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O painel de azulejos do Instituto do Emprego de Coimbra, de Eduardo Nery, na Avenida Fernão de Magalhães, em Coimbra

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Aspecto do painel de azulejo “Jardim da Manga”

Este comentário foi publicado no dia 26 de Fevereiro de 2010 no Diário de Coimbra

Depois de ter falado em datas muito diferentes e distanciadas do painel de azulejos do Montepio Geral e do trabalho de cromatismo urbano do ex-Edifício dos CTT, faltam-me ainda mencionar duas outras obras da concepção de Eduardo Nery que se encontram nesta cidade e que podem ser observadas em espaços públicos. Uma encontra-se no Instituto do Emprego e Formação Profissional, no nº 660 da Avenida Fernão de Magalhães e outra num dos corredores do Centro Cirúrgico de Coimbra, na Espadaneira, ao lado direito da estrada que conduz a Taveiro.
É a primeira destas duas que vai ser aqui hoje brevemente analisada no que tem de plástico-simbólico e no que significa para um espaço público ser prendado com um elemento de valorização patrimonial e artístico, usando para mais essa (dita) singela e muito particular técnica das artes decorativas, tida como sendo um dos mais genuínos exemplos do génio criativo da alma lusa. Mais uma vez se deve a sua criação à centralidade lisboeta pois deriva de uma opção de encomenda tomada na capital pela direcção do então designado Instituto de Emprego que no decurso dos anos oitenta tinha alguma dinâmica interna quanto a aquisições directas para a decoração de espaços onde instalava os seus serviços. Aliás, foi também uma empresa de Lisboa que foi encarregada da execução do painel e da sua aplicação no local em 1988, a Azularte, Lda.
Tem a particularidade de conter uma alusão ao património arquitectónico da cidade de Coimbra, mas essa escolha deve-se à sensibilidade do artista e às suas memórias e não a qualquer outra razão específica.
É um trabalho que tem como suporte os mesmos azulejos de chacota grossa que fazem o regalo de espaços nobres e selectos mas que oferece para além disso a sugestão do fantástico e do inesperado: o familiar mas esteticamente requintado templete do Jardim da Manga arranca para o céu como se fosse uma nave espacial, quebrando a serenidade monástica do convento de Santa Cruz em cujo segredo tantos anos viveu, rodeado de silêncio e de pensamento. É uma ruptura feita a partir da naturalidade tranquila dum painel à maneira do Sec. XVII, conformado com o seu branco e azul e com a sua perspectiva renascentista, em cujo ponto de fuga se opera a “explosão” dinamizadora da figura que ascende aos céus animada de velocidade e evidenciada pela cor amarelo laranja. As próprias peças cerâmicas que no motivo inferior se encontram ordenadas em malha vertical/horizontal, ganham um dinamismo que passa pela meia esquadria e atinge a inovação de deixar vazios certos sectores do painel que revelam a própria base do reboco de suporte, com azulejos aplicados “ao acaso”, animados pelo acidente explosivo da inesperada “nave do futuro”…
A transformação que a realidade presente veio trazer ao ambiente claustral de antanho não é excedida em muito pela sugestão da nave espacial já mencionada. Para os frades que ali leram e pausadamente meditaram, a passagem de milhares de automóveis e autocarros, o rio de gente e o ruído, pouca diferença fariam da explosão de uma nave que os derrubasse de espanto e de antecipação mágica. Aqui, como em muitas situações da vida, a realidade equivale a própria ficção e rouba lugar ao sentimento de surpresa ou à capacidade de ilusão que resta no nosso espírito.
Esforçando-se por alcançar alguma coesão com o espaço envolvente, Eduardo Nery insistiu em alargar a sua intervenção à barra inferior e aos pilares de suporte, para criar uma complementaridade com a arquitectura do local e para que o tema do painel não parecesse tão despojadamente casual como em princípio poderia ficar se lhe faltasse esse remate ambiental.

O painel de azulejos do Instituto do Emprego de Coimbra, de Eduardo Nery, na Avenida Fernão de Magalhães, em CoimbraO mesmo painel numa visão mais geral. Notar a barra inferior que se prolonga mais para a esquerda e a cobertura azulezar do pilar situado ao lado direito da imagem, referidos no texto acima

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O ex-edifício dos CTT, os males que nunca vêm só e a cor que é alma de cidades

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A cor das cidades não é um factor casual e despiciendo do seu carácter e do seu espírito. Os edifícios que nelas existem podem ser mais ou menos opulentos, os locais onde se encontram e por onde circulam os seus habitantes podem ter um cunho mais ou menos notável, e são o seu corpo.
A cor duma cidade, como a sua luz, os seus odores, a música do falar dos que nela habitam são, contudo, a sua alma, a parte mais subtil do seu património sensível.
Uma das formas mais perversas de desacautelar a imagem de qualquer coisa, seja pessoa, casa ou cidade, é deixar que tudo se vá gradualmente desqualificando, vá decaindo até ao ponto em que já não vale a pena pegar em nada porque tudo se encontra sem remédio.
As recentes notícias a respeito do que foi o edifício dos CTT na Avenida Fernão de Magalhães são o pretexto para falar desse aspecto das coisas e para abordar também alguns aspectos anti-estéticos daquela poluidíssima artéria da cidade de Coimbra.
Tenho comigo a gravação de uma conversa que mantive em 2004 com o pintor Eduardo Nery, autor da cor exterior desse edifício traçado nos anos oitenta pelo arquitecto José Oliva Martins de Carvalho, durante a qual abordou com detalhe as suas obras existentes nesta cidade e, bem assim, os critérios subjacentes a essa encomenda que, diga-se de passagem, não lhe foi feita por entidade aqui sediada mas sim pelos serviços centrais dos CTT (tudo ou quase tudo entre nós tem de “passar” por Lisboa, como é sabido).
Possuo também o volumoso catálogo duma importante exposição de Nery realizada em 1997 na Fundação Calouste Gulbenkian que tratou de aspectos da sua arte pública. Na página 207 pode ver-se uma bela foto a cores do referido edifício, cujo triste destino visual tenho acompanhado.
É neste ponto que me ocorre concluir que um mal nunca vem só, dado que as inquietações pelas quais passa um dos mais notáveis edifícios da baixa de Coimbra não se limitam aos problemas intrincados de que falam os jornais. Comparando os diversos aspectos de desvirtuamento que evidencia na actualidade e a fotografia que foi tirada em 1985, por altura da sua construção, mete dó, para dizer o mínimo.
Quem queira observar a baixa desta cidade com um olhar renovado e comece pela Avenida Fernão de Magalhães, terá no ex-edifício dos CTT um lamentável exemplo de como as coisas não devem ser feitas, deixando-se acontecer o pior possível a um edifício que teve uma notável nobreza inicial. A sua fachada principal foi sendo alterada, quebrados e eliminados alguns dos elementos rítmicos de melhor efeito e, da pintura inicial e dos critérios estéticos sob os quais foi idealizada, não restam nem os mais pequenos vestígios.
Para compor o ramalhete de alterações, uma escada metálica exterior de cores militares e conspícuas condutas de ar descaracterizam totalmente a fachada lateral do edifício. O alinhado harmonioso e dinâmico das suas fachadas principais em betão possuía acentuações cromáticas de óptimo efeito, com pontos fortes na torre lateral que confina com o prédio vizinho e na que flanqueia à esquina a entrada principal. O laranja forte era distribuído em camadas horizontais de cima para baixo em tons cada vez mais claros, numa época em que os arquitectos e o próprio gosto dos cidadãos não estava ainda adaptado a cores intensas nas edificações urbanas.
O colorido do edifício suscitou alguma polémica na altura em que foi inaugurado. Penso que a instituição proprietária (sediada em Lisboa…) não terá desenvolvido o esforço necessário ao esclarecimento dum projecto plástico que era inovador, com efeito, mas que tinha por detrás de si uma sólida justificação teórico-crítica e que deveria ter sido mantido no seu melhor para benefício dos seus detentores e da cidade em geral. Não houve coragem, como a própria realidade documenta, para fazer isso.
Cruzar a Avenida Fernão de Magalhães de uma ponta à outra é uma longo trajecto para efectuar com um olhar distraído e ausente, para que não morramos de susto, tentando respirar o mínimo possível para não prejudicar os pulmões. O ex-edifício dos Correios serve para demonstrar que um mal nunca vem só e que também foi derrotado pela insidiosa fumarada dos milhões de automóveis e pelo desleixo negligente de quem deveria ter tomado conta dele.Edif-CTT