Custódia Gallego em “Vulcão” de Abel Neves.
Diário de Coimbra de 9 de Março de 2010
A especialização do teatro conduz a diversíssimas variantes que fazem parte integrante da sua imensa riqueza. Algumas chegam a constituir modalidades suficientemente caracterizadas, com públicos certos e determinados para serem vistos em lugares próprios e dependem da riqueza de patrimónios colectivos sedimentados, consoante o caso, ao longo de gerações. Entre elas as que se estruturam em torno da ideia do monólogo.
Tudo de novo, pois, sob o sol, tendo este tipo de aberturas sempre um interesse muito legítimo, no caso da sociedade portuguesa, face à consolidação de públicos e à valorização que este sector da cultura tem vindo a registar, com a vantagem acrescida de afirmar uma saudável tendência descentralizante. A XII semana cultural da Universidade de Coimbra integrou, no âmbito do teatro, um conjunto de realizações sob o tema do monólogo “coisa pública”, que agregou, além de vários acontecimentos de reflexão e estudo, um conjunto de espectáculos de teatro concebidos sob o signo dessa modalidade específica. Os acontecimentos mais especializados desta iniciativa foram – como é habitual – dirigidos a sectores estrategicamente situados, sendo de acesso mais geral os que foram levados à cena no Teatro Académico de Gil Vicente e no Teatro da Cerca de São Bernardo. Poucas pessoas terão podido acompanhar todos os espectáculos do ciclo, tendo-me tocado a mim ver, no TCSB, dois dos cinco que foram apresentados: “Vulcão” de Abel Neves, com Custódia Gallego (encenação de João Grosso, ACE Teatro do Bulhão) e “Calendário da Pedra”, texto, encenação e interpretação da brasileira Denise Stoklos.
Ambos os espectáculos são notabilíssimos devido desde logo à presença de artistas que – sozinhas em palco – têm a capacidade hercúlea de concentrar numa só voz e num só corpo todo os conteúdos expressivos de uma construção narrativa, por mais específica que ela seja.
Custódia Gallego faz um trabalho mais próximo do teatro habitual, com uma história com diversos figurantes, um drama, em suma com suporte essencial no texto de que decorre e Denise Stoklos assume a pose de um “performer essencial” mais centrada na mímica, na coreografia, no exercício vocal, viajando em torno de si própria e do íntimo colectivo.
“…A estratégia aqui do performer é não ter estratégia. Diferente do ficcionista que segue uma linha pré-desenhada, ele busca o tónus da cena no seu ego, no seu âmago. Melhor dizendo o seu próprio tónus é a cena…” afirma Denise no texto em que apresenta, mais que a sua actuação particular, o contexto programático da sua forma de estar em palco.
Sem poder trazer aqui uma análise detalhada de ambos os espectáculos, de elevada qualidade e muitíssimo diferentes na sua génese e desenvolvimento cénico, terei que afirmar que ambos dependem de uma coisa que me parece um pouco contingente no teatro como veículo de transmissão de ideias, sentimentos e percepções do mundo: a vitalidade essencial e a resistência psíquica e física dos intérpretes respectivos, para além do seu talento genuíno. Apetece-me dizer que o espectador deixa de poder ver o tema, de atender apenas à palavra e ao gesto como produtores de uma certa ideia das pessoas e dos sentimentos que as animam, para passar a assistir a uma espécie de competição extremada do artista consigo mesmo. O espectáculo, de construção dramática, passa de certo modo à categoria de ultrapassagem emocional na qual o espectador sai esmagadoramente vencido pela extenuante energia posta em marcha pela actuação do solista.
Devastado pelo talento evidente, o espectador rende-se. Mas será que fica convencido ao nível do exercício quotidiano do pensamento sensível?
Será que da imensa energia dispendida e do elenco de recursos histriónicos, da ciência do dizer e da capacidade da construção gestual sobra alguma coisa para seu próprio consumo íntimo?
Esperemos que sim, dada a dinâmica de pluralismos de que o teatro é capaz e do merecido incremento de interesse que tem vindo a registar entre nós.