Publicado no Diário de Coimbra de 4 de Dezembro de 2009
“Sabina Freire” é uma “comédia” pesada que acaba com um retrato de morte ao som de um achado de Tony de Matos, assim qualquer coisa muito mais saborosa e muito menos terrível que “o nosso fado”…
Ir ver esta peça é o melhor conselho que posso dar a qualquer espectador que tenha interesse por espectáculos construídos com paixão e a melhor cultura teatral. A cenografia é fluida e esteticamente eficaz, a direcção de actores e as respectivas interpretações são intensas, criativas e perfeitamente equilibradas, e não falta à encenação um conjunto de subtilezas que desafiam o sentido de observação do espectador avisado, adereço imprescindível para que uma apresentação cénica seja aquilo que deve ser: uma heróica empresa para quem a faz e um inteligente desafio para quem a desfruta.
Sem desprimor para detalhes mais sérios das profundidades da peça, agrada-me referir uma variedade de tipos que vão aparecendo do princípio ao fim e que se aproximam de forma quase literal de figuras carismáticas da banda desenhada.
Entretanto o espectáculo não se justifica apenas por si próprio, dado que se destina a fazer parte das comemorações do centenário da República e, ainda por cima, lança mão de um texto escrito por um intelectual finíssimo, homem de muitas artes e saberes, que muitos anos depois viria a ser presidente desta mesma República.
A obra, cuja qualidade nos faz pensar que melhor seria ter-se ganho um bom dramaturgo do que perder-se um desenganado presidente de república, traça da sociedade circundante uma análise perspicaz, irónica e quase trágica. Hesito em escrever o “quase” porque, à parte ter o próprio considerado a sua obra uma “comédia”, não lhe falta uma dimensão tão vasta de implicações sociais e psico-analíticas que, mais de cem anos depois (foi escrita em 1905) ainda se oferece como um retrato praticamente impiedoso de circunstâncias e fenómenos que o tempo não lavou e que todas as arquivoltas do devir histórico não têm conseguido senão aprimorar (e oxalá esteja eu bem enganado!…)
O desamor da injustiça social, as convenientes acrobacias da “gente fina”, a organização metódica das negociatas, o salamaleque jeitoso, o poder volúvel, a ambição desmedida que não recua nem perante o crime e (oh, céus!) o crime em que a própria vítima é o agente de ilibação do criminoso são metáforas sim, mas suficientemente realistas para cidadãos cansados disso no palco permanente da vida.
Homenagear uma república não está nada mal mas fazê-lo com uma obra-mestra de um seu presidente que se viu obrigado a renunciar ao cargo às vésperas de uma longuíssima ditadura, auto-exilando-se na Argélia, e que só pôde regressar ao seu país depois de morto e até assim com incómodos da polícia política, já é uma atitude problematizante que baste.
Por todas as razões e mais uma, “Sabina Freire”, da autoria de Manuel Teixeira-Gomes e encenação de Rui Madeira, em proveitosa parceria de companhias, no Teatro da Cerca de São Bernardo, em COIMBRA ou em qualquer outro palco, a não perder.
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Ficha Técnica:
Theatro Circo (Braga)
Teatro da Cerca de São Bernardo (Coimbra)
Encenação: Rui Madeira
Elenco:
Actores da CTB:
Solange Sá (Sabina Freire),
André Laires (Júlio Freire),
Jaime Soares (Dr. Fino),
Carlos Feio (Padre Correia e Procurador Ferreira).
Actores d’A Escola da Noite:
Sílvia Brito (Maria Freire),
António Jorge (Augusto César e Ministro),
Ricardo Kalash (Epifânio),
Miguel Magalhães (Josezinho Soares),
Lina Nóbrega (Josefina).
Cenografia: Rui Anahory
Figurinos: Sílvia Alves
Desenho de Luz: Fred Rompante
Criação de Som e Imagem: Luís Lopes
Criação Gráfica: Carlos Sampaio
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