Publicado no Diário de Coimbra de 12 de Outubro de 1998
Não tendo tido a oportunidade de ver a exposição de Pat Andrea em Lisboa, que esteve patente no Palácio Galveias, oferece-me esse privilégio a Casa Municipal da Cultura, até 30 de Maio corrente.
A única folha informativa disponível nas duas salas da exposição dá-nos a conhecer unicamente o soberbo itinerário curricular do artista. Somos assim obrigados a mergulhar na obra sem qualquer conhecimento prévio do universo cultural do pintor, o que torna o exercício arriscado mas legitimamente fascinante.
É, para já, muito raro poder passear em Coimbra em salas (espaçosas?) rodeado de tão grandes telas trabalhadas com tão imensa sabedoria do desenho e da pintura.
Saudações portanto à iniciativa que é levada a cabo com a colaboração, que é de louvar, da Galeria Fernando Santos do Porto.
Nos quadros, que vemos? Rostos e corpos de mulher alterados frequentemente nas suas proporções morfológicas, não poucas vezes agitados pela convulsão crispada de pavores e luta, em figurações posicionais que fazem alusão às atitudes mais íntimas da fisiologia e do destino natural dos seres. Tais deformações proporcionais não me parecem contudo pretender reduzir o fascínio daquilo que o pintor observa, antes pelo contrário. Diria, outrossim, que o seu olhar demonstra a capacidade de se concentrar nos ângulos mais propícios, nos detalhes mais felinos, na intimidade mais concentrada, mais apaixonadamente indiscreta. E é capaz de passar directamente duma farta cabeleira espessa e cheirosa que emoldura um rosto apaixonado às partes mais íntimas da mesma figura, sem passar pelo tronco, tal como o faria uma câmara cinematográfica numa rápida sobreposição de planos.
Que vemos mais? Alguns homens em posição quase subalterna, numa figuração que não sendo anódina e em caso algum desproblematizada, revela, com distanciamento crítico feito de perplexidade, a formulação subtil de receios e a denúncia dos limites próprios. As únicas perspectivas que nos traça do homem em atitude viril, numa, é evidente a ironia e acintosa a pose, noutra, o licor sagrado corta uma paisagem quase romântica transfigurado esquematicamente em lâmina fria, numa fórmula quase distanciada dos requintados atributos técnicos do pintor.
Aparece também, além de outros símbolos cuidadosamente seleccionados e exemplarmente expressivos, um animal: o cão. Por vezes incorporado nas próprias figuras, parece (excepto nos casos de presença inofensiva) ser interlocutor exclusivo do homem, com o qual chega a travar combates de ferocidade evidente. Que medos, que fantasmas, que delírios recorrentes e aflitivos retratará esta forma perturbante? O tratamento de algumas figuras masculinas, igualmente mergulhados na sombra pastosa ou sombria de silhuetas perturbadas, parece indicar de que lado se encontra a pista a seguir, lá, onde o impulso do desejo é mais agudamente doloroso e onde o monstro salta, ameaça ou dilacera.
Plasticamente muito generoso em toda a explicitação do acto estético, desde as considerações iniciais até às últimas coberturas (concisamente. reservadas para os locais da tela onde mais forte se deteve o seu olhar), Pat Andrea é um pintor com um profundo conhecimento de toda a orgânica da arte que exercita, além disso, sem desperdícios nem trucagens. Tudo o que aparece nos seus quadros é matéria ou acto visível e visual onde o recurso bastante abundante ao “non finito” aparece como cúmplice do olhar do observador na fruição dos seus processos de procura e adiamento.
Sendo de naturalidade holandesa, ostenta sem rebuço um cunho expressivamente latino americano na vibração onírica, na paleta aberta e sem complexos e na frontalidade deslumbrada dum olhar que espreita, acaricia e desvela tudo o que é sensualidade profunda ou encantamento visual imediato.
A tragédia biológica da mulher merece alguns sublinhados importantes e o seu estatuto de ente sofredor e isolado tem alusões a que uma evidência simbólica empresta universalidade justificada.
Todas estas coisas digo, contudo, não esquecendo o essencial plástico desta fortíssima presença artística cuja paixão observativa nos faz mergulhar a cada momento num gineceu convulso onde o sorriso da mulher se transforma por vezes num trejeito comprometido e onde os olhares de soslaio reforçam a consciência clara do interdito misterioso.
Nesta pintura magnífica são abundantes os seios, objectos magníficos que o universo conserva como dos mais excelentes da nossa memória sensorial e afectiva. Pat Andrea reserva-lhes entretanto um tratamento propositado feito de ocultações/revelações não descentrado da polémica que estabelece de forma inequivocamente frontal com a vulva, aquela raiz donde parece provir todo o segredo, toda a energia e todo o silêncio do mundo.