Duas respostas de Rocha de Sousa

Publicado no Diário de Coimbra de 5 de Janeiro de 1998

 

Ano novo, e passam mais rápidos os dias. Ano novo, e são mais curtas as horas. Ano novo: as mesmas necessidades e os mesmos desejos.

Debruçado sobre os primeiros instantes de 1998, ocorre-me relem­brar a característica de liberdade que têm estas “conversas”, adaptadas apenas à necessidade de ir abordan­do temas referentes à Arte em geral, e à Arte moderna em particular.

Pretextos, qualquer um serve: uma viagem, uma visita, uma pessoa ou uma ideia. Por vezes, um simples facto da sensibilidade desata a impe­riosa urgência de atravessar o espa­ço de silêncio que nos separa de alguém, ou de colmatar o vazio que nos afasta do entendimento de uma ideia.

Há dois ou três meses, num esta­belecimento onde vou encaixilhar os meus quadros, lá vi encostado a uma parede um quadro de cores soturnas, cheio do sentimento misterioso da vida, repleto das alusões que carre­gam a arte de sentidos, e põem em marcha esta enorme curiosidade de nos decifrarmos até ao mais fundo da nossa transcendência. O dono da casa consentiu-me que o deslocasse mais para a luz. A “leitura” do qua­dro estimulou-me a pôr em marcha um contacto com o autor da obra, o pintor Rocha de Sousa, para do mesmo trazer notícia aos leitores das minhas “conversas”.

É interessante referir que o origi­nal que é a causa próxima desta cró­nica é pertença dum coleccionador residente na região centro do nosso país (o que não sendo motivo de espanto é, por certo, razão de agra­dável surpresa).

Obedecendo à intenção genérica que anima estas conversas, aqui ficam as perguntas a que R.S. acei­tou responder (com subtítulos de minha responsabilidade) e que rematam a “conversa de pintor” de hoje, cujo título fica, desta maneira, qualificadamente justificado.

“Visibilidade” e qualidade

CB. – Conhecendo a sua multifacetada intervenção pedagógica no campo das artes e a imensa varieda­de de atitudes que a sua obra de artista criador comporta, fale-nos de si como “autor de autores, sem heterónimos nem pseudónimos, a deixar o outro e os outros florescer em si mesmo”.

R.S. – A sua pergunta é “pregui­çosa”, porque o autor é entrevistado de si para si, circunstância que pode comportar aspectos perversos. Direi em todo o caso, o que posso e o que sei, com ou sem perversidade.

O meu curriculum, que na sua versão detalhada completa 200 pági­nas, fala de um esforço de pesquisa – de criação – em diversos planos da actividade artística: artes plásticas (pintura e técnicas mistas), desenho, ensaio e literatura de ficção, obra didáctica para as áreas artísticas, cinema para televisão (séries cultu­rais), vídeo pedagógico (Universidade Aberta) e vídeo de ensaio, literatura. Prémios: alguns, de sem ressonância, mas isso pouco importa. E de resto a visibilidade de um autor (pelo menos em Portugal) não depende da sua qualidade. Depende de uma espécie de lobbies e de tráfico de influências com dife­rentes características. A concorrên­cia frenética do mundo estende-se a esta área, torna-a por vezes pouco credível e promíscua.

O meu trabalho na pintura, publi­camente desde os anos 60, tem-se envolvido num discurso de natureza lírica, expressionista e pop, com incidência em realidades fundamen­tais da época contemporânea. Trata-se de uma “salada russa”, dirão alguns, sobretudo porque, também aqui, as veredas e os caminhos coe­xistem e interagem no mesmo qua­dro. Procuro assim exprimir-me no meu tempo, nessa linha mista e tematicamente dramática, com a angústia na alma, porque a pintura tem de facto pouco espaço para tra­tar, de forma empenhada, os temas da nossa morte diária.

Os dois eixos principais da obra pictórica que tenho realizado são constituídos por séries com os nomes de “As Personagens Ilustradas” e “Os Desastres Principais”, sem evocar experiên­cias de parceria e outras séries mais curtas.

As técnicas mistas, em que a colagem, a pintura, o grafismo e outros efeitos, se misturam de forma paradoxal, com equilíbrio e caos, constituem um campo mais lúdico da minha obra, mas são claramente reconhecíveis a par da pintura.

Todos os problemas inerentes a estas áreas de produção foram razoavelmente estudados por mim, em ordem ao trabalho pedagógico na Faculdade de Belas Artes de Lisboa (UL). Publiquei algumas peças nesse sentido, incluindo o espaço audiovisual a que me dedi­quei por gosto próprio e no campo didáctico da Universidade Aberta. A área audiovisual preenche um dos meus maiores interesses, desde o cinema documental e cultural, pro­duzido para televisão, até à concep­ção de obras em vídeo – trabalho de mim para mim e trabalho no âmbito da pesquisa, divulgação e ensino na Universidade Aberta: O vídeo – como linguagem do cinema – permite-nos trabalhar de diversas maneiras com o factor tempo e a mobilidade visual, aspectos de gran­de riqueza em termos expressivos. A exploração da metáfora através de personagens femininos tem-me permitido aceder a um tipo de dis­curso onde reemergem, de um modo novo, certas linhas conduto­ras da pintura, nomeadamente quanto às crises existenciais que marcam o nosso tempo.

A actividade didáctica na antiga Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, e na actual Faculdade, requerem metodologias muito especiais em termos de docência. As estratégias nesse domínio apu­ram o nosso sentido crítico e uma sensibilidade eclética em termos positivos. Dediquei-me, desde muito cedo, à actividade da crítica de arte, exercendo-a em jornais como o “Diário de Lisboa”, entre outros, e revistas como a “Colóquio”, “Artes Plásticas” ou “Sema”. Actualmente sou, nesse domínio, colaborador permanente no jornal JL.

Estas várias vertentes do meu trabalho, segundo alguns, anuncia­riam um caso de heteronimia ou a separação dos campos por heterónimos. Mas isso constituiria um equí­voco, pois as diversas escritas prati­cadas associam-se profundamente, fazem raccord entre elas, são tradu­ções tecnológicas e técnicas do mesmo autor, do mesmo projecto, inclusive das mesmas formas, de uma linguagem para a outra. O autor, ele-mesmo, retira dessa plu­ralidade uma especial unidade de intervenção. O outro que há nele-mesmo é abordado na obra pluriformal de um único criador.

A Arte divorciada da realidade

C.B. – Coimbra é uma cidade de escolas, cheias de mestres, cheias de alunos. Penso contudo que desde os Séculos XVI e XVII nunca mais parou de decair o seu sentimento colectivo das artes. Basta olhar a cidade, os seus espaços exíguos de liberdade e repletos de feiura e de caos, para evidenciar esse facto. Julga que o progresso no entendi­mento da Arte poderia vir em socorro de tal estado de coisas?

R.S. – Coimbra, lugar de mil significados na cultura portuguesa, perde entretanto, um pouco como em toda a parte, a força anímica de um projecto, a ideia de que os fac­tos vividos hoje, no comércio, na indústria, na universidade, teriam um sentido superior, contariam pela arte, incluindo a literatura, para um admirável ponto de chega­da no futuro. O apagamento do interesse colectivo pelas artes pode efectivamente ter-se iniciado nos séculos XVI e XVII mas o problema ultrapassa Coimbra, estende-se grosseiramente a todo o país, a todo o mundo. A globalização dos processos de desenvolvimento assenta, cada vez de forma mais radical, num neo-liberalismo antropofágico, num colonialismo das grandes potências e dos grandes comércios que se alarga a toda a “aldeia global” em que nos transfor­mámos aparentemente sem regres­so. E isso faz-se nivelando o mais possível a população por baixo, tor­nando-a dependente de modelos de vida que impõem sempre novas necessidades, consumos supérfluos, crescimentos anómalos. Os media são uma das grandes armas dessa operação ensandecida, que nos é proposta como a felicidade futura, coisa que os 20 milhões de desem­pregados, só na Europa, devem achar uma graça de mau gosto ou a emergência de um poder capaz de pôr em risco o próprio planeta. E ainda, em vez de uma catástrofe ecológica já próxima, o nascimento de um novo Big Brother controlan­do os comércios, os lucros, a liber­dade e o amor.

Durante grande parte do século XX a arte contraiu-se sobre si mesma, divorciando-se da realidade, e pensando muito pouco, ou nada, para além da sua verdade intrínseca, olhando-se demasiado ao espelho. Aflorar, nas artes plásticas, o mundo, era literatura, diziam os teó­ricos. Entrosar as novas descobertas formais com os “desastres da guer­ra”, reflectir para além da sua “geo­metria secreta”, isso era banalidade ou conservadorismo.

Recentemente, muitos autores (e é esse o meu caminho) advogam a coexistência dos diversos modos de formar, entre os mais secos minimalismos e a expressão mista das dores e medos contemporâneos. É impossível “endeusar” Vasarely e minimizar Vostel. As nossas esco­lhas têm a responsabilidade que tiverem, à luz de certos contextos, mas reflectem, por cada acto cons­ciente, uma época, uma possível diversidade, vários caminhos.

“Não há civilização sem arte”. Seja como for, a arte reflecte o mundo, abre a visibilidade dos ros­tos desse mundo, mas não é peda­gogia, nem moral, nem caridade. Quanto maior for o interesse por ela, e nela os países encontrarem alternativas a algumas das actuais seduções, mais equilíbrio as socie­dades poderão alcançar. Mas não é dessa forma, nem por esse cami­nho, que os homens das transnacionais e dos exércitos e das classes políticas encontrarão, milagrosa­mente transformados, um novo objectivo para a civilização con­temporânea.

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