Eduardo Nery na Culturgest e na FCG

 

Publicado no Diário de Coimbra de 19 de Janeiro de 1998

 

Quando eu era miúdo ir a Lisboa era uma coisa importantíssima. Vinha-se de lá mais alto, mais esclarecido e, muitas vezes, bastante mais maroto.

Agora, ir a Lisboa, é muito menos. A pressão dos compromissos, a amálgama confusa das gentes, a distorção da pressa e a sujeição das esperas, reduzem o eco das nossas expectativas aos limites daquilo que. já daqui levamos, na reserva das nossas alegrias e no músculo das nossas imaginações.

Contudo Lisboa é, quer queiramos ou não, a maior concentração de oportunidades, de gentes e de drama que existe no rectângulo. É preciso continuar a visitá-la com a mesma ilusão e com a mesma cobiça de outrora, senão por causa dela, por causa de nós próprios, E dar a esse tempo de reen­contro e de lazer especial, a duração e a liberdade que são essenciais.

Uma exposição paga e outra grátis

Desta vez escolhi – entre outras coisas interessantes que não cabem nesta pequena crónica – a visita às duas magníficas expo­sições dedicadas a Eduardo Nery patentes até fins de Dezembro, na Culturgest e na Fundação Calouste Gulbenkian.

Na Culturgest – onde se mostrou a obra de atelier de Nery – esteve exposta outra obra, dum artista estrangeiro – Sean Scully – aliás de bastante interesse. Pelo acesso a essa outra exposição pagavam-se 500 escu­dos. Para visitar a de E.N., “apenas” 400!…

Se a Caixa Gerai de Depósitos não dis­põe de meios que lhe permitam mostrar Arte gratuitamente, mais valia cobrar logo duma vez 900 paus pelas duas visitas (que deve ser o que toda a gente acabava por fazer…) do que deixar o visitante a remoer motivos que expliquem esta (concerteza muito explicável…) diferença de cotações.

Quanto à obra de atelier de Nery patente na Culturgest, ali nos foi permitido analisar o que foi a evolução do seu pensamento estético, desde os primeiros desenhos de juventude, seguidos das diversas experiên­cias no domínio da pintura (o abstraccionismo lírico, o expressionismo abstracto, as significativas abordagens do pós-surrealismo, a tapeçaria, a Op-art, a “anti-pintura”, as colagens, as diversas incursões na foto­grafia, etc.). O Artista, espírito largamente aberto a uma grande variedade de interes­ses no domínio do transcendental, foi tam­bém muito marcado pela curiosidade cien­tífica, pela necessidade da ordenação metó­dica e pelo raciocínio analítico.

É no cruzamento desta diversidade de tendências que foi evoluindo, impulsionado

por uma pesquisa incessante, por um uni­verso riquíssimo de ideias próprias (imbuí­do de poesia, de sentido crítico e de ironia), o que conjuntamente culmina de modo natural na sua faceta de “artista de interven­ção pública”, ou seja, de artista a quem são confiados projectos do âmbito das obras públicas e que possuem uma índole estética muito particular.

O trajecto que as duas exposições sobre E.N. documentaram alarga-se por 40 anos de trabalho que o conduzem no quase iní­cio da sua carreira a um convite que lhe é feito pelo grande reinventor da tapeçaria moderna que foi Jean-Lurçat de ir estudar com ele em França É mais ou menos por essa altura que o artista transita do gesto largo do expressionismo abstracto à con­tenção cerebralizada da abstracção geomé­trica. Assim se compreendem as criações que efectua na área da “Óptical Art”, onde a tendência de ordenamento e lógica plásti­ca conferem à superfície das obras uma mobilidade sem limites, com efeitos volu­métricos de leitura variada, em que a cor e a geometria dão lugar a uma autêntica fenomenologia da percepção, rica de ambi­guidades, trocas cinéticas, retracções e expansões do mais variado efeito.

O azulejo, evidentemente

É também nesta ordem de ideias que o universo de Nery se cruza tão adequa­damente com a utilização do azulejo, elemento primordial das nossas artes arquitectonico-decorativas, e que desa­gua na sua riquíssima produção de pai­néis, tão recheados de originalidade e força plástica.

Os primeiros trabalhos referidos no catá­logo completo das suas obras realizadas para a arquitectura e para espaços urbanos (aspecto que estava documentado na expo­sição da Fundação Calouste Gulbenkian – com entrada gratuita, diga-se de passagem) datam de meados dos anos 60, e vão ganhando com o decorrer do tempo um significado e uma importância que não é possível descrever numa destas sucintas “conversas de pintor”.

Na última sala do conjunto que abrigava essa realização da F.C.G. passava um filme documentário interessantíssimo em que, de forma embora resumida, a própria voz pau­sada e grave do artista ia longamente refe­rindo aspectos dessa intervenção multifacetada, complexa, recheada de alusões e res­sonâncias sócio-culturais as mais profundas e apaixonantes.

É de notar que, no âmbito desta área de intervenção, nem Coimbra está excluída, com obras que vão desde painéis de azule­jos à organização cromática de edifícios públicos.

O pudor de publicitar as iniciativas culturais

O catálogo “Eduardo Nery -1956/1996” (5 000 escudos, na Fundação Gulbenkian) com as suas mais de 260 pági­nas de bom papel, bons textos e muitas reproduções fotográficas, é um óptimo documento de trabalho. A edição é apre­sentada por ambas as instituições mas a Culturgest, que até tem um interessante “jornal de exposição” (o que faz parte, creio, de todas as suas realizações do géne­ro e custa 350 escudos, se me não engano) parece ter uma certa dificuldade em vender o catálogo referido. Não me foi possível comprá-lo ali, embora tivesse tentado.

Não refiro estes pequenos detalhes com azedume (como faço, aliás, com a questão dos custos de entrada) senão para lamentar aquilo que me parece ser uma dificuldade enorme de duas grandes instituições cultu­rais em articular esforços para melhor divulgar e projectar uma tão importante ini­ciativa conjunta. Se as instituições são gran­des, o artista é enorme, e não havia mal nenhum em divulgar mais e melhor um evento que encontrei para ali perdido em enormes salas vazias de público, como tan­tas vezes me vejo sozinho nessas casas da arte e da cultura, sempre que ali vou de visita.

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