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publicado no Diário de Coimbra de 9 Novembro 2005
Não sou ainda sócio do Centro Norton de Matos, e talvez devesse sê-lo pelo acumulado de impressões positivas colhidas de amigos, visitas, variedade de acontecimentos e recordações que tenho duma já antiga colaboração artística no domínio da cenografia para o balett.
Desta vez fui a uma peça de teatro que representa o arranque de uma nova secção ancorada no tecido ricamente sedimentado das actividades do Centro.
O amigo que me convida, António José Alves, é encenador, desenha as aplicações de luz e, como se fosse pouco, é ainda actor (no papel de Devlin) desta peça de Harold Pinter, significativamente escolhida para ser levada à cena, antes do autor ter sido designado prémio Nobel da literatura. Esta polivalência de atitudes assinala bem a disponibilidade fértil de quem abre caminhos novos. E tampouco a escolha da peça representa a atitude cómoda de quem queira fazer obra a partir do êxito fácil.
O texto de Pinter é duma objectividade sem adornos nem alusões pitorescas e apresenta-se concentrado num diálogo tenso, recheado de incertezas, alusões a um erotismo crispado e visões aterradoras de bébés arrancados aos braços das suas mães, em alucinadas estações de caminhos de ferro.
O cenário é coerentemente singelo, a acção restringe-se ao mínimo, e quanto às conclusões daquilo que é dito em palco é o próprio espectador que terá, entre alusões simbólicas, alegorias complexas e certo clima de pesadelo, de encontrar as chaves que para si resolvam a trama da peça.
A convivência natural e a tradição festiva do teatro
Algo de especialmente sensibilizante rodeia todo o trabalho feito, digno evidentemente de aplauso e atenção. Refiro-me ao clima humano que é património duma agremiação como esta, que apresenta uma peça de teatro ao fim da qual as pessoas podem ficar discreteando com velhos amigos aquilo que foi dito e vivido no palco cénico.
Nestas cidades, de prédios onde impera um certo anonimato e onde as pessoas se esgueiram pelas escadas com medo de encarar vizinhos cujo nome mal se conhece ao fim de anos e anos, é com um sentimento de renovada confiança que se entra numa casa onde o teatro não é apenas uma cerimonial de palavras congeladas, rodeado de silêncios por todos os lados.
A actriz, Celeste Maria Rafael (Rebeca), confidencia-me que viveu sempre ali, a dois passos do Centro, o que me faz lembrar com imensa nostalgia as casas e ruas da minha infância até à primeira idade adulta, pura recordação feita de ausências e de um insatisfeito sentimento do irrecuperável.
Numa sala de teatro que também é ginásio e sala de danças de salão, o aviso de apagar telemóveis não é dado pela ressonância metálica dum altofalante escondido detrás do segredo da sala escura. É uma pessoa que vem ali falar com todos e que, além de outras coisas, também nos diz que a aventura do teatro vai prosseguir no Centro Norton de Matos, assim o queira a generosa vontade dos associados.
Por mim vou estar atento e não ficarei ausente. Pode ser que entre nomes e faces conhecidas possa de igual maneira beber um pouco dessa quase utopia que é viver civilizadamente, em comunidade de interesses e de valores humanos, artísticos e sociais.
E que o hábito das palavras, antes e depois de cada peça, possa tornar-se uma atitude natural, uma vivência autêntica de cultura e da tradição festiva do teatro.