Publicado no Diário de Coimbra de 20 de Setembro de 1997
Num breve apontamento que fiz nesta coluna, já há dois meses, chamava a atenção para a permanência em Lisboa duma importante exposição de pintura, patente ao público no Centro Cultural de Belém: uma retrospectiva do trabalho da pintora Paula (Figueiroa) Rego que cobre o período do seu trabalho de 1959 a 1995.
Devem estar com certeza lembrados dumas perguntas que me ocorreram naquela altura, e que eram mais ou menos do seguinte teor:
– Onde estaria a pintora se tivesse nascido em Coimbra, e se nela tivesse começado a sua vida artística? Que atenção e que oportunidades lhe teriam sido dispensadas?
Teria tido estímulos do meio (e uma família de Coimbra também faz parte do meio…) que dessem crédito à saída para Londres, para estudar e evoluir na pintura?
E – no caso afirmativo – já iniciada a sua carreira, por exemplo na sua fase das colagens, alguma das forças vivas desta cidade teria coragem de lhe proporcionar uma bolsa, ou – tendo possibilidade de expor – quem iria “investir” no seu talento surpreendente, absurdo e inquietante?
Imagino que vai haver muita gente a achar estas questões duma enorme impertinência, e por isso vou terminar desde já com este pequeno jogo de perguntas esquisitas.
Há mais de uma vintena de anos que me interesso muito decididamente pela obra de P.R. Penso que a primeira exposição sua que devo ter visto teve lugar na SNBA em 1974. A segunda das mais significativas que pude visitar deu-se na galeria 111 em 1978
e o primeiro catálogo “grande” que comprei da pintora é o da retrospectiva da Gulbenkian de 1988. De o folhear tantas vezes, já tem uma quantidade de folhas arrancadas.
Desses anos uma coisa há, contudo, que me ficou na memória de forma indelével. Um trabalho de televisão, ainda a preto e branco feito – julgo sem qualquer certeza -no princípio dos anos oitenta, e transmitido pela RTP. É curioso que não se encontra referenciado na lista de filmes das abundantes notas biográfico-documentais de Paula Rego. Uma coisa é certa: o programa foi de facto transmitido (eu vi-o!) e já era a mesma Paula de sempre, navegando com segurança pelo oceano proceloso da sua imaginação milagrosamente desregrada, ao leme duma ironia saudavelmente -cruel, trespassante e desmistificadora.
Para lá dos textos que durante estes anos tenho lido sobre P.R. (julgo, aliás, que a artista tem conseguido rodear-se dum conjunto de comentadores críticos e historiadores da sua carreira particularmente sólido e coerente) sempre permanece no meu espírito a impressão desse primeiro testemunho, naquilo que possuía de fecundamente desestabilizador. Outros filmes pude entretanto ver, como testemunho directo da artista, e é do mesmo teor o desplante (ingénuo?), o absurdo (premeditado?) e o humor (negro ou translúcido?).
No “muro dos proles”, onde me encontro com Paula
Mais do que os bem documentados e completíssimos textos que podem apanhar-se nos livros sobre a autora, é esse arrepio de surpresa e instabilidade que me coloca no plano ideal de abordagem dos trabalhos de P.R. de que mais gosto. E se falo assim, não quero dizer que não aprecie praticamente tudo o que tem produzido. O que despretensiosamente declaro é que tudo aquilo que acontece em Paula Rego até ao fim dos anos oitenta, para mim, funciona como uma autêntica injecção nas veias. Se o ciclo de “As criadas” (de 1987) inicia um novo capítulo predominantemente figurativo, de enorme perícia técnica, infunde o respeito e a admiração que toda a obra subsequente merece. O leque de opções da autora tem sempre um toque de imensa originalidade, sem deixar de ser bem documentado, largo e profundo de alusões e relacionações. E a “visão” e execução das obras nunca deixa o observador menos que completamente dominado na curiosidade, no interesse e no desejo de ver.
Será de ter vencido uma duradoura fase da vida repleta de contrariedades e sofrimento?
É em 1987 que a cadeia de galerias “Marlborough Fine Art” firma contrato com Paula Rego, catapultando preços e obras da artista para um nível internacional. Este facto – naturalmente auspicioso – faz da artista aquilo que ela hoje é, um expoente de valor (como direi?) absolutamente “consolidado”.
Para frisar bem aquilo que penso e acima refiro, aludo apenas (por falta de espaço) às séries do “macaco vermelho”, do “coelho”, das “óperas” e especialmente “o muro dos “proles”, por se tratar duma obra que se encontra em Portugal, na Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, talvez aquela que maior número de portugueses conhece. Nestes ciclos, sem menosprezo para os demais, é despiciendo qualquer comentário. Os que tenho lido, muito embora encaminhem o espectador no seu desejo de racionalização objectiva, não conseguem resolver o impacto da primeira observação, que permanece crivada de perplexidades e duma estupefacção sem limites. Cada boneco, cada situação, cada interacção, fazem explodir o respectivo comentário para além das suas margens, e a intencionalidade, a truculência, o pitoresco e o acinte de cada imagem nunca é suficientemente contornável, ou definível, seja por que conceitos for. A forma como esses personagens se apropriam do espaço disponível no suporte e a hierarquia de configurações em presença são, por si só, um fenómeno tão simples/complexo que bastam, como motivo de delícia/surpresa, até à consumação de qualquer entrecho explicativo.
Todas as figuras ali presentes esgotam pela verdade critica, pela totalidade sensual, pela ironia desapiedada o enorme teatro do mundo, no palco confidencial e restrito da consciência de cada um de nós, ou no tablado poeirento e trepidante da sociedade aberta, confusa e tremenda.
Duma rapariguinha bonita e dum belo casaco de veludo
Desta última visita que efectuei ao CCB, cometi uma pequena originalidade: meti-me numa visita guiada, com “explicações” sobre a obra de Paula Rego. Ao grupo quase numeroso de sorumbáticos portugueses fez frente uma moça nova e bem engraçada, mestranda de História de Arte (explicou-me, como quem pede desculpas, que o seu mestrado “é só do Sec. XIX”).
Nervosíssima, conduziu-nos através do dédalo complexíssimo do trabalho exposto. Afinal o grupo até gostou das falas da moça e fez os possíveis por tranquilizá-la, no seu desejo de produzir um bom trabalho. Ao fim esperava-nos – na sala dos vídeos – um filme em que a própria Paula Rego, acompanhada do crítico Alexandre Melo, fazia uma visita guiada à exposição no CCB. Renovou-se em mim, a impressão de contentamento do espírito que já experimentara de todas as vezes que pude escutar Paula “herself’. O critico, extremamente elegante num casaco de veludo negro (como eu gostaria de ter um casaco assim para a abertura da minha exposição…) lá ia tentando manter em suas margens o rio (acidentalmente?) caudaloso das impressões de Paula.
De explicações-explicações fiquei exactamente na mesma. Também para que queria eu que me explicassem um mistério que vive disso, de não ter explicação possível?!…