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J.M.F. Coutinho e a sua obra fotográfica

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infinito


Conheço de J.M.F. Coutinho, isto é José Manuel Ferreira Coutinho, artista fotógrafo, por um variado conjunto de textos escritos que divulga na internet a respeito do seu percurso pessoal e ficheiros gráficos anexos, além de uma variada presença noutros sites especializados em fotografia.
Tive ainda acesso a um volumoso pacote de originais seus, o que alargou bastante a memória que tinha da exposição que fez no edifício Chiado, as “Filosografias”, e melhor me lembraria se para esta mesma mostra tivesse sido feito um catálogo, como é hábito na instituição relativamente à generalidade dos artistas que ali expõem e que se justificaria plenamente pelo mérito das obras expostas.
Vou deixar de lado o evidente prazer (ou necessidade) que sente em titular os seus trabalhos, depois mesmo de ter lido a defesa que faz dessa atitude. Lembro-me agora que também eu coloco títulos aos meus trabalhos de pintura. Com a diferença que os títulos que coloco aos meus trabalhos “nada” têm a ver com o conteúdo plástico dos mesmos. Ou seja, fogem deliberadamente a qualquer coisa essencialmente inerente à sua matéria plástica. Não confluem. São apenas um eco que, numa parede oblíqua, atira para outras paragens a multiplicidade das leituras possíveis. Ficam por isso ligados apenas à sua “matéria crítica”. No meu entender a sólida substância de que se constroem muitos dos trabalhos de J.M.F.Coutinho torna fácil memorizá-los. Tomo por isso a liberdade de os purificar da sua categoria de objectos legendados, ou legendáveis. Tenho uma das suas vinte e cinco fotografias aqui ao meu lado, e tenho olhado para ela à medida que venho escrevendo este texto e cada vez me sinto mais capaz de “vê-la” por dentro da sua complexidade, da sua espessura significativa. Como tenho as vinte e cinco fotografias sobrepostas faço agora um outro exercício de observação: Substituo a primeira das provas observadas por uma outra da série que aqui possuo. E o fenómeno do ganho de legibilidade repete-se a cada mudança de imagem.
Chegando a este ponto da apreciação do trabalho de Coutinho é praticamente supérfluo dizer que se trata dum diligente militante de causas artísticas, envolvido em projectos muito ambiciosos de agremiação cultural, envolvendo muita gente de muitos lugares.
Leio mais uma vez alguns dos seus textos e acho significativa a associação da calma e da serenidade, que usualmente valorizam e caracterizam os seus momentos de captação de imagens fotográficas.
É muito interessante fazer a conotação desta ideia com o conjunto de trabalhos que produz e aprender com isso a associar a atitude de olhar com a capacidade de ver. Encontrar, sobretudo, na pluralidade dos objectos e dos lugares que coloca ao alcance do observador aquela “pico” de tensão, que gosta de chamar “punctum”, à maneira de Roland Barthes, e que de forma tão particular pode ser chamado a referenciar algumas das suas captações.
A tranquilidade observativa, um certo culto do “silêncio”, são de facto condimentos particulares do seu modo de ver. Esse princípio ordenador conduz-nos a uma outra dimensão das suas observações: a tendência de sintetizar, de confinar ao essencial os meios de que se serve sem que eles percam a opulência expressiva. Uma imagem pode ser reduzida ao seu essencial, pode não depender de efeitos documentais e de focagem, pode “transgredir” até e não perder a capacidade de nos esclarecer, dando-nos prazer e provocando-nos emoção, ainda conforme Barthes. Alguma arte fotográfica parece conduzir esse princípio de economia de sinais a um despojamento tão extremo que subtrai inteiramente ao observador o motivo de olhar para ela. J.M.F. Coutinho é um homem delicado e não quer seguramente deixar-nos de “olhar vazio”. Algumas das suas sínteses mais concentradas são, aliás, aquelas que mais emoções nos comunicam. Umas vezes através da alusão poético-simbólica, outras vezes mediante o reforço da plasticidade dos elementos colhidos, por uma concentração de valores significativos de encontro à sua própria saturação.

segredo

No Edifício Chiado, em Coimbra, pintura de J. M. Bustorff (Ícaro espera por vós…)

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Ikarus ou homâge à El Greco, 2009 Têmpera a ovo com pigmentos s/ tela 220 x 220 cm


Não estamos em Creta, mas talvez nos encontremos de certa forma no exílio. O Rei Minos veste-se de mil disfarces e o voo de Ícaro perde sustentação despenhando-se sobre um mar de sombras desconhecidas, fragmentando-se em inúteis penas desirmanadas aquilo que foram asas, derretidas pelo sol impiedoso que condena sem remédio a cobiçosa ânsia de altitude, de fortuna e de domínio ilimitado de horizontes. A visita à exposição de Jochen Maria Bustorff desenrola-se toda dentro da sala iluminada e encanta-nos Mozart, a finura da sua musicalidade, da mesma forma que nos confrangem os alucinantes desastres da guerra, a semi-oculta paixão de Cristo pela carnavalesca contradição da desconcertada violência e nos aquece o sangue a cálida presença de mulatas estendidas ao sol, algures perto dos trópicos. Mas Ícaro está lá, à entrada da exposição, como um aviso solene pelo qual passamos quase distraídos, como se nada fosse o espectáculo de um homem despenhando-se na vertical, complicado pelos remotos mistérios do mito e pela teatralidade do drama barroco. Homenagem a El Greco ali se diz mas pergunto eu se não se tratará com efeito de um outro retrato de todos aqueles que olham muito e confusamente procuram organizar na mente a acumulação de sinais, o coro de gritos, a chinfrineira das campanhas.
Olha, aquele tipo vai de cabeça a fundo, dirão alguns. Os mais tímidos poderão pensar, não sem algum temor, será aquilo o retrato de algum de nós? Jochen Maria Bustorff, cujos cruzamentos com a identidade cultural portuguesa conduziram o seu próprio nome à curiosa assimilação simplificante de José Maria Bustorff apresenta aqui uma pintura de tão genuína autenticidade que dispensa as habituais referenciações estilísticas e a enumeração das dignificantes influências matriciais.
Bustorff evidencia a vitalidade própria das grandes culturas e dos homens cujo destino parece conduzi-los a medir forças com o mundo em geral, numa recusa evidente desse relativismo fácil em que se deixa enlear a maioria. Vários continentes, uma apreciável pluralidade de horizontes e uma multidão de alusões complexas fazem parte do seu campo de pesquisas, vivências e questionamentos de natureza universalista, logo, tendentes a ultrapassar toda e qualquer contingência ou limitação atribuível ao “meio”.

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Via Láctea, 2000-2005 Têmpera a ovo com pigmentos s/ tela 300 x 600 cm


A técnica que exibe em formações de vocação monumental é duma enérgica virilidade, rica de todos os equívocos da visão prospectiva da complexidade do mundo em desdobramento de alusões concretas possíveis de decifrar e de esclarecer (ao que o pintor não se escusa numa aberta franqueza de propósitos) não isentas contudo do confortável recheio de paradoxos que tanto estimulam a mente sequiosa do sagrado fascínio da pintura.
A tecnologia de que lança mão é toda fruto de pesquisa e de fabrico próprio (têmpera de ovo, pigmentos de origem remota, resinas autênticas e outros expedientes oficinais genuínos) e os suportes apresentam-se libertos de todos os complexos de loja de artigos de pintura. Aqui e ali eles próprios fazem parte da “pintura” que se deixa ver, denunciando a visão instantânea e o gesto rápido.
Da exposição fazem ainda parte uma notável galeria de retratos de pessoas anónimas, figuras de sociedades ainda distantes, de culturas recheadas de humanidade de que apenas temos a vaga ideia por noticiários geralmente assustadores de realidades traumáticas. São retratos de gente como nós e ajudam a saturar de humanidade este acontecimento artístico, que tem muito que se lhe diga e para o qual todos os meus leitores estão empenhadamente convocados, caso se deixem impressionar pelo que fica dito.

No Edifício Chiado “ciranda de muitas luas” de Roberto Chichorro

 R Chichorro

Publicado no Diário de Coimbra de 3 de Novembro de 2009

Em mais uma realização em torno da ideia da pintura como visão do mundo oferece-nos presentemente a Galeria de Exposições Temporárias do Museu Municipal da Cidade de Coimbra uma “ciranda de muitas luas” construída com obras de vária natureza da autoria de Roberto Chichorro.
A mostra evidencia uma cuidadosa generosidade expositiva, com reminiscências do trabalho do artista em obras de certa antiguidade, mescladas com outras de mais recente produção e com exemplares de várias modalidades de expressão artística.
Diz-me o dicionário que uma ciranda é uma joeira ou uma espécie de dança popular. Mais me diz que cirandar é “andar de um lado para o outro nas lides da casa”.
Tenho dificuldade em fixar-me em cada uma destas opções, embora o nome por si mesmo, ainda que distante de qualquer significado, já tenha seu movimento garboso e uma graciosidade inexplicável.
As muitas luas coroam a totalidade de sentidos com uma solenidade nocturna que está bem expressa num abundante número de obras de Chichorro que – não obstante – nos oferece uma pintura feliz.
Dizer pintura feliz não é dizer pouco, embora as categorizações habituais não se conformem com uma tão grande simplicidade classificativa e prefiram afirmar coisas mais substanciais de nível “onírico e surreal” ou envolvendo a sugestão do “cubismo pictórico”.
Eu dou-me por satisfeito chamando esta arte pelo nome, dizendo que é feliz, poética, aromática e suavemente nocturna.
Se a chamo nocturna, acrescento que é feérica, vibrante de cores, e as luas – de facto – transportam consigo a carícia morna de noites cálidas de odores acentuados.
As figuras presentes convivem frequentemente com animais até ao ponto de se resolverem em metamorfismos como ressonância de energias secretas e mitologias remotas. Porém, além da sugestão simbólica da música há como que uma gravidade nostálgica em todos os presentes, um silêncio contemplativo de inseguras expectativas.
Abstenho-me quanto à familiaridade anunciada entre esta pintura e a de Chagall, e também não me perco em considerações complexas de africanidade relativa naquilo que toda a pintura pode ter de localmente imagético ou de apelo universalizante.
A pintura de Roberto Chichorro, apesar de fortemente intuitiva, solta, impregnada do gesto livre, construída à base de manchas que entre si travam um diálogo permanente de correspondências e contaminações tonais, parece-me predominantemente cerebral. Cada figura ou cada grupo de figuras se apoia ou é enquadrado “cenograficamente” por elementos estruturantes de raiz geométrica, mesmo que muitas vezes habilmente atenuado o seu efeito mediante a liberdade do tratamento cromático e com o apoio de variado leque de soluções de complemento gráfico.
A variedade de espaços assim dinamicamente modulados é intuitivamente apropriado pelo pintor das mais variadas formas, entregue a uma evidente espontaneidade de execução e ao notório prazer de acrescentar tonalidades contrastantes, gestualismos variados, tracejados, referenciais de registo caligráfico, etc.
Por detrás de algumas figuras ergue-se a estruturação geometrizada de painéis ou tapeçarias numa simpatiquíssima alusão às artes cerâmicas, de que o artista não deixa de dar testemunho em obra feita noutro sector da sua produção, que se alarga em exemplos eloquentes de imaginário escultórico pleno do referencial surrealista.

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A não perder, obras artísticas de Roberto Chichorro no Museu Municipal de Coimbra, Edifício Chiado, até 21 de Novembro.

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Mário Branco expõe em Coimbra, no Museu Municipal, Edifício Chiado

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Este comentário foi publicado no Diário de Coimbra de 30 de Setembro de 2008

Esteja atento o cidadão interessado e não desista de ver. Os mesmos artistas que desde há milénios procuram comunicar com o presente futuro das sensibilidades vivas permanecem activos, mau grado a fome aparente de verdade e de paixões autênticas. O fantasma das culturas burocráticas permanece e alimenta-se de espectáculo, mas aqueles que teimam encontrar, sempre acharão. Mário Branco mostra um belíssimo conjunto de obras de pintura na galeria de exposições temporárias do Museu Municipal, no Edifício Chiado, outrora centralidade única de centralidades agora repartidas e é uma presença que vem deliberadamente ao nosso encontro. Os trabalhos que nos mostra evidenciam bem uma metamorfose positiva das linguagens da contemporaneidade, neste caso coerentemente associada à corrente das artes próximas do homem e da sua essência comunicativa.
Nada de chapadas de tinta aleatoriamente garatujadas por cima de enormes telas, ou exercícios de neo-qualquer-coisa confiantes na perplexidade de contemplantes anulados pelo acetinado de “meios” que dispensam completamente a “mensagem”.
Mário Branco, pelo contrário, aborda sem complexos uma ampla diversidade de condimentos expressivos não fugindo à variedade de formatos que oscilam entre o delicadamente intimista e a alargada dimensão de alguns dos seus vórtices de impressionante efeito. As variadas caligrafias que põe em prática vão desde a administração mecanicista da matéria da pintura em escorrências, sobreposições e arrastamentos, etc., até à execução a pincel de “mimos” de expressão cuidada, sem receio de evidenciar amor e preceitos técnicos. As suas composições abrangem uma variedade de formatos sugestivos do “retrato” e da “paisagem” mas, na maioria dos casos, revelam estruturações impossíveis de designar por palavras. Como qualquer artista em liberdade não foge à diversidade. Se evidencia coerência plástica, porém, não nos reduz à monotonia de estar a ver sempre “o mesmo quadro”, apelando à decifração das fases construtivas e desafiando-nos a adivinhar o itinerário de gestos felizmente complementares. As suas massas cromáticas tanto se afirmam por empastamentos convictos ou cores firmes, como em lavados e transparências subtis, aqui e ali acentuados por tracejamentos a pastel ou carvão e projecções de tinta diluída que surgem onde é oportuno e não apenas “onde calha”. A paleta de cores assenta numa semântica serenamente nostálgica, embora sejam abundantes os pontos de exclamação, as acentuações e – em casos precisos – a surpresa de uma excepção. Visite exposições de pintura, caro leitor. Vale bem a pena e ensina os olhos a ver. Mas não vire o rosto para o lado à primeira impressão. Persista um pouco e tente mergulhar lentamente na arquitectura dos sinais. Assim se aprende a ler o pensamento e se lava a mente da pressa confusa das imagens sem alma.

Nota de remate:

Consequência das restrições cumulativas a cujo cerco o cidadão se vai habituando (e que pesam fatalmente pela negativa) o pequeno catálogo anteriormente oferecido equivale agora aproximadamente ao preço de quatro litros de gasolina. Sinal dos tempos em que o espavento das derrapagens dos biliões se tornou uma praga “paulatinamente” ignorada por motivos de “conformação”.
Mário Branco no Edifício Chiado, até 25 de Outubro de 2008.