Malick Sidibé no CAV, ou o glorioso espectáculo da humanidade
Publicado Diário de Coimbra 21 de Maio de 2004
Pensar em África resulta sempre num imenso encadeado de associações de ideias em que se dão as mãos a mais deslumbrante paixão vital e os mais dolorosos sentimentos de prejuízo humanitário. Malick Sidibé, homem que nasceu em 1936 no Mali, estado vizinho da Guiné Bissau, fez parte das gerações que testemunharam “uma época de mudança resultante do fim dos impérios coloniais”. Acho que vale a pena mencionar que o Mali, antigo Sudão francês, apesar de ser o primeiro produtor de algodão da África subsariana, ocupa o 4º lugar entre os países mais pobres do mundo.
Olhando pois para as datas em que foram tiradas as fotografias expostas no CAV, causa-me um assombro de luto concluir que o esplendor de juventude e de vitalidade palpitante evidenciados pelos figurantes das mesmas pode entretanto ter-se extinguido, bastando saber que a esperança de vida não ultrapassa naquele país a barreira dos quarenta anos. Visitemos o CAV, não obstante, colhendo de cada imagem o deslumbramento de que formos capazes, aceitando como perene a natureza revelada e a juventude sem limites, porque convictas da sua própria autenticidade, ostentando todos os símbolos possíveis de exuberância afirmativa, quer de natureza tradicional e autóctone, quer de importação recente, sujeita aos ditames duma outra sociedade, cujas excelências podem nunca ter sido experimentadas pelos retratados. Malick Sidibé, de quem se diz “ter fotografado sempre por gosto e dever de ofício, jamais pensando numa carreira artística”, teve o talento de fazer passar pelas suas objectivas todas essas figuras saturadas de naturalidade, muito embora entregues por vezes, com a cumplicidade óbvia do próprio autor fotógrafo, a um jogo de atitudes artificiais comandadas pelo desejo de representação de subjectividades e de anseios pessoais.
À primeira vista fáceis de organizar tipologicamente, as fotografias de Sidibé revelam-se abundantes na variedade de propósitos de cada um dos protagonistas, ou grupos de protagonistas, e na captação peculiar que dos mesmos foi efectuada pelo artista. Aparece a fotografia a três quartos e de meio corpo, evocativa da sumptuosa tradição da arte do retrato, as figurações conjuntas de colectivos em poses que sempre nos dizem muito pela energia e coesão respectivas, a galeria de figuras isoladas cuja personalidade é evidenciada pelos expedientes mais simples e a daqueles que se preocupam em ostentar certos símbolos aculturantes de efeito pretensamente convincente. Sabemos que o artista, já no virar do milénio, e depois de ter caído em desuso a fotografia de retrato tradicional, iniciou experiências com retratos de pessoas que figuram viradas de costas para a objectiva. Sem qualquer informação adicional, a opção não deixa de parecer misteriosamente simbólica de todo o encadeado de problemas em que mergulha o homem africano, ensimesmado na solidão do seu drama, afastado cada vez mais das fontes ancestrais donde parecia brotar uma pureza de vigor sem limites, e nem por isso mais próximo dos padrões afirmados pela envolvente e invasora civilização do homem branco.
Nos “Project Rooms” estão duas realizações, uma da autoria de Ricardo Valentim e outra evocativa da experiência em África dos familiares de Manuel Santos Maia. A primeira das duas faz convergir várias modalidades de intervenção artística: o registo mural, a pintura sobre tela e algo que me permitirei designar, sem compromisso de rigor, como uma “elaboração escultórica”. O diálogo travado entre essas componentes é-nos apresentado num espaço esguio e alongado, o que acentua o efeito cenográfico do conjunto. Toda a instalação, realizada com materiais francamente modestos, opera uma fusão dinâmica com a iluminação do compartimento, particularmente expressiva para os elementos situados na parte mais elevada. Quanto ao projecto de M.S. Maia é de salientar o interesse histórico, etnográfico, cultural e até afectivo que evidencia, não sendo legível de forma imediata, antes solicitando uma cuidada observação. O espaço concentrado em que se encontra e o facto de a projecção de slides ser de fruição intimista (através de auscultadores), é inversamente proporcional ao âmbito do projecto, dotado de amplas áreas de significação que abrem para questionamentos da mais variada índole. “Espaços de projecto” deste tipo demonstram que as obras que figuram, por necessidades compreensíveis, em salas algo mais recuadas, não são menos merecedoras duma apreciação cuidada e atenta se fornecerem, como é o caso, e traduzindo do inglês, “alimentação para o pensamento” (food for thought!…)