águas termais, aos quais se acrescentam multifacetados recursos de originalidade e um sentimento criativo sem peias.
É uma obra dominada por um empolgante sentimento de utopia, destinada a fornecer um permanente espectáculo de águas rumorejantes, circulando através de planos diversificados, animado dos mais diversos efeitos de cor e luz.
A estrutura geral de suporte associa à solidez do betão uma libérrima multiplicidade de planos com intenso dinamismo escultórico, sobre os quais a cerâmica, o vidro, o ferro e outros materiais ganham significados novos, amplificantes do seu usual valor.
Faço os mais sinceros votos para que as contradições que se adivinham por detrás da hesitante marcha dos acontecimentos não demorem a conclusão de uma iniciativa sem qualquer paralelo em meio urbano e de invulgar expressão estética, que tanto tem a ver com o legado histórico e cultural da cidade em que se encontra.

Este texto foi publicado na Revista de Informação do SBC, de Janeiro/Fevereiro de 2008

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